Dizer que alguém está “chutando gato morto”, em bom português, dificilmente significa que o interlocutor em questão está, de fato, distribuindo pontapés em cadáveres felinos. O mesmo se aplica a “engolir sapo”, ter “boca de siri” ou “comprar gato por lebre”. Sem entrar no mérito da aplicação do termo, é muito difícil imaginar que alguém que se utilize do adjetivo “galinha” o faça por um desprezo especial à ave, tal como quem classifica um pretendente como “gato” não precisa, necessariamente, ser fã dos bichanos.
Para a ONG internacional People for Ethical Treatment of Animals (PETA - ou Pessoas pelo Tratamento Éticos dos Animais, em tradução livre), todas essas expressões incorporadas em diversos idiomas são manifestações de “especismo”. Segundo a organização, especismo é a crença errônea de que algumas espécies são mais importantes do que outras.
“Em seu livro inovador, Libertação Animal, o filósofo Peter Singer define especismo como ‘um preconceito ou atitude tendenciosa a favor dos interesses dos membros de sua própria espécie e contra os de membros de outras espécies’”, explica um texto sobre o assunto no portal da PETA. “Todos os animais merecem igual consideração, independentemente da opinião dos humanos sobre eles. Embora a maioria de nós tenha estado mergulhada no especismo ao longo de nossas vidas, podemos - e devemos - superar essa forma destrutiva de pensar”.
Além da culpabilização moral não apenas por maus tratos, mas pelo consumo de quaisquer espécies ou produtos de origem animal (já que os humanos, por este prisma, não têm o “direito de roubar” os ovos de uma galinha), a nova aplicação prática desta teoria, segundo a PETA, é evitar expressões “especistas”. “Substitua ‘rato’ por ‘dedo duro’; ‘galinha’ por ‘covarde’, ‘cobra’ por ‘idiota’”, propõe uma publicação da ONG.
“As palavras têm o poder de criar um mundo mais inclusivo ou normalizar a violência”, descrevia o post, que expõe a lógica pós-modernista segundo a qual discursos são, sempre, expressões concretas de poder. “Chamar alguém de animal como um insulto reforça o mito de que os humanos são superiores aos outros animais e justificam sua violação. A linguagem especista não é apenas prejudicial, também é imprecisa. Porcos, por exemplo, são inteligentes, levam vidas sociais complexas e mostram empatia por outros porcos em perigo. As cobras são espertas, têm relacionamentos familiares e preferem se associar com seus parentes em vez de estranhos”, argumenta a organização.
A comunidade moral dos animais
Basta alguma observação da vida prática para se refutar a proposta linguística de proteção aos animais. Mais improvável do que ver um teimoso, literalmente, “chutando gatos mortos”, é ensinar (sem algum esforço autoritário) populações inteiras a abrir mão de expressões arraigadas em nome do benefício irrisório, como se houvesse garantia de que trocar “galinha” por “promíscua” fosse levar muita gente a deixar de comer frango. Mas a filosofia dos que propõe o “especismo” - a perfeita igualdade entre humanos e animais - vai além desta proposta.
É verdade que há espécies de animais não-humanos que, por razões evolutivas, apresentam comportamentos sociais similares aos dos seres humanos: das formigas e abelhas organizadas em comunidades complexas aos golfinhos capazes de reconhecer a própria imagem no espelho. Há evidências de que primatas, os parentes mais próximos dos humanos, apresentam comportamentos que denotam vagas noções de justiça (como distribuir alimentos conforme a necessidade do membro ou punir os que se recusam a cooperar com obando); bem como a de que cães respondem ao chamado dos donos com afeto.
Nada disso, entretanto, é suficiente para conferir aos animais o status moral dado ao homem. Como explica o filósofo Francisco Razzo, colunista da Gazeta do Povo, “por definição, ser ‘alguém’ significa ser capaz de desenvolver os atribuídos de ‘autonomia’, ‘autoconsciência’, ‘vontade’ (capacidade de deliberar sobre um meios e fins) e, em relação às leis da natureza, ser capaz de ‘quebrar’ essas leis e reconhecer a si mesmo como sujeito de uma cultura, de uma tradição, de uma história”.
“O homem não se limita ao plano físico e biológico, pois está aberto ao plano moral, político e espiritual. Nesse sentido, só o homem consegue ultrapassar sua condição natural, representar na sua consciência a totalidade e desejar compreender o passado, o presente e o futuro. Há uma superioridade qualitativa entre seres humanos e animais que não tem nada a ver com evolução biológica”, explica.
É por esta razão que os animais não são considerados membros de uma comunidade de direito. Se o cachorro de estimação de uma família fere o gato de outra, quem responderá pelo ato serão seus donos, não uma comunidade de cães e gatos capazes de avaliar se o felino fez ou não por merecer a mordida - ainda que o cão envolvido seja um Border collie, a raça mais inteligente do mundo.
Além disso, conceder aos animais a categoria de pessoa e equipará-los aos seres humanos apenas com base em critérios biológicos, como a capacidade de sentir dor ou demonstrar afeto, implica, pela lógica, em reduzir o status pessoal a essas condições. Em outras palavras, se o direito inalienável à vida, por exemplo, justifica-se pela habilidade de construir comunidades, como fazem as abelhas, uma criança com severo grau de autismo está excluída deste grupo (não por acaso, o filósofo Peter Singer é um notório defensor do aborto).
“Se tentarmos aproximar a vida animal e vegetal da humana, ou mesmo colocá-las juntas, dificilmente poderemos evitar o perigo de considerar e tratar a vida humana, mesmo quando realmente queremos ajudar, do aspecto animal e vegetal e, portanto, de uma forma que não é realmente apropriada”, avalia o filósofo Karl Barth.
Pelos direitos dos animais, contra o “especismo”
Nada disso, entretanto, invalida a discussão sobre os direitos dos animais. Não à toa, há conservadores profundamente engajados com o tema. Alguns defendem, inclusive, o fim da criação em larga escala de animais para consumo.
Em resposta ao livro Domínio: O Poder do Homem, o Sofrimento dos Animais e o Chamado à Misericórdia, do jornalista e escritor vegano Matthew Scully, o padre Richard John Neuhaus, um influente crítico cultural liberal, morto em 2009, escreveu:
“A melhor parte do livro, que foi escrito a partir de uma maneira expressamente cristã e conservadora de ver o mundo, é sua afirmação de que a moralidade do tratamento humano dos animais não reside (...) sobre os animais serem iguais aos seres humanos, mas precisamente sobre eles serem desiguais e, portanto, tão dependentes e vulneráveis. É por isso que o subtítulo fala de ‘o chamado à misericórdia’ em vez de ‘o chamado à justiça’”.
É porque somos humanos detentores de direitos - bem como da capacidade de sentir compaixão e advogar por justiça, para além dos nossos instintos primitivos - que os estendemos a outras criaturas, e não o contrário.
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