Psicólogo e neurocientista irlandês Shane O’Mara escreveu livro sobre ineficácia da tortura em interrogatórios envolvendo forças de segurança| Foto: Pixabay

O uso de tortura para extrair informação de criminosos ou terroristas não é apenas um método imoral e desumano: ele também é inútil. Este é o argumento central do livro “Why Torture Doesn’t Work” (“Por que a Tortura Não Funciona”), do psicólogo e neurocientista irlandês Shane O’Mara, do Trinity College de Dublin. Citando inúmeros estudos científicos e, também, documentos internos da CIA, O’Mara aponta que a dor e o estresse causados pelas chamadas “técnicas avançadas de interrogatório” – eufemismo adotado pelos serviços de inteligência americanos para a prática de tortura no contexto da Guerra ao Terror – danificam ou mesmo incapacitam as mesmas estruturas do cérebro, responsáveis por raciocínio e memória, que o interrogador deseja acessar.

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“Uma posição central apresentada aqui é que a tortura tem mais ou menos o efeito oposto ao pretendido; afeta de modo negativo os sistemas cerebrais envolvidos na memória, intencionalidade, estresse e disposição”, diz o autor em seu livro.

Ao mesmo tempo em que descreve, objetivamente, o que a ciência sabe sobre como memórias são produzidas, guardadas e evocadas – e o poder que a dor e a emoção extrema têm em distorcer esse processo – o texto de O’Mara arde, nas entrelinhas, com um profundo senso de indignação moral e profissional para com médicos e psicólogos que aceitam trabalhar ao lado de torturadores e validam suas práticas. 

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Mas seu ponto principal não diz respeito à moralidade, e sim à eficiência: o autor reconhece o consenso atingido, ao menos na civilização ocidental, de que a tortura é um ato bárbaro. Seu alvo é a ideia, disseminada no mundo pós 11 de setembro, de que se trata de uma barbaridade, às vezes, necessária - um “mal menor” frente aos perigos do terrorismo. 

Com fatos e argumentos, “Why Torture Doesn’t Work” se põe a demonstrar o contrário: que mesmo no cenário hipotético da “bomba-relógio iminente” – onde as forças de segurança creem que há uma bomba prestes a explodir em algum lugar, a qualquer instante, e têm em suas mãos um terrorista que sabe onde a bomba está, mas que se recusa a falar – a tortura não se justifica, e não se justifica em bases puramente empíricas, sem que seja necessária nenhuma consideração pelos direitos do terrorista: informes da própria CIA mostram que “quebrar” um suspeito com tortura pode levar semanas ou meses, e não há garantia de que o que ele vai falar é a verdade. 

O livro também apresenta uma análise bem pouco lisonjeira, à luz da neurociência, da eficácia de técnicas como detectores de mentira – sejam o polígrafo que aparece nos filmes e seriados de TV, ou tecnologias mais sofisticadas, baseadas em imagens do cérebro – e soros da verdade. O’Mara debruça-se, ainda, sobre uma questão muito pouco discutida - as cicatrizes mentais que a tortura deixa nos próprios torturadores. O pesquisador respondeu, via e-mail, a algumas perguntas da reportagem: 

Muitas pessoas pensam na tortura em termos de, “é imoral, mas às vezes, necessária”. Seu livro põe a questão moral de lado e ataca a “necessidade”. Por que o senhor decidiu abordar o problema por este ângulo? 

Essa me pareceu a única forma de viável de abordar o assunto de um modo que fosse lançar uma nova luz sobre ele, sob o ponto-de-vista da psicologia e da neurociência. Tortura, em si, não é um conceito neurocientífico: mas uso conceitos como estresse, estressores, dor, ansiedade, medo, privação (de sono, de comida, de líquidos, sensorial), etc, que estão razoavelmente bem estabelecidos, e que se relacionam muito bem com os métodos usados em tortura e “interrogatório avançado”. 

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A ideia de que confissões obtidas sob tortura são questionáveis parece ser amplamente aceita, mas não a ideia de que outros tipos de informação, obtidos sob tortura, também não merecem crédito. Por que isso? Por que a tortura ainda é “popular”, se é tão ineficaz? 

Acho que o melhor que posso fazer é citar do livro: “... intuições leigas e pressupostos sobre memória, motivação e estresse são muito pouco úteis como guia para projetar sistemas de interrogatório. O argumento fundamental é um que é profundamente contraintuitivo para quem se apoia na introspecção pessoal sobre como proceder um interrogatório. Além disso, o livro argumenta que essas intuições são baseadas no que as pessoas veem na TV, em filmes ou em uma fração pequena da experiência pessoal. Parece ser o caso, por exemplo, de que uma popular série de TV, ‘24 Horas’, afetou profundamente a prática de interrogatório, um fato que, se for verdadeiro, será profundamente perturbador e deprimente. [O advogado britânico] Philippe Sands conta [em seu livro] ‘Turture Teams’ como os interrogadores de Guantánamo usaram ‘24 Horas’ como inspiração em metodologia e interrogatório (...) 

Na mídia popular, a tortura é representada quase que exclusivamente como o território daqueles quer precisam de informações que estão trancadas na cabeça de outra pessoa, e para quem um ataque à integridade física e psicológica de terceiros, em nome da obtenção dessa informação, é uma necessidade (...) É bem pouco surpreendente, portanto, que alimentados por uma dieta assim, certos de nossos líderes pensem que tais táticas sejam razoáveis e apropriadas, e que venham a supor que essas táticas possam soltar a língua de suspeitos sob custódia. No entanto, há um erro profundo nesse raciocínio. A tortura pode ser realmente eficaz para levar pessoas a fazer o que não gostariam de fazer, como assinar falsas confissões que serão usadas num julgamento fajuto. O erro aqui é supor que isso significa que a tortura deve, portanto, ser útil para extrair informações verdadeiras”. 

No filme “Perseguidor Implacável” (“Dirty Harry”, 1971), o detetive interpretado por Clint Eastwood pisa na perna quebrada de um criminoso para forçá-lo a dizer onde uma criança sequestrada está. É um típico cenário de “bomba-relógio iminente”, já que a criança pode morrer sufocada se não for solta rapidamente. O filme constrói a situação como uma de conflito entre os direitos humanos do sequestrador e o direito à vida da criança. Mas a neurociência e a psicologia sugerem que, numa situação real, isso não teria ajudado a vítima, certo? 

Lembre-se: Dirty Harry não existe! Ele é um personagem de ficção, e a narrativa é fictícia. A situação, é claro, é muito mais complicada. Precisamos separar a questão da bomba-relógio da questão de como a dor e o estresse afetam a retirada de informação. 

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Neste artigo , eu discuto a questão da bomba-relógio iminente, usando uma cena de tortura do filme “Payback” (1999), com Mel Gibson [No Brasil, “O Troco”], com o exemplo. Nesse filme, o personagem Porter, interpretado por Gibson, submetido à tortura, usa um tipo de metacognição só possível para alguém dotado de uma “Teoria da Mente” – é capaz de inferir os estados psicológicos de terceiros, e de inferir o que esses terceiros devem estar pensando dele – para passar aos seus inimigos, de forma crível e em meio à sessão de tortura, uma informação que vai levá-los à ruína. 

Sobre a última parte da sua pergunta: a psicologia e a neurociência sugerem que há outras formas de fazer um suspeito falar. Mas ele ainda pode mentir. Só que, com o uso de tortura, como o investigador do NCIS [serviço de segurança naval dos Estados Unidos] Mark Fallon diz, “você só obtém informação ruim mais depressa. Para quê isso?” 

O senhor acredita que o apelo intuitivo da tortura como método de obter informação está ligado ao nosso dualismo intuitivo – a impressão de que as coisas “mentais”, como a memória, existem num plano separado do corpo e da dor física, e portanto não podem ser afetadas ou distorcidas por essa dor? 

Sim! Concordo plenamente! 

Seu livro também mostra que a tortura, com frequência, mistura a necessidade por informação com o desejo de punir. O imperativo de punir costuma ser forte na opinião pública. Como um governo poderia justificar o uso de técnicas de interrogatório que pareçam “mimar” os suspeitos?  

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Creio que esse é um problema muito difícil. Parecer duro, sempre escalando as consequências, aprofundando o castigo – isso tem um apelo visceral para muitas pessoas. Mas o efeito rebote também é bem real, como se descobriu na Irlanda no Norte nos anos 70 e 80, e também em muitos outros lugares desde então. Veja este artigo muito importante sobre o efeito.

[“Efeito Rebote”, ou “Blowback Effect”, no original, é o nome dado às consequências negativas, não previstas e não intencionais, de uma ação política ou militar que acabam recaindo sobre os autores da ação ou sobre a população civil dos países desses autores. Esse “efeito” pode envolver perda de prestígio, perda de apoio, processos judiciais e até mesmo atos terroristas de vingança.] 

Confesso que as páginas finais do livro, em que o senhor descreve como a psicologia comportamental ou mesmo técnicas de realidade virtual poderão, talvez, ser utilizadas na realização de interrogatórios eficazes me causou alguns temores distópicos, com a visão de métodos de interrogatório tão sutis e manipulativos que as pessoas mudariam de lealdade e abririam mão de seus segredos quase sem resistência. Um sistema de interrogatório livre de tortura também não traria problemas éticos? 

Penso o contrário. Hoje em dia, temos um atoleiro de práticas imorais e antiéticas. O que se precisa é de uma reorientação que foque especificamente a obtenção de informação e a busca da verdade, e não a produção de confissões. Incentivos que apoiam condenações baseadas em confissão, por quaisquer que sejam os meios, estão na raiz de muita tortura praticada pelo mundo. A experiência profundamente positiva do Reino Unido, como resultado da Lei da Evidência Policial e Criminal [lei de 1984 que define os poderes da polícia e procedimentos a serem adotados em investigações criminais], é uma prova disso. As alegações de abuso dentro das delegacias de polícia quase desapareceram, mas a taxa de condenações não caiu!