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Covid-19

Por que a Suécia, rebelde, acertou durante a pandemia e poupou seus cidadãos

Anders Tegnell, chefe de epidemiologia da Suécia
Anders Tegnell, chefe de epidemiologia da Suécia (Foto: EFE/EPA/Jessica Gow)

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Em 2021, o governo britânico teve de pedir desculpas a seus cidadãos por ter usado neles técnicas de incitação ao pânico para que obedecessem às regras estritas de confinamento, distanciamento e uso de máscaras na pandemia. Houve toda uma elucubração acadêmica por trás do engodo amedrontador, dos modelos matemáticos de resultados exagerados à teoria do “empurrãozinho”. O escândalo só perdeu para o “partygate”, a revelação de que o primeiro-ministro Boris Johnson dava festinhas cheias de gente enquanto ordenava à população que ficasse isolada em casa.

Mas houve um momento em que os britânicos sinalizaram que agiriam diferente, no começo de 2020. Eles, junto com a maior parte do mundo, perderam a oportunidade de seguir o exemplo da Suécia, que ousou manter as liberdades na maior parte intactas diante da ameaça viral e continuou um ponto fora da curva até a respeito da vacinação de crianças contra Covid-19. O mundo condenou a Suécia, que quase sozinha nadou na contramão. E agora o mundo terá de reconhecer que errou.

A história de como foi possível que a Suécia fosse tão independente está contada no livro The Herd, lançado em março pelo jornalista e escritor sueco Johan Anderberg. Em tradução livre, o título completo é O Rebanho: como a Suécia escolheu seu próprio caminho na pior pandemia em 100 anos.

Anders Tegnell, o teimoso 

Após as férias escolares de fevereiro de 2020, quatro autoridades se reuniram na Suécia para conversar a respeito de medidas de contenção para o vírus que já fazia estrago na Itália e na Espanha. Jan Albert, professor de controle de doenças infecciosas no Instituto Karolinska; Johan von Schreeb, celebridade da medicina sueca que fundou a seção local dos Médicos Sem Fronteiras e ganhara o título de ‘sueco do ano’ em 2014 pela revista Fokus; Denis Coulombier, francês chefe de departamento do Centro Europeu de Prevenção e Controle de Doenças (ECDC), com sede na Suécia; e o último a chegar na reunião de 6 de março, Anders Tegnell, chefe de epidemiologia do Estado.

As projeções que Jan fez para Estocolmo eram preocupantes: “Há uma oportunidade para agir agora”, disse ele. Um em cinco hospitalizados precisou de tratamento intensivo na Itália, complementou Johan. A volta das crianças à escola será um evento amplificador de infecções, advertiu Denis.

“Não há necessidade”, respondeu Anders, para espanto dos outros três. Ele ainda não tinha visto transmissão comunitária, suecos contaminando suecos. Até as ações anteriores de Anders pareciam contradizer essa postura, pois ele havia vacinado toda a população da Suécia contra a gripe suína em 2010. Ninguém mais fez isso no mundo. Talvez foi justamente essa ação uma das lições que o epidemiologista levou em conta. Centenas de jovens sofreram de narcolepsia em consequência daquela vacina, enquanto a gripe suína se revelou leve e logo caiu no esquecimento.

Colegas de trabalho de Anders Tegnell, segundo o livro, dizem que ele é prudente, controlado e calmo diante da pressão e do estresse. Esse sexagenário se descreve como um homem “quadrado”, às vezes desenhando um quadrado no ar. Ele sempre preferiu os pacientes que querem mensagem clara e objetiva aos que demandam que ele doure a pílula e amenize a situação. Para a sua carreira, já tinha vivido na Etiópia e no Laos, então ele já havia passado por dificuldades. No curso do caminho que o levou a ser assim e decidir remar contra a maré na pandemia, ele teve grande influência de Johan Giesecke, seu predecessor na posição de epidemiologista da Agência de Saúde Pública da Suécia, que é também seu mentor.

Os dois se conheceram nos anos 1990 em uma reunião de epidemiologistas. Quando Anders, ainda com o bronzeado do Laos, abriu a boca, seu futuro mentor pensou “Uau. Este rapaz é completamente apolítico” – o que era um elogio. “Quero ele. Vai trabalhar em Estocolmo”. Vinte anos depois, em 2013, o aprendiz ocupou a cadeira do mestre.

A voz da experiência 

No primeiro capítulo, Johan Anderberg apresenta assim o mentor de Anders Tegnell: “Muitos médicos foram forçados à profissão pelos pais. Conheceremos alguns desses neste livro. Para Johan Giesecke, foi o contrário. Quando ele voltou para casa um dia e disse que queria estudar medicina, seu pai respondeu ‘Por quê?’ ‘Quero trabalhar com pessoas’”, respondeu Giesecke. Seu pai, influente na Suécia, preferia que o filho um dia fosse patrão na Ericsson ou na Volvo.

Não só Giesecke virou médico contrariando o pai, como se casou com uma médica e fez com ela três filhos que também viraram médicos. Ele se tornou o primeiro cientista chefe do ECDC, que ajudou a fundar. Como epidemiologista da agência sueca, ele enfrentou o HIV, e as gripes asiática, suína e aviária, e testemunhou a gripe asiática (também de coronavírus) na própria China no começo do milênio. Já aposentado, aos 70 anos, ele descobriu sobre o novo coronavírus em janeiro de 2020, visitando um site de interessados em patógenos que frequenta desde que a internet foi criada.

Naquele mês, a Organização Mundial da Saúde (OMS) havia declarado que o vírus de Wuhan, na China, não era capaz de passar de uma pessoa para outra – acreditando na ditadura chinesa. No dia 20, a China admitiu que isso não era verdade. Quatro dias depois, o próprio Tegnell disse ao povo sueco que não havia razão para preocupação. Ao mesmo tempo, no exato mesmo dia da declaração, uma sueca infectada em Wuhan voltava à Suécia. Ela procurou o hospital uma semana depois e era um dos primeiros 150 casos fora da China.

Em março, após aquela reunião, a pressão já era grande. Epidemiologistas que tiveram funcionários de Tegnell como alunos de doutorado e tinham relação pessoal com Giesecke pediam mais restrições. Publicações médicas somavam centenas de nomes importantes da medicina nacional irritados com a Agência de Saúde Pública nos comentários. A Itália e o Japão fecharam suas escolas, a França não chamou os alunos de volta às aulas após as férias, a Alemanha registrava todos que entravam no país. Mas Anders Tegnell resistia com a tenacidade que impressionara seu antecessor.

Uma pista de como exatamente Johan Giesecke influenciou o pupilo a alimentar independência de pensamento está em um texto que o mentor publicou em 1992 no jornal Dagens Nyheter. “Não escute as ciências médicas!”, com exclamação, é o título. Na coluna, ele explica que não foram avanços médicos como medicamentos e tecnologias cirúrgicas que prolongaram a vida no mundo rico. Foi o saneamento básico, a segurança alimentar e a melhor moradia. Não foi tanto a ciência, mas a sociedade: democracia, economia de mercado e instituições. “Cuidado ao mudar um hábito que você gosta, ou ao começar um tratamento preventivo por toda a vida, simplesmente porque a pesquisa descobriu que poderia ajudar em uma doença específica”, aconselha Giesecke, na época um professor de doenças infecciosas, ‘falando mal’ da própria área. Em suas palestras, ele dizia que a taxa de mortalidade na Suécia era de 100%. “Se podemos impedir as pessoas de morrerem de determinada doença, que outra coisa vai matá-las?”, diz no artigo. É um ponto de vista de compensação entre males, em vez de oferta de soluções perfeitas.

No fatídico mês de março de 2020, o mentor voltou à ativa por convite do mentorado para um grupo de especialistas que discutiria o novo vírus. Giesecke recebeu dados da Itália, graças a seu trabalho anterior no ECDC com um colaborador nativo de lá. Analisando a alta taxa de assintomáticos, ele apostou que a Suécia já estava em fase pandêmica e, portanto, nem faria sentido rastrear contatos de infectados. Em um mês ou dois, apostou, o país já teria imunidade de rebanho, um conceito que ficou sob ataque dos alarmistas nessa fase da pandemia. O outro time já havia obtido algumas vitórias: proibição de aglomerações de mais de 500 pessoas e cancelamento de viagens para a Suécia. Essas medidas não faziam sentido para ele, pois seriam como enxugar gelo naquele ponto. Faria mais sentido um foco nos grupos vulneráveis. Então Giesecke sugeriu banir visitas para abrigos de idosos. Tegnell concordou.

Quanto a fechar escolas, Giesecke estava completamente convicto de que seria o caminho errado. Não seria justo com as crianças. Ele se lembrou de estudos que mostravam que a ausência da escola tem um efeito adverso nelas até à vida adulta. Além disso, nenhum surto de Covid-19 havia sido observado em escolas. Ele usou também conhecimento de história: 102 anos antes, durante a pandemia de gripe espanhola, um oficial da saúde da cidade de Nova York havia mantido as escolas abertas. Mais uma vez, como no artigo de 1992, Giesecke usava conhecimento de outras áreas para criticar a própria. Em reuniões com especialistas como os três da reunião de março, ele ficava atipicamente quieto. Ele só precisava convencer seu pupilo Tegnell, que era quem tinha o poder decisório.

No auge da pressão, quando as vizinhas Dinamarca e Noruega fecharam escolas, Johan Giesecke tranquilizou Anders Tegnell com uma citação em um email: “An nescis, mi fili, quantilla prudentia mundus regatur?”. A frase em latim é de uma carta dos anos 1640, do alto chanceler da Suécia Axel Oxenstierna, para o filho que estava ansioso a respeito de sua viagem para as negociações de paz em Westphalia. A tradução: “Você sabe, meu filho, com quão pouca sabedoria o mundo é governado?”

Quanto ao modelo medonho do Imperial College que levou o Reino Unido ao lockdown e ao fechamento de escolas, Giesecke mais uma vez apontou para o passado: o mesmo grupo de pesquisa do Imperial College errou feio durante o surto do mal da vaca louca em 2001: “Eles pensaram que 50 mil pessoas morreriam. Então quantas morreram? 157.” A previsão alarmista levou ao abate de milhões de cabeças de gado. Quatro anos depois, previram que 150 milhões morreriam de gripe aviária. Morreram 455. E outros quatro anos depois disso, previram 65 mil mortos por gripe suína, o número real foi 474. “Erram bem fora do alvo”, observou o sueco.

Uma questão de instituição 

Com a dupla de cientistas rebeldes resistindo à pressão do mundo e dos próprios colegas, entre os quais até amigos, os suecos continuaram suas vidas em quase completa normalidade. Nada de máscaras obrigatórias ou escolas fechadas. “Um desastre”, disse a revista Time. O mau exemplo “serve de lição para o mundo”, disse o New York Times. “Tolice fatal”, completou The Guardian.

Francis Fukuyama, no livro Political Order and Political Decay, faz um diagnóstico das razões pelas quais o governo americano está condenado a ser ineficiente. “Os Estados Unidos estão presos em um equilíbrio ruim. Pelo motivo de os americanos desconfiarem do governo historicamente, tipicamente eles não estão dispostos a delegar ao governo a autoridade de tomar decisões à maneira de outras sociedades democráticas. Em vez disso, o Congresso estabelece regras complexas que reduzem a autonomia do governo e tornam as decisões lentas e caras. Então o governo não se sai bem, o que confirma a desconfiança original do povo”.

A Escandinávia como um todo tem altos níveis de confiança no governo, comparada a outras regiões do mundo. Na Suécia, a Constituição dá às agências governamentais uma extrema autonomia em sua área de atuação, além de enfatizar o direito de ir e vir dentro do país. Mas para Johan Anderberg, o autor do livro, a melhor explicação é que os suecos simplesmente olharam para os dados e deram uma interpretação alternativa a eles. Não acreditaram no cenário apocalíptico que capturou a imaginação e a ansiedade do resto do mundo, especialmente o apresentado pelo Imperial College, que tomou as redes sociais até no Brasil.

Consistentemente com seu histórico, a previsão do Imperial College aplicada à Suécia errou feio. Até julho de 2020, acadêmicos suecos que aplicaram o modelo previam entre 85 e 96 mil mortos. O número real de mortos foi 6 mil — com viagens livres, academias e escolas abertas. Os indicadores educacionais da Suécia continuaram os mesmos de antes da pandemia. Outros países, incluso o Brasil, não podem dizer o mesmo.

Como se diz nos estudos médicos, a Suécia foi o “grupo controle” do mundo. É o grupo para comparação ao qual não é dada a pílula — no caso, a pílula amarga da deterioração da educação e do comércio. De acordo com a Organização Mundial da Saúde, a Suécia teve um excesso de mortes em 2020 e 2021 de 56 em 100 mil. Um dos menores da Europa, abaixo da média global. O Reino Unido teve uma taxa de 109 mortos em 100 mil. O Brasil, 160.

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