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Por que a marmita de Moro não deveria surpreender os brasileiros

Moro e sua “quentinha”: simplicidade deveria ser regra entre agentes públicos, e nunca a exceção | Rodolfo Buhrer/REUTERS
Moro e sua “quentinha”: simplicidade deveria ser regra entre agentes públicos, e nunca a exceção (Foto: Rodolfo Buhrer/REUTERS)

Comportamentos que deveriam ser triviais para agentes públicos costumam ser vistos como exemplos de virtude no Brasil. Se o então presidente do Uruguai José Mujica vai de Fusca para o Palácio, logo há uma enxurrada de elogios ao “desapego” do vizinho. O prefeito de Londres foi de metrô para o trabalho? Nova reação do público nas redes sociais: “os daqui deveriam ser assim”. Se a filha de Barack Obama consegue seu primeiro emprego limpando mesas em um restaurante, queremos saber por que os filhos dos políticos brasileiros não fazem o mesmo. A última onda de encantamento coletivo com um bom exemplo, porém, trouxe uma novidade. Aconteceu com um agente público nacional. Foi o episódio da “quentinha do Moro”. 

No último dia 10 de maio, quando seguia para o depoimento do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, Sérgio Moro foi clicado carregando uma sacolinha de supermercado. A internet foi ágil em apurar o ocorrido. Lula nem havia saído do fórum e O Antagonista já publicava uma confirmação da esposa do juiz de que, pasmem, era realmente uma marmita que Moro carregava. 

A quentinha logo ganhou as redes sociais. Um post com a imagem foi compartilhado 26 mil vezes. Explorava a antítese entre o exemplo do ex-presidente Lula, que chegou a Curitiba para depor em um jatinho cedido por um amigo, e a simplicidade de Moro. Era o vício e a virtude postos lado a lado para deleite da audiência. 

Mas por que um exemplo tão trivial de conduta surpreende tanto por aqui? 

“O contraste entre a aparente frugalidade de um agente público e outros líderes desperta emoções porque a ostentação de riquezas e luxos aparece como um valor em si e também pela suspeita de que esse enriquecimento tem origem ilícita”, afirma Manoel Galdino, diretor-executivo da Transparência Brasil. 

Apesar da surpresa popular manifestada na internet, Galdino não acredita que seja a personalização da virtude na pessoa do juiz a saída para nossos problemas. “Devemos nos focar no aperfeiçoamento institucional para que indivíduos imorais não tenham oportunidade de cometer atos ilícitos”, diz.  

Acesso à informação

Galdino atribui o maior acesso à informação esse recente interesse dos brasileiros nos bons exemplos que deveriam ser regra não só para os agentes políticos, mas também para os servidores. “Há bastante questionamento sobre os super salários dos servidores públicos e sobre os "penduricalhos" que permitem burlar o teto constitucional. Esse questionamento é recente, em parte, porque faz apenas cinco anos que nós regulamentamos o acesso à informação pública e que nos permitiu ter acesso a esse tipo de distorção. Não raro a imprensa faz matérias sobre os super salários, inclusive de membros do judiciário”. 

E se o acesso à informação dá ferramentas para tornar a população mais crítica, pode revelar novos bons modelos a serem seguidos e maus exemplos a serem evitados. Para o doutor em Filosofia e professor de ética clássica da Universidade Federal de Uberlândia, Dennys Xavier, a valorização de uma atitude trivial como sendo exemplar seria uma um exemplo de que o Brasil está avançando, deixando de idolatrar o exemplo do “rouba, mas faz” para reconhecer posturas realmente virtuosas. 

Virtude ou populismo

Mas como separar uma postura de fato virtuosa do populismo? Seria esse comportamento admirado do juiz uma espécie de marketing? Para Dennys, essa é uma discussão secundária. Se a intenção do juiz com sua marmita era vender uma imagem de humildade, ou era algo totalmente espontâneo, não importa. Importa que ao cumprir esse papel ele externaliza o que esperamos dos servidores públicos e daí passamos a ter esse padrão como medida. 

“O comportamento ético se constrói com o hábito, não na teoria. A virtude se constrói na provação. É o que Aristóteles denomina exemplo do homem sério. Experimentado e admirado por agir virtuosamente. E por ensinar que a virtude jamais é uma conquista definitiva”, diz o professor. 

Para a jornalista Claudia Wallin, há 24 anos fora do Brasil e hoje vivendo na Suécia, o brasileiro ficou mais crítico nesses últimos anos em relação aos privilégios de políticos e servidores. Para ela, também houve avanços. “Tem uma lei de transparência e essa lei leva tempo pra ser consolidada. (Em 1993) era considerado normal um político com motorista particular. Não acham isso mais normal. Isso também é um processo”.

Segundo Claudia, “é curioso esse deslumbramento nacional com o fato de um servidor público ter levado uma quentinha para o trabalho. Mas é um gesto simbólico para uma população que está sendo massacrada por privilégios indevidos”. 

Apesar do exemplo inspirador, Claudia lembra que o Judiciário ainda tem muito a colaborar para uma mudança prática. 

“O ato mais contundente seria abrirem mão de benefícios fabulosos que são atribuídos a eles. Férias de sessenta dias. Adicionais em salários que já são bastante altos. E o imoral auxílio-moradia. E vamos lembrar também que juízes e procuradores ganham acima do teto constitucional. Tem juízes que chegam a ganhar 150 mil por mês”, critica a jornalista. 

Claudia é autora do livro “Um País Sem Excelências e Mordomias”, lançado em 2014, relatando a vida dos políticos suecos. Comparada à realidade brasileira, as histórias contadas na publicação parecem ficção. Políticos e servidores são cidadãos comuns que vivem como os demais cidadãos. Levam sua própria comida para o trabalho e pagam aluguel. E por isso mesmo um fato como o ocorrido no último dia 10 de maio nunca seria notícia ou motivo de debates por lá. 

Mas para o Brasil ela considera simbólica a surpresa que precisa gerar outras mudanças para não colocar em xeque as intenções desses pequenos atos. 

“Esses exemplos, que deveriam ser normais, são bem vindos. O que a população espera é que se cortem essas regalias amazônicas. Sem isso, esses pequenos atos positivamente simbólicos podem abrir espaço para a interpretação de que são apenas gestos demagógicos.” 

A jornalista também chama a atenção para a institucionalização da vigilância pública. Pois até na Suécia — respeitadas as devidas proporções — há escândalos envolvendo agentes públicos. O mais recente obrigou o secretário-executivo do Partido Moderado a reembolsar o Estado pelo uso das milhas das passagens de trem gastam por ele em viagens particulares. Ele pediu desculpas e sofreu execração pública. Como disse Claudia Wallin, “até na Suécia, que é uma democracia consolidada, estão sempre fiscalizando”.

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