A ciência é alvo de críticas vindas de todos os lados hoje em dia. À direita estão as vozes que questionam a realidade da mudança climática e colocam em dúvida a teoria da evolução. À esquerda, os que discursam contra as vacinas e temem os alimentos transgênicos. Aqueles que aceitam a autoridade da ciência veem as verbas para pesquisas científicas sendo postas em risco, sem poderem fazer nada, e lamentam a influência deturpadora da ideologia política sobre as ideias de seus concidadãos.
Dois livros novos vieram intervir nesta situação lamentável, e cada um se baseia em um conjunto de pesquisas para fazer a mesma afirmação surpreendente: que a incompreensão e a negação da ciência não se devem exclusiva nem mesmo principalmente à ideologia. Em vez disso, a ignorância científica nasce de certas características inatas à mente humana – às mentes de todos nós.
Erros cognitivos
É verdade que essa notícia não chega a ser animadora. Pesquisas em ciência cognitiva revelam que “a capacidade humana não é tudo o que aparenta ser e que a maioria das pessoas é altamente limitada em seu modo de trabalhar e no que é capaz de realizar”, escrevem Steven Sloman e Philip Fernbach, autores de “The Knowledge Illusion” (A ilusão do conhecimento). Eles argumentam que “há limites grandes à quantidade de informação que um indivíduo é capaz de processar” e que “as pessoas frequentemente são destituídas de habilidades que podem parecer básicas”. Mais ainda, dizem os autores, não está claro se essas habilidades “poderão ser aprendidas algum dia”.
No entanto, este livro, juntamente com outro título recente, “Scienceblind” (Cegueira científica), oferecem algumas migalhas de esperança ao leitor. Se não é a ideologia política que gera o analfabetismo científico, mas sim erros cognitivos, talvez possamos encontrar maneiras de consertar nossas “falhas técnicas” mentais sem mergulhar na política – o lugar onde as boas intenções morrem.
O autor de “Scienceblind” é Andrew Shtulman, professor de psicologia e ciência cognitiva no Occidental College. Sua pesquisa trata das teorias intuitivas, que ele descreve como “nossas explicações não aprendidas sobre como funciona o mundo”. Essas explicações constituem “nossos melhores palpites sobre o porquê de observarmos os fatos como os observamos e como podemos intervir neles para modificá-los”, escreve Shtulman. As teorias intuitivas nos ajudam a viver; elas funcionam razoavelmente bem, segundo o cálculo tosco da sobrevivência.
Teorias intuitivas
O problema é que nossas teorias intuitivas frequentemente estão equivocadas, cientificamente falando. Desconfiamos que contraímos um resfriado porque nos encharcamos numa chuva fria. Supomos que o calor seja mais intenso no verão porque a Terra está mais perto do Sol. Abraçamos as teorias intuitivas porque, nas palavras de Shtulman, “somos criados de modo a apreender o ambiente que nos cerca de maneiras úteis para a vida diária, mas essas maneiras não correspondem ao verdadeiro funcionamento da natureza.”
Muitas de nossas teorias intuitivas se formam ainda na infância, antes de recebermos instrução científica formal. E, porque todas as crianças se deparam com o mesmo mundo físico, interpretado através dos mesmos equipamentos biológicos limitados, elas tendem a formular ideias semelhantes sobre o funcionamento do mundo (criando uma realidade social compartilhada que deixa as teorias intuitivas ainda mais arraigadas).
Tomemos, por exemplo, o modo como uma criança entende o calor. As crianças geralmente concebem o calor como sendo propriedade de um objeto em particular: uma batata assada é quente, enquanto um cubo de gelo não é. Seus sentidos visuais e tácteis não lhes dão nenhum indício de que o calor é, na realidade, uma propriedade geral da matéria, sendo produzido pela fricção entre moléculas em movimento. “É claro que ensinamos uma teoria molecular da matéria às crianças, mas apenas quando chegam ao ensino médio, quando já construíram uma teoria instintiva do calor”, observa Shtulman. Ele diz que iniciar o ensino da ciência mais cedo não daria certo, porque “as crianças não possuem os conceitos necessários para codificar a informação científica que poderíamos transmitir a elas”. Além disso, estudos realizados com crianças muito pequenas “sugerem que muitas de nossas expectativas em relação ao movimento e à matéria são inatas”.
Mudança conceitual
Mesmo após anos de estudo, nossas expectativas em relação ao mundo físico – as expectativas com que nascemos e as que desenvolvemos na primeira infância – continuam a nos dominar. De fato, pesquisadores como Shtulman hoje acreditam que nunca substituímos nossas teorias instintivas. Em lugar disso, vamos ficando progressivamente mais hábeis em inibi-las. Isso significa que as tentativas de educar estudantes e o grande público precisam “forjar um caminho”, na frase usada pelo autor, entre a teoria intuitiva do novato e a compreensão científica do perito.
Ele sugere que isso pode ser conseguido com o uso da “instrução conceitualmente informada” – ou seja, estratégias de ensino com base empírica, como “analogias que lançam pontes”. Essas analogias começam com cenários que fazem sentido intuitivo (uma mola exerce uma força para cima contra um livro colocado sobre a mola) e, pouco a pouco, se ampliam para incluir noções que, apesar de serem cientificamente inatacáveis, em um primeiro momento nos parecem implausíveis (uma mesa exerce uma força para cima contra um livro que está sobre ela).
Embora essa “mudança conceitual” seja difícil de realizar e possivelmente nunca se complete, vale a pena tentá-la, Shtulman conclui, porque as teorias científicas “nos fornecem conceitos da realidade fundamentalmente mais precisas e, assim, ferramentas fundamentalmente mais poderosas para prever e controlar a realidade” do que poderiam as teorias intuitivas. Quanto melhor entendemos o equilíbrio térmico, maior é a probabilidade de otimizarmos nossas práticas de aquecimento e resfriamento de nossas casas. Quanto melhor entendemos os mecanismos biológicos da transmissão de resfriados e gripe, maiores são as chances de tomarmos precauções para não adoecer.
Visão de mundo científica
Contudo, para buscar uma visão de mundo que seja mais cientificamente informada, precisamos reconhecer que nossa visão atual é inexata ou inadequada – e, argumentam os autores de “The Knowledge Illusion”, essas percepções são muito raras. Pesquisas de ciência cognitiva demonstram que “o conhecimento individual é notavelmente superficial, apenas riscando a superfície da verdadeira complexidade do mundo; mesmo assim, frequentemente não nos damos conta de quão pouco sabemos”, escrevem Sloman, professor de ciências cognitivas, linguísticas e psicológicas na Universidade Brown, e Fernbach, cientista cognitivo e professor de marketing na Leeds School of Business da Universidade do Colorado.
Como as teorias intuitivas, a “ilusão do conhecimento” – o senso de que sabemos mais do que sabemos de fato – confere aos humanos uma maneira tosca de lidar com um universo complexo. Podemos ficar felizes porque nossos ancestrais, confrontados com uma avalanche, não pararam para refletir que sabiam muito pouco sobre a gravidade. Em nosso mundo moderno, porém, a falsa percepção de saber mais do que sabemos encerra um conjunto próprio de perigos.
A ilusão do conhecimento – frequentemente descrita por acadêmicos como “a ilusão da profundidade explicativa” – foi revelada primeiramente por estudos sobre quão bem (ou, melhor dizendo, quão mal) pessoas entendiam o funcionamento de objetos do dia a dia, como grampeadores, velocímetros, teclas de piano, fechaduras de portas e descargas de sanitários. Os psicólogos Frank Keil e Leon Rozenblit descobriram que, embora as pessoas presumissem entender como esses itens operam, na realidade não faziam a mínima ideia. Quando tentavam explicar o funcionamento desses objetos – ou seja, tentavam refletir sobre processos aos quais antes só tinham dedicado atenção superficial --, os participantes nos estudos de Keil e Rozenblit acabaram reconhecendo que, na realidade, não sabiam nada sobre o assunto.
Partindo da pesquisa de Keil e Rozenblit e avançando mais, Sloman e Fernbach descobriram que esse mesmo equívoco de percepção se aplica também a fenômenos mais abstratos, como política fiscal e relações exteriores, além de tópicos carregados de significado político, como mudança climática e organismos transgênicos. Como é o caso de nossas teorias instintivas, o desenvolvimento de um entendimento mais profundo desses temas não é um processo simples de substituir ou complementar informações inexatas ou incompletas. Os esforços pouco sofisticados de educar as pessoas sobre esses temas frequentemente são ineficazes, podendo até ter resultado contrário ao desejado. Sloman e Fernbach descrevem um estudo em que pais aos quais foram mostradas imagens de crianças com sarampo, caxumba ou rubéola ou apresentada uma história emotiva sobre uma criança que contraiu sarampo acabaram, na realidade, ficando mais convencidos dos perigos das vacinas preventivas.
Bloqueios mentais
Mais uma vez, pesquisas em ciência cognitiva nos indicam uma maneira mais inteligente de passar ao largo de nossos bloqueios mentais. Basta pedir às pessoas que expliquem como funcionam as vacinas, como funciona um sistema de saúde pago pelo governo ou como funcionaria um imposto nacional de alíquota única para elas imediatamente se darem conta de quão pouco sabem sobre esses sistemas. Isso torna as pessoas mais humildes e mais receptivas a informações que contestam as crenças que elas antes expressavam com tanta veemência.
Os autores de “The Knowledge Illusion” e “Scienceblind” descrevem as pesquisas de Michael Ramney, psicólogo na Universidade da Califórnia em Berkeley. Segundo Sloman e Fernbach, Ramney “abordou 200 pessoas em parques de San Diego e fez uma série de perguntas para avaliar até que ponto entendiam o mecanismo da mudança climática. Apenas 12% dos entrevistados deram respostas mesmo apenas parcialmente corretas, mencionando os gases atmosféricos que prendem o calor. Essencialmente, ninguém conseguiu dar uma explicação completa e precisa do mecanismo.” Ramney então deu aos participantes um texto curto (ou, em estudos posteriores, lhes mostrou um vídeo) explicando como ocorre a mudança climática. Esse processo em dois passos, dizem Sloman e Fernback, “aumentou tremendamente o entendimento das pessoas e sua aceitação da realidade da mudança climática provocada pelo homem”.
Nesse experimento, Sloman e Fernbach veem a ilusão do conhecimento ser exposta e corrigida. Shtulman, enquanto isso, vê nossas teorias instintivas sendo confrontadas e rearticuladas. Intuitivamente, “não pensamos na Terra como algo que precise de proteção”, ele explica. “Como podemos fazer mal a um objeto que é aparentemente eterno?” A explicação clara dada por Ramney de como estamos, de fato, fazendo mal à Terra com a produção de gases estufa leva nossos impulsos intuitivos a se deslocarem no sentido de querer proteger o planeta em risco.
Embora foquem sobre defeitos diferentes no sistema operacional humano, os autores desses dois livros chegam à mesma solução: para nos afastarmos da ignorância e avançarmos no sentido do conhecimento, precisamos enfrentar diretamente aquilo que Sloman e Fernbach chamam de “as forças motrizes” de nossa ignorância. Surpreendentemente, desta vez, essa ignorância é fruto não de nossa política, mas da história evolutiva do nosso cérebro. Quem poderia imaginar que, como disse o presidente Trump recentemente, aludindo ao sistema de saúde, “as coisas poderiam ser tão complicadas”?
*Anne Murphy Paul, autora de "Origins: How the Nine Months Before Birth Shape the Rest of Our Lives", escreve sobre ciência