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Publicado em 2021, 'Judeus Não Contam' se tornou um livro extremamente atual nos últimos meses – quando o crescimento do antissemitismo voltou a assustar o Ocidente democrático.
Escrita pelo comediante e roteirista britânico David Baddiel, a obra (lançada no Brasil em 2023 pelo selo Avis Rara) mostra como a esquerda identitária falhou ao fechar os olhos para um tipo específico de racismo: o preconceito aos judeus.
Provocativo e bem-humorado, o livro fez tanto sucesso que acabou virando um documentário homônimo, apresentado pelo próprio Baddiel. Leia a seguir um trecho do primeiro capítulo.
Este livro não é mais um relato exaustivo do antissemitismo moderno. Trata-se de uma tentativa de determinar e detalhar algo que eu acho que é a chave para o antissemitismo moderno, que é a confusão que a esquerda faz a esse respeito.
Por esquerda, a quem eu realmente me refiro são os progressistas: a coalizão dos que se definiriam como aqueles – alguns dos quais podem não ser da esquerda clássica – que estão do lado certo da história.
Não tenho certeza de que essa seja uma expressão muito usada fora do discurso online, mas denota aqueles que se posicionam contra todos os “ismos” e fobias – racismo, sexismo, capacitismo, islamofobia, transfobia – e que acreditam que, no futuro, esses “ismos” e fobias serão reconhecidos como claramente aberrantes e enviados para a lata de lixo do tempo.
Devo deixar claro que a expressão “todos os ‘ismos’ e fobias” não pretende ser condescendente ou depreciativa, é apenas um símbolo do que estou tentando dizer.
Eu me definiria como progressista. Embora nunca use a expressão “do lado certo da história”, pois acredito que a única pessoa que realmente sabe como as coisas vão acabar nos próximos anos é o dr. Who [personagem da série de tevê homônima, que viaja pelo tempo e o espaço para resolver problemas e lutar contra injutiças].
É importante que isto fique claro: este livro é sobre progressistas. Os próprios progressistas, às vezes, respondem ao antissemitismo apontando para o – implícito – racismo muito pior sofrido por outras minorias em, digamos, colunas de opinião no [jornal conservador britânico] Daily Mail.
Um ponto bastante justo, mas não estou interessado nesses colunistas, pois o racismo deles é ativo e óbvio, e também, para ser honesto, não é meu para falar.
Quero falar sobre o antissemitismo e, mais importante, o antissemitismo que precisa ser desconstruído, aquele que as declarações antijudaicas flagrantes de extrema direita não desconstroem.
O que vimos até agora são exemplos de judeus sendo deixados de fora: deixados de fora, pela esquerda, da política de identidade. A política de identidade, para quem não sabe, é uma política segundo a qual as coisas tradicionais pelas quais a esquerda e a direita lutam – basicamente a economia – são superadas por questões como racismo, capacitismo e homofobia.
O dever da esquerda passa a ter menos a ver com apoiar o trabalhador (embora muitos pensadores de esquerda digam que a injustiça econômica anda de mãos dadas com as injustiças perpetradas contra as minorias, algo com o que eu concordo) e mais com defender pessoas de cor e gays, e pessoas trans – todas aquelas nomeadas por Dawn Butler [uma das representantes do Patido Trabalhista no parlamento do Reino Unido].
Esse é o bom combate, e a esquerda é sempre um espaço combativo, definido por sua rebeldia. Eu uso a expressão “o bom combate” deliberadamente. A esquerda sempre se considerou o lado dos mocinhos.
Eu me inclino politicamente para a esquerda (quando adolescente, eu ia às reuniões da Juventude Comunista) e, portanto, não posso falar pela direita, mas me parece que as pessoas de direita se preocupam menos com uma autoimagem virtuosa.
Você pode ser um conservador e acreditar alegremente que a natureza humana, conforme sugerido pela economia capitalista, é desenfreadamente egoísta, e porque isso cria sociedades livres que funcionam bem em tempos de fartura, mesmo que desigualmente, então tudo bem.
O que significa que você não precisa ficar continuamente se projetando, nem projetando sua política, no terreno moral elevado. A esquerda é combativa, porque é marginal.
A direita é o establishment, que faz da esquerda os rebeldes, os dissidentes, os revolucionários (embora essa linguagem tenha sido apropriada nos últimos anos por Donald Trump e brexiteers [apoiadores do Brexit, a saída Grã-Bretanha da União Eurpeia], mas isso realmente é outra história).
Com a transição para a política de identidade, a causa da esquerda se tornou fragmentada. Ela passou a ter menos a ver com lutar pelas massas e mais a ver com minorias específicas.
O bom combate é para todos aqueles mencionados por Dawn Butler. O discurso de Butler formou a trilha sonora do último grande vídeo de campanha do Partido Trabalhista antes das eleições gerais de 2019, no qual a questão do antissemitismo desempenhou um papel enorme.
Isso significava que todos esses vários grupos pelos quais o Partido Trabalhista se comprometeu a lutar estavam presentes e tinham a aparência correta, e a exclusão, ou o esquecimento, dos judeus desse círculo foi repetidamente enfatizado até que todos entendessem.
Um círculo sagrado é traçado em torno daqueles por quem a esquerda progressista moderna está preparada para lutar, e parece que os judeus não estão nele. Por quê? Bem, há muitas respostas.
Mas a básica, que sustenta todas as outras, é que os judeus são os únicos objetos de racismo que são imaginados – pelos racistas – tanto como de baixo quanto de alto status.
Os judeus são estereotipados, pelos racistas, da mesma forma como as outras minorias são – como mentirosos, ladrões, sujos, perversos, fétidos –, mas também como endinheirados, privilegiados, poderosos e secretamente no controle do mundo.
Os judeus são, de alguma forma, tanto sub-humanos quanto mestres secretos da humanidade. E é essa mitologia racista que está no ar quando a esquerda faz uma pausa antes de colocar os judeus dentro de seu círculo sagrado.
Porque todos aqueles no círculo sagrado são oprimidos. E se você acredita, mesmo que um pouco, que os judeus são ricos, privilegiados, poderosos e estão secretamente no controle do mundo... bem, você não pode colocá-los no círculo sagrado dos oprimidos. Alguns podem até dizer que eles pertencem ao círculo maldito dos opressores.
Uma forma de ilustrar essas ideias submersas a respeito dos judeus é através da comida. A comida, agora, é um campo de batalha da guerra cultural.
A apropriação cultural da comida – o uso de receitas e ideias originárias de culturas minoritárias por chefs e donos predominantemente brancos de restaurantes ocidentais – é um assunto muito debatido entre os progressistas.
E há muitos deles, como a jornalista e blogueira de culinária Ruth Tam, que escreveram sobre como (no caso dela, nos Estados Unidos) “a comida de imigrantes é frequentemente tratada como turismo de desconto – uma maneira barata para os gourmets se sentirem cosmopolitas sem deixarem o conforto de sua vizinhança – ou uma fusão bem-intencionada – uma maneira elegante de os chefs americanos usarem a culinária de outras culturas para obterem lucro”.
Se você pesquisar no Google “comida de apropriação cultural”, encontrará muito mais sobre esse assunto; e se quiser se aprofundar, adicione “chinesa”, “indiana” ou “caribenha” a sua janela de pesquisa, para exemplos específicos de preocupação e raiva.
A título de experiência, eu acrescentei a palavra “judia”. Apesar do fato – não mítico, completamente verdadeiro – de que os judeus são obcecados por comida, e apesar da apropriação de bagels, fígado picado, arenque schmaltz, canja de galinha e carne salgada por inúmeros estabelecimentos não judeus, particularmente nos EUA, eu não descobri sequer um único post de blog ou artigo de jornal ou tuíte reclamando disso, ou mesmo simplesmente identificando-o como algo a ser mencionado.
Encontrei alguns resultados de pesquisa, é claro. Eram artigos furiosamente acusando judeus, especificamente israelenses, de se apropriarem de comida palestina.
Os judeus, em outras palavras, mesmo na arena do roubo de receitas, são identificados como os ladrões, não os roubados: os opressores, não as vítimas.
Conteúdo editado por: Omar Godoy