Palestinos recuperam o corpo sem vida de uma menina dos escombros da casa da família palestiniana Al Faseih| Foto: EFE/ Mohammed Saber
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No contexto do conflito recente entre Israel e o grupo Hamas, o comediante egípcio Bassem Youssef viralizou recentemente mostrando em entrevista um gráfico comparativo de mortes de árabes e judeus ano a ano, sempre com mais mortes do lado árabe no conflito.

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“A cotação flutua como a de uma criptomoeda”, gracejou ele, dizendo em seguida que 2014 tinha sido o melhor ano para os defensores de Israel que defendiam resposta agressiva contra o Hamas, mesmo ao custo de vidas de civis: “1 israelense para cada 27 palestinos, isso é uma taxa de câmbio excelente”. Em seguida, ironizou que a grande questão no conflito atual era saber qual era a cotação do dia, isto é, quantos palestinos ainda teriam que morrer até satisfazer os defensores de Israel, para que então diminuíssem os ataques.

A intenção do comediante era criticar Israel, com uma retórica irônica de mercantilização da vida humana. Implicitamente, Yousseff criticava o Estado israelense por supostamente dar pouco valor à vida dos palestinos em suas ações para defender seus próprios cidadãos. Mas, se aceitarmos a proposta do comediante e, para fins de debate, discutirmos a questão como uma transação econômica, o raciocínio pode levar a conclusões que ele não previa.

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Quando um não quer, dois não transacionam

Existe uma vasta literatura já produzida sobre análise econômica dos contratos. Uma de suas premissas é que, se duas partes fazem uma troca voluntária, necessariamente cada uma terá considerado que o preço que ela irá pagar tem menos valor, para ela, do que o benefício que ela receberá em troca. Afinal, se a parte não pensasse assim, ela teria simplesmente preferido ficar como estava e não fecharia o negócio. É preciso lembrar que uma das premissas é de que a troca é voluntária.

Youssef está considerando que a metafórica troca de vidas foi “voluntária” para Israel simplesmente porque era previsível, para os israelenses, que alvejar lançadores de mísseis do Hamas, nos lugares em que estavam, resultaria em que civis também fossem atingidos, como dano colateral, e perdessem suas vidas. Mas, pelo mesmo raciocínio, a troca deveria ser igualmente considerada “voluntária” para o Hamas.

Ou não era previsível, para eles, que lançar mísseis a partir de zonas civis, iniciando conflitos, podia resultar em ataques retaliatórios da parte de Israel? De fato, é algo tão previsível que o grupo é acusado de regularmente se instalar em zonas civis de propósito, para usar os cidadãos como escudo humano, na tentativa de dissuadir os israelenses de responder ao ataque na mesma moeda.

Assim, não é só Israel que se vê todos os dias tendo que escolher quantos civis palestinos está disposto a correr o risco de matar para salvar um israelense. Também o Hamas, todos os dias, escolhe quantas vidas de civis árabes está disposto a colocar em risco, como preço para conseguir matar um judeu (seu objetivo presumível, principalmente à luz dos bárbaros ataques do último dia 7 de outubro).

O lixo de um homem é o tesouro de outro

O valor que cada uma das partes atribui aos bens em negociação (no caso, a vida humana) é essencial para a análise econômica dos contratos, porque se toma como certo que o valor que cada uma dá é subjetivo. Ou, como diz o provérbio, o lixo de um homem é o tesouro de outro. Saber quanto valor cada parte dá ao seu respectivo bem é importante para prever se ela estará disposta a fazer a troca: se as duas partes envolvidas atribuírem um valor mais próximo ao bem, é mais provável que os negócios se realizem.

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Se uma pessoa possuir bens que ela considerar como um tesouro por atribuir a eles valor sentimental, pela relação com a história de sua família, e outra pessoa, de fora do seu círculo, enxergar os bens como pouco mais do que lixo, essa grande distância entre o valor que cada um atribui torna impossível que se viabilize uma troca. Isto porque não há preço possível que um esteja disposto a oferecer que, simultaneamente, o outro esteja disposto a aceitar. Em contraste, se os bens receberem valor sentimental porque tiverem pentencido a uma celebridade muito adorada, como Elvis Presley, é possível que o valor atribuído pelo outro se aproxime mais do valor atribuído pelo proprietário presente, porque o valor sentimental será compartilhado pelos dois. Isso pode viabilizar uma transação econômica onde antes ela não seria possível.

Como isso se aplica às guerras?

Para o Hamas, as vidas árabes são lixo e não tesouro

Assim como o dono do baú atribui valor maior ao bem que está associado à sua própria família, é certo que ele também atribuirá à vida de seus filhos, irmãos ou pais mais valor do que ele atribui à vida de estranhos, se for colocado em uma situação onde seja forçado a escolher. Quase ninguém levantaria objeção moral contra essa preferência. Ao contrário, estranho seria se ela não existisse.

O mesmo raciocínio, com poucas ressalvas, se aplica aos beligerantes numa guerra. É natural e esperado que os Estados atribuam valor maior à vida de seus próprios cidadãos (a quem, afinal, têm o dever de proteger) do que à vida dos cidadãos do inimigo. Os limites dessa preferência são e devem ser debatidos, mas a preferência em si é aceita.

Por isso, nenhum Estado com o mínimo zelo pela vida dos próprios cidadãos aceitaria, conforme a metáfora, regularmente fechar negócios (isto é, ingressar em batalhas) nas quais sacrificaria a vida de até 27 dos seus próprios cidadãos em troca de apenas uma vida do adversário, sem qualquer ganho tangível para a comunidade além da morte alheia. É exatamente o que vem acontecendo há anos em Gaza.

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Criticar Israel por estar disposto a essa “taxa de câmbio” desigual, como faz o comediante egípcio, é distrair de um fato muito mais notável, o de que as lideranças de Gaza implicitamente concordam com a valoração de um Estado estrangeiro, escolhendo continuar a praticar uma cotação absurda onde as vidas dos seus próprios cidadãos não valem nada. Se não concordassem, não continuariam a praticar a guerra nestes termos, que são incomuns. É esta aceitação que sustenta esse “comércio”.

O que explica a falta de amor à vida?

Duas hipóteses podem explicar a situação. A primeira é de que lideranças de Gaza sejam simplesmente mandatárias infiéis, ou seja, estejam traindo os interesses do povo sob sua guarda enquanto zelam pelos seus próprios. O líder máximo do Hamas, por exemplo, mora atualmente no Catar, onde está a salvo dos mísseis israelenses que põem em risco seus governados, como consequência potencial de suas decisões. (Neste sentido, torna-se curioso o seu uso da primeira pessoa ao dizer que “Nossa decisão é permanecer na nossa terra”, em resposta à recomendação de Israel para que os civis evacuassem o norte de Gaza para se proteger dos ataques israelenses.)

Uma segunda hipótese, mais pessimista, é de que, na realidade, as lideranças de Gaza estejam agindo fielmente conforme a vontade do mandante metafórico, que seria o povo. As pesquisas de opinião são incertas a este respeito, indicando variados níveis de apoio popular ao Hamas. Para ao menos parte da população, é possível que o baixo valor atribuído à vida humana em face de outras considerações presentes seja uma característica ideológica enraizada. Afinal, no caso extremo dos ataques terroristas suicidas (perpetrados por islamistas radicais, caso também do Hamas), não se pode cogitar de traição de mandato, porque a vida que o agente elimina é a própria.

Como exemplo dessa possibilidade, Mosab Hassan Yousef, o filho do fundador do Hamas, deu entrevista à rede americana CNN em 2014 relatando que o grupo doutrinava ideologicamente as crianças desde os cinco anos de idade. “O Hamas não se importa com as vidas dos palestinos, ou com as dos israelenses ou americanos. Eles não se importam nem mesmo com as suas próprias. Eles enxergam morrer pela sua ideologia como uma forma de devoção religiosa.”

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]
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