“É preciso dizer, mais que uma escolha política, a candidatura de Jair Bolsonaro representa uma ameaça franca ao nosso patrimônio civilizatório primordial”.
É o que diz um manifesto que se posiciona contra o candidato à presidência Jair Bolsonaro assinado por mais de 300 intelectuais e artistas, incluindo Alice Braga, Caetano Veloso, Camila Pitanga, Drauzio Varella, Miguel Reale Jr., Fernando Morais, Laerte e Maria Gadu.
O texto, apresentado neste fim de semana, conclui: “Por isso, estamos preparados para estar juntos na sua defesa [da democracia] em qualquer situação, e nos reunimos aqui no chamado para que novas vozes possam convergir nisso. E para que possamos, na soma da nossa pluralidade e diversidade, refazer as bases da política e cidadania compartilhadas e retomar o curso da sociedade vibrante, plena e exitosa que precisamos e podemos ser”.
Em reação, partidários de Bolsonaro lançaram a hastag #RouanetNão, em referência ao uso da lei de captação de recursos públicos da parte de artistas consagrados, e alcançou os trending topics do Twitter nesta segunda-feira, dia 24.
Intelectuais e artistas brasileiros se manifestam com frequência. Em janeiro, um grupo formado por artistas de TV, como Herson Capri e Bete Mendes, criticou o julgamento de Lula. Em março, mais de 400 artistas, juristas e intelectuais, caso de Fábio Konder Comparato, Marieta Severo, Martinho da Vila e Dira Paes, defenderam a candidatura de Luís Inácio Lula da Silva.
Em abril, mais de cem artistas e intelectuais assinaram um manifesto contra a prisão de Lula. Entre os signatários estavam Andrea Beltrão, Luiz Carlos Barreto e Laís Bondanzky. Já em julho, Chico Buarque, Gilberto Gil e Beth Carvalho cantaram, no centro do Rio de Janeiro, a favor do ex-presidente petista durante o Festival Lula Livre.
Mas por que isso acontece? Por que tantos intelectuais e artistas são alinhados às pautas de esquerda?
“Corrupção intelectual”
Existem também artistas e intelectuais de direita, e ambas as escolhas são legítimas. Nos últimos anos, alguns alcançaram um alto grau de repercussão em suas posições — por exemplo, os músicos Lobão e Roger Moreira e a atriz Regina Duarte. Até mesmo Jair Bolsonaro conta com apoiadores no meio: Amado Batista, Alexandre Frota, Eduardo Costa, Danilo Gentili e Gusttavo Lima.
Mas os artistas e intelectuais alinhados à direita ainda são minoria. Talvez seja pelos riscos que os artistas correm quando tomam qualquer posição. A cantora Anita, por exemplo, ficou no centro de uma controvérsia após começar a seguir nas redes uma velha amiga que apoia Bolsonaro. Ela apareceu num primeiro momento dizendo que não estava interessada em dar opinião e depois — apesar da declaração inicial — aderiu à campanha anti-Bolsonaro. É o fenômeno da patrulha ideológica: personalidades são instadas pelos manifestantes a tomarem posições políticas, mesmo que isso aconteça muitas vezes a contragosto.
Do Leblon à USP, passando pelos principais estúdios musicais e distribuidoras de cinema, os adeptos da esquerda dominam o cenário. O doutor em antropologia social e colunista da Gazeta do Povo Flavio Gordon aborda o assunto em seu livro “A Corrupção da Inteligência - Intelectuais e Poder no Brasil”, lançado em 2017.
Em seu livro, Gordon afirma que a adesão da intelectualidade à esquerda é um caso claro de corrupção: “(...) é uma forma de corrupção que — ao contrário daquela com a qual os brasileiros estamos mais que habituados, praticada sobremaneira pela classe política e noticiada diariamente nos jornais — é pouco discutida, ou talvez sequer notada”. E continua: “Não se a discute de maneira franca e responsável, porque os seus agentes são, precisamente, os que detêm o monopólio do discurso público. São eles quem, regra geral, têm os meios e a legitimidade social para analisar, debater e, por fim, denunciar os problemas brasileiros”.
O autor vê uma diferença entre a corrupção intelectual e a tradicional: no primeiro caso, os intelectuais não são beneficiados. Eles “são, ao mesmo tempo, os corruptos, os corruptores e, paradoxalmente, as primeiras vítimas do fenômeno”, defende, e prossegue: “ao contrário da corrupção político-econômica, essa corrupção não traz benefícios (senão apenas ilusórios) para o corrupto, mas, ao contrário, corrói aquilo que ele tem de mais precioso: a sua inteligência, a sua razão, a sua consciência moral. A partir daí, o dano causado pela corrupção em questão alastra-se avassaladoramente, de maneira ondulatória, debilitando a cultura como um todo.”
Flavio conclui: “O Mensalão e o Petrolão foram a expressão, na política, da hegemonia que a esquerda conquistara na cultura”.
Formação deturpada
Mas em que momento esse tipo de corrupção tomou conta do setor? Décadas antes, o filósofo, sociólogo e cientista social francês Raymond Aron já se debruçava sobre este assunto. É de sua autoria o clássico O Ópio dos Intelectuais, datado de 1953, apenas dois anos depois da morte do ditador soviético Josef Stalin.
A ditadura comunista comandada por Stalin já havia mandado até então milhões de dissidentes e inimigos do regime aos campos de prisioneiros na Sibéria, porém ainda havia intelectuais dispostos a defendê-la. Um deles era o filósofo Jean-Paul Sartre, que chegou a dizer que não ficava envergonhado com os gulags soviéticos. "Nós podemos ficar indignados ou horrorizados diante da existência desses campos [de concentração soviéticos]; nós podemos até ficar obcecados por eles, mas por que eles deveriam nos constranger?” Sartre não parou por aí: “Um regime revolucionário deve descartar um certo número de indivíduos que o ameaçam, e não vejo outro meio para isso, a não ser a morte.”
Para Aron, num momento inicial, parece que os intelectuais entendem tão pouco de política quanto outras categorias profissionais. “Quando observamos as atitudes dos intelectuais em política, a primeira impressão é a de que elas se parecem com as dos não intelectuais. A mesma miscelânea de informações incompletas, preconceitos tradicionais e preferências mais estéticas do que racionais se manifesta tanto nas opiniões de professores ou escritores quanto nas de comerciantes ou industriais.”
“O comunismo se desenvolveu a partir de uma doutrina econômica e política, em uma época em que declinavam a vitalidade espiritual e a autoridade das igrejas. O fervor que, em outras épocas, poderia se exprimir em crenças propriamente religiosas tomou como objeto a ação política”, diz Raymond Aron. “O profetismo marxista traz em si a condenação daquilo que é e esboça uma imagem do que deve ser e será, e escolhe um indivíduo, ou um grupo, para vencer o espaço que separa o presente indigno do futuro fulgurante”.
A visão crítica dos intelectuais ocidentais das últimas décadas é nublada pela visão marxista de história, com seus ideais que, se parecem perfeitos na teoria, na prática não funcionam, como tantos exemplos ao redor do planeta comprovam. Ainda assim, seus adeptos se apegam a ela, como um fiel a uma religião. (Existem poucas exceções, algumas notáveis, como o escritor peruano e vencedor do prêmio Nobel de Literatura Mario Vargas Llosa, ex-comunista e ex-apoiador da ditadura cubana, hoje forte crítico de ambos.)
Em palestra proferida em 2016, em Porto Alegre, durante o evento Fronteiras do Pensamento, Vargas Llosa explicou o motivo de tanta fascinação dos intelectuais e artistas com a esquerda. De acordo com o escritor peruano, artistas buscam a perfeição estética, seja na beleza dos quadros que pintam ou nos versos que escrevem. Politicamente e ideologicamente, o mais próximo disso é a utopia comunista, que promete um mundo igual, sem pobreza e desigualdade. Eis o fator de sedução do comunismo.
Evidentemente, explica Llosa, nenhuma nação que adotou o socialismo escapou da tragédia, da fome, da perseguição política. Enquanto o comunismo é bonito no papel, a democracia é complicada, difícil e sempre será imperfeita — difícil para a classe artística, preocupada com a perfeição teórica, compreender e adotar com entusiasmo. Mas, sem dúvida, o único sistema que dá a liberdade para estes mesmos artistas e intelectuais executarem seu trabalho e sua arte.