Cena do clipe Jenifer: hedonismo desenfreado| Foto: Divulgação

Daqui a alguns dias, talvez um pouco mais naqueles lugares onde o Carnaval avança Quaresma adentro, você não ouvirá mais o sucesso do verão “Jenifer”. Que pena ou ainda bem é uma questão de gosto. Porque faz tempo que é assim: certa música surge ainda no fim do ano anterior, aparece no Fantástico, explode em janeiro, se arrasta até o Carnaval e entra em coma ou morre na Quarta-feira de Cinzas. Ainda bem. 

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O sucesso do verão 2018-2019 foi composto a oito mãos e supostamente quatro cérebros e conta com apenas quinze versos divididos em quatro estrofes. Nada rimado e com uma métrica sui generis para se adequar ao ritmo que só consigo classificar como tecnobrega. A música é estridentemente cantada, e a estridência aqui faz mais sentido do que imagina o leitor. Não se trata apenas do “estilo vocal” do cantor Gabriel Diniz. É raiva. Pura e simples raiva. 

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O que vem a calhar. Minha teoria, já há algum tempo, é a de que o “hit do verão” sempre traduz um pouco um sentimento que está no ar, algo intangível e inefável, aquilo que Jung chamou de “inconsciente coletivo” e que outros enchem a boca para chamar de zeitgeist. Talvez até por isso essas músicas sejam vistas com desdém pelos críticos e acadêmicos: a lírica apressada, atabalhoada, grudenta e irremediavelmente tola tem esse poder de exprimir algo que os intelectuais só serão capazes de formular, com as devidas vênias, notas de rodapé e bibliografia em cinco idiomas, daqui a bons dez anos.

(Pecado do qual, por sorte, o jornalismo não padece). 

E o que “Jenifer” expressa com sua letra que rima “aí” com “peraí” e “contas” com “conta” é raiva, ressentimento e aquela sugestãozinha de vingança que culmina no incontornável hedonismo brasileiro. 

Hierarquia de valores

Já no começo o eu-lírico nos assusta com a imagem de uma mulher anônima que dele se aproxima “xingando” e “enchendo o saco”, perguntando “quem é essa perua aí?” Alguém neste exato momento pode estar pensando que se trata de uma imagem machista: a mulher histérica e ciumenta “dando piti” e partindo para cima do homem fragilizado e a caminho da emasculação. Mas eu prefiro uma interpretação mais ampla e simples: a mulher, quem quer que seja, está com raiva. De tudo e inclusive de si mesma. 

Mais do que isso, ela é uma pessoa narcisista que não consegue aceitar o fato de ter perdido o namorado, amante ou ficante. Ela não lida bem com a separação, que vê como abandono. Ela não compreende que talvez ele tenha visto em outra mulher qualidades que para ele são essenciais e que evidentemente faltam a ela. Mas adiante, fica claro que tais “qualidades” são as mais rasteiras e vulgares possíveis. Chegaremos lá. 

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Ameaçado, o quase emasculado homem responde com o argumento mesquinho e pragmático de que a mulher furiosa não paga as contas dele. Isto é, ele não depende financeiramente dela. Repare que a dependência emocional não é nem cogitada. Na terrível hierarquia de valores da contemporaneidade, o saldo bancário está acima do saldo afetivo. Num arroubo poético, rimando “contas” com “conta”, o eu-lírico então conclui que “não é da conta” da moça à beira de um ataque de nervos o que ele faz ou deixa de fazer na vida. O que dá a atender que ele sente que só tem de prestar contas a quem provê. 

É uma lógica torta e imoral, ainda que muito presente na política, em questões de cidadania e até mesmo em questões “espirituais”. É o que prega, por exemplo, certa teologia da prosperidade: o homem deve obediência a Deus não porque Deus seja a manifestação do mais absoluto amor, e sim porque Deus provê. E não se trata de prover o pão nosso de cada dia, como consta no Pai Nosso; trata-se de prover tudo o que é supérfluo, dispensável, banal, mas extremamente prazeroso. 

Mesmo assim, diz o eu-lírico, mesmo sem ter obrigação, num gesto que ele vê como generosidade e talvez até condescendência para com a mulher irritada, ele se propõe a explicar o que o leva àquele lugar, seja lá onde for. E é aí que entra a Jenifer do título. 

Tratado sócio-econômico

No clipe que tive o questionável prazer de assistir para escrever este texto, Jenifer é uma moça muito simpática e certa de si, a despeito ou talvez justamente pelo porte, digamos, renascentista. Na música, ela é caracterizada por apenas duas coisas: o nome e as “paradas” que ela faz. O nome, aqui, é mais que um nome, claro. É praticamente um tratado sócio-econômico – o que talvez explique o sucesso da música. No Brasil de 2019, uma mulher se chamar Jenifer (ou qualquer uma de suas variações: Jennifer, Jenyfer, Jennypher, etc.) diz muito sobre sua origem, sua formação, sua visão de mundo e suas ambições. Mais do que um nome, Jenifer é uma instituição: aquilo que o pessoal no Ministério do Planejamento chamava de Classe C (independente da classe social das Jenifers específicas) e também o público-alvo de um populismo muito atual, que se aproveita justamente da raiva que descrevi alguns parágrafos acima. 

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Jenifer, esclarece o eu-lírico, não é a namorada dele, mas poderia ser. Este “verso” sugere várias coisas. Primeiro, sugere que o eu-lírico estaria disposto a um comprometimento afetivo, o que é uma forma de atiçar ainda mais a raiva da mulher que lhe cobrava explicações. Por outro lado, o futuro do pretérito denota uma possibilidade remota, talvez porque o eu-lírico, no fundo, ainda se sinta em débito com a mulher-fera. E, por último, a sugestão é a de um hedonismo desenfreado, um completo desatrelamento sexual e afetivo, uma coisa à toa, sem maiores consequências. Brasileiro nunca vê consequência em nada. 

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Até que o eu-lírico, num gesto de perversidade que também está presente no inconsciente coletivo (zeitgeist, espírito do tempo, chame como quiser), resolve enfiar uma adaga no orgulho da mulher furiosa dizendo que a outra, a Jenifer, aquela que o eu-lírico conheceu no Tinder, por acaso e por obra do algoritmo, é melhor porque “faz umas paradas que eu não faço com você”. “Umas paradas”, no caso, é o inominável, o indigno, o ilícito, o oculto; é tudo o que está imerso em escuridão. 

“Jenifer”, sem saber e muito provavelmente sem querer, acaba por resumir o brasileiro contemporâneo: por um lado, ele é afetivamente descompromissado, escravo dos seus instintos mais básicos, primitivos e vulgares, disposto a estabelecer um relacionamento com qualquer coisa ou pessoa ou até entidade que faça suas vontades, que se sujeite a esses mesmos instintos básicos, primitivos e vulgares. Por outro, ele sente raiva, nada menos do que raiva, de tudo aquilo que um dia disseram que era sinônimo de felicidade, como a independência financeira, emocional e espiritual, a liberdade sexual e o hedonismo inconsequente de todos os fins de semana.

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