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Por que a imprensa brasileira ainda não entendeu Olavo de Carvalho

O filósofo Olavo de Carvalho. (Foto: Arquivo/Gazeta do Povo)

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Depois de ter indicado dois ministros e ter seu best-seller “O Mínimo que Você Precisa Saber para não Ser um Idiota” exposto para quem quisesse ver na mesa do então recém-eleito Jair Bolsonaro, o filósofo Olavo de Carvalho começou a ser chamado de “guru” do presidente. Em 2019, não houve semana ou mês em que Olavo não estivesse em alguma manchete, ou porque um aluno seu assumira algum cargo no governo, ou porque disse algo que supostamente desabonasse algum membro da “situação”.

Mas teria Olavo realmente um plano de poder, uma influência cabal em Bolsonaro? Ou será que ele exerce um poder mais sutil que ainda não foi captado pelos jornais? Para tentar responder essa pergunta, vamos primeiro analisar o que o filósofo pensa sobre o poder; depois veremos se ele é mesmo um “guru” ou algo diferente disso.

A tentativa de sistematização do pensamento do filósofo encontra muitas dificuldades pois seus ensinamentos estão dispersos em aulas, livros, artigos e até posts de Facebook. Logo, reservo-me o direito de citar muitas coisas de cabeça e que poderão mais tarde ser corrigidas e complementadas conforme a necessidade. Ademais, para evitar a pedanteria, escreverei como se fosse ele mesmo a explicar o assunto – alguém aguentaria o texto depois do décimo “segundo Olavo”? Bom, feito o mea culpa, vamos ao que interessa: o que Olavo de Carvalho pensa sobre o poder?

Em primeiro lugar, em português, a palavra “poder” é ao mesmo tempo um substantivo e um verbo, e isso nos dá uma indicação preciosa sobre sua natureza. Em sua característica mais elementar, poder é poder fazer algo – é a capacidade efetiva que alguém tem de modificar uma situação. Logo, o poder mais básico que o ser humano tem é aquele que ele exerce sobre seu próprio corpo.

Numa relação interpessoal, só há três formas de exercer um poder sobre outra pessoa. Em primeiro lugar, podemos simplesmente usar a ameaça de um dano a outrem, ou mesmo causá-lo, por exemplo, “se você não fizer o que lhe peço, vou te arrebentar”, ou matar o seu cachorro etc. Já uma alternativa mais sofisticada seria seduzir o outro a fazer o que queremos; por exemplo, sendo gentil com ela, deixando implícito alguma contrapartida, oferecendo uma recompensa, etc. E, por último, por sermos animais racionais, podemos convencer a pessoa que tal ação é a melhor a se cumprir, por este e aquele motivo, segundo tal ou qual fundamento.

O poder de causar dano costuma ter uma aceitação quase que imediata, mas é de curta duração – pois tão logo nos vemos livres da ameaça, deixamos de querer obedecer a ordem. O poder de atração não tende a ser aceito imediatamente, mas, como temos a promessa de uma satisfação, continuamos a aceitar a ordem por mais tempo – enquanto for conveniente. Pela própria necessidade das várias explicações e fundamentações, o poder de persuadir é o que demanda mais tempo para ser exercido, mas é também aquele cuja duração na história tende a prevalecer. É só lembrarmos de Moisés, que há mais de 2.000 anos desceu da montanha com os Dez Mandamentos – e muita gente os segue até hoje.

A substância efetiva de cada poder varia em cada ser humano e existe a possibilidade de simular cada um deles – ao menos até que se descubra o truque. Por mais sofisticada que seja a nossa sociedade, podemos sempre reduzir, ou classificar, a forma de ação de um homem sobre outro nos termos acima.

Assim são, portanto, resumidamente os poderes de que o ser humano dispõe para fazer valer sua vontade: a punição, a sedução e o convencimento.

A teoria hindu das castas

A ideia não é nova. Ela está presente na teoria hindu das castas. Que, se compreendida partindo dos aspectos mais básicos da realidade, torna-se uma ferramenta bastante flexível para entendermos as mais diversas formas sociais. (Valeria a pena relacionar essa teoria com a ideia grega da busca do bem, do belo e do verdadeiro, mas a correspondência é mais ou menos evidente).

Grosso modo, a teoria hindu classifica as pessoas em quatro castas: os brâmanes (responsáveis pelo guiamento intelectual e espiritual da sociedade); os xátrias (responsáveis pela proteção e manutenção da ordem da sociedade); os vaixás (responsáveis pela produção e distribuição de bens); e os sudras (que são aqueles que só têm à sua disposição a força física e, portanto, servem as demais castas; em suma, operários, camponeses e demais atividades servis).

Se acontece o infortúnio de o sujeito não se adequar em nenhuma dessas castas, ele se torna um pária.

Mesmo se tivermos uma cultura de almanaque, não é difícil de enxergar as quatro castas acima na divisão feudal da sociedade, respectivamente: o clero, a nobreza, os comerciantes e artesãos e, por fim, os camponeses.

A nossa sociedade, que deriva daquela, não deixou de ter as mesmas “classes”, com a diferença de que, na modernidade, é mais fácil para o indivíduo a mudança de uma classe para outra. A configuração da nossa sociedade seguindo essa classificação é mais ou menos a seguinte, na ordem: jornalistas, universitários e escritores; militares, burocracia e mandantes eleitos; industriais e banqueiros; assalariados em geral. Note que neste sistema podem ocorrer conflitos, mas também colaboração entre as castas, dependendo dos interesses que estão em jogo. Não podemos afirmar, no entanto, apenas com essa classificação, qual classe prevalece em nossa sociedade, para isso teríamos de examinar concretamente as relações de poder entre elas. Essa estrutura, que teve sua fixação do século XIX até o final do século XX, parece estar se transformando nesse novo milênio (não é por acaso que as pessoas sentem-se num período de incerteza), mas para todos os efeitos ainda é bastante visível.

Um retrato do mundo

O filósofo francês Bertrand de Jouvenel, em seu livro O poder – história natural do seu crescimento, mostra que, independentemente da forma de governo, no final, o Estado sempre aumenta seu poder sobre a sociedade. Nesse sentido, os avanços técnicos, longe de ser apenas o aumento do domínio do homem sobre a natureza, é também e sobretudo o aumento do poder do detentor da técnica sobre os outros homens que são privados dela. A Era Moderna, portanto, aumentou em muito a distância de poder entre quem está no topo da sociedade e quem está embaixo. Logo, o Estado tem hoje um poder acachapante sobre o cidadão. Um esboço disso pode ser lido nos artigos Quem nos governa, afinal?, O Estado e a razão, Herança e confusões, no site do filósofo.

Com a história caminhando nesta direção, não demoraria muito para as formas de poder crescerem tanto que superassem as fronteiras nacionais. De tal modo que hoje temos três forças que disputam o poder global: o russo-chinês (ou eurasiano), o ocidental e o islâmico. Coincidentemente, essas forças personificam de alguma forma os poderes mais básicos da teoria das castas: afinal, os agentes dessas forças são, respectivamente: a elite governante de Rússia e China, que costumam agir preferencialmente pela coação; a elite financeira ocidental; e as lideranças religiosas do Islã, uma vez que esta religião visa eminentemente transformar a sociedade por meio da sharia. Olavo resume essa tese no artigo Os donos do mundo, que pode ser lido em seu site.

(O termo globalismo, que ganhou notoriedade depois da eleição de Bolsonaro, é a designação mais ou menos imprecisa dessa forças que disputam a hegemonia global, e é atribuído mais frequentemente à ocidental.)

Em linhas gerais, é essa a visão de Olavo sobre o poder.

O poder de Olavo de Carvalho

Dentro dessa perspectiva, percebe-se por que a eleição de Bolsonaro foi tão comemorada pelo filósofo. Longe de ser a vitória de um pupilo, a ascensão do atual presidente representa uma contraposição do Brasil perante o cenário de disputa global desenhado acima. (E aqui me pergunto, sem resposta, se a ascensão dos governos populistas mundo afora não seriam uma espécie de rebelião dos sudras).

Contudo, não se pode dizer que Olavo é apenas um observador isento. Seu pensamento não tem muita penetração na mídia, mas seus livros nunca deixaram de vender e suas notinhas de Facebook têm grande alcance, inclusive no governo – como as sugestões ministeriais que citamos anteriormente. O poder adquirido pelo filósofo veio muito mais da força e da veracidade de suas ideias, que foram sendo ensinadas e repetidas e ouvidas por muita gente até terem a aquiescência quase que imediata de seus seguidores e alunos a qualquer post lançado no Facebook. Analisar a última notinha sem ter em conta o arcabouço teórico que as sustenta é o que geralmente cria tanta confusão sobre Olavo de Carvalho no debate público. (Antes que me perguntem, não é meu intuito aqui explicar, justificar ou declarar o vitorioso de cada treta.)

Entendendo o Olavo a partir de sua própria teoria, ele é um verdadeiro brâmane com poder efetivo; ou seja, suas palavras pesam.

Para entender claramente como isso acontece, teríamos de compreender de modo mais profundo seu trabalho como filósofo e descobrir o que ele pensa por verdade, por realidade, por discurso, e outros assuntos que estão no núcleo de sua filosofia e são quase indistinguíveis.

Mas isso é tema para um outro artigo, bem mais extenso e complexo que este.

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