A decisão do Ministério da Saúde de incluir mais dez “práticas complementares e integrativas” (PICs) no rol de atendimentos do Sistema Único de Saúde (SUS), anunciada no último dia 12, foi recebida com desagrado pela comunidade médica e por cientistas brasileiros. Muitas PICs jamais foram testadas cientificamente, ou só passaram por testes superficiais e de baixa qualidade.
Quando existem testes de boa qualidade, a preponderância da evidência mostra que essas práticas não funcionam melhor do que um placebo – nome dado a procedimentos sem efeito real, mas que geram uma ilusão de tratamento, e que podem fazer o paciente se sentir um pouco melhor seja por condicionamento, sugestão, ao oferecer conforto ou ao despertar expectativas positivas e otimismo.
Como escreve o especialista americano em bioestatística R. Barker Bausell em seu livro sobre o efeito placebo “Snake Oil Science” (“Ciência dos Falsos Remédios”, em tradução livre), “a maioria das terapias alternativas funciona – mas de modo muito fraco, apenas temporário e para resultados subjetivos”, como dores crônicas ou estresse.
“Não existe nenhuma evidência convincente, digna de crédito, que sugira que qualquer terapia complementar ou alternativa traga benefícios superiores ao do placebo para qualquer condição médica”, escreve ele.
Bausell trabalhou na elaboração e supervisão de diversos estudos sobre terapias alternativas, financiados pelo governo dos Estados Unidos, e em seu livro aponta um padrão comum nesse tipo de pesquisa: em geral, quanto melhor a qualidade do estudo feito sobre uma terapia alternativa, mais os resultados se assemelham aos do placebo.
A falta de evidência de que as PICs sejam melhores que placebos vem fazendo com que seu uso, principalmente em sistemas públicos de saúde, seja questionado em diversas partes do mundo. Um dia depois do anúncio do Ministério da Saúde brasileiro, foi divulgada na Inglaterra a notícia de que o Hospital Real de Medicina Integrativa de Londres deixaria de receber subvenção do NHS, o sistema de saúde pública britânico que serviu de modelo para o SUS, porque “os recursos escassos do NHS poderiam ser melhor empregados em tratamentos que funcionam”, nas palavras de Simon Stevens, o principal executivo do sistema público de saúde inglês.
Perigo
O mesmo tom foi adotado, no Brasil, pela Associação Médica Brasileira (AMB), que em nota afirma que “o país vive situações graves de filas para cirurgias e exames, inclusive oncológicos, hospitais superlotados, desativação de leitos e de unidades de atendimento, avanço da febre amarela, recrudescimento de doenças, como a malária, sífilis, hepatite A, tuberculose, dentre outras. Assim, a AMB considera um desrespeito aos brasileiros o uso de valores para tais práticas” integrativas. No entanto, a restrição do NHS às terapias alternativas incluiu a homeopatia no rol dos tratamentos comparáveis ao placebo. No Brasil, a homeopatia é uma especialidade médica reconhecida pelo Conselho Federal de Medicina (CFM).
A Academia Brasileira de Ciências (ABC) e a Academia Nacional de Medicina (ANM) também emitiram nota conjunta condenado a inclusão de novas PICs no SUS.
“É fundamental que nossa população tenha acesso a novas tecnologias, atendimentos e tratamentos para os quais as evidências científicas existam de modo inequívoco”, diz a nota, que foi endossada também pela Sociedade Brasileira de Bioquímica e Biologia Molecular (SBBq).
“Parece-nos profundamente contraditório, neste cenário de profunda crise que afeta a saúde pública brasileira, alocar recursos em terapias de duvidosa eficácia clínica”.
A nota conjunta da ABC e ANM também aponta para o risco de a disponibilidade dessas terapias levar “muitos pacientes a retardarem de modo inadequado terapias de comprovadamente efetivas, com prejuízos irreversíveis para a saúde”.
O médico alemão radicado no Reino Unido Edzard Ernst, autor de diversos estudos e livros sobre práticas alternativas, defende em sua publicação mais recente, “More Harm Than Good?” (“Mais Mal do que Bem?”), que a oferta de práticas alternativas é uma violação de princípios da ética médica, como honestidade e autonomia, já que esses tratamentos se baseiam na venda de ilusões.
A bióloga Natália Pasternak Taschner, pesquisadora do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP e coordenadora, no Brasil, do festival internacional de divulgação científica Pint of Science, considera “absurda” a inclusão dessas práticas no SUS. “Além da questão dos custos”, diz ela, “há uma questão educacional. O governo deseduca a população ao sancionar terapias reprovadas em testes científicos”. A pesquisadora faz ainda eco à preocupação expressada na nota conjunta da ACB e da AMN de que o uso de práticas alternativas pode adiar o início do tratamento de algum problema mais sério, ao mascarar sintomas.
Já o ministro da Saúde, Ricardo Barros, declarou, durante o anúncio das novas PICs, que “essas práticas são investimento em prevenção à saúde, para evitar que as pessoas fiquem doentes. Precisamos continuar caminhando em direção à promoção da saúde, em vez de cuidar apenas de quem fica doente”.
Novas PICs
Com os dez tratamentos anunciados no dia 12, passa a ser 29 o número de práticas integrativas e complementares que conta com verbas do SUS. As novas PICs são:
Apiterapia: método que utiliza produtos produzidos pelas abelhas nas colmeias como a apitoxina, geleia real, pólen, própolis, mel e outros. O site Science-Based Medicine se refere à prática como um tratamento “folclórico”, que vem ganhando projeção graças à internet, mas desprovido de evidências científicas. A própria Sociedade de Apiterapia dos Estados Unidos admite que o sistema é “experimental”, não reconhecido ou autorizado pelas autoridades. Estudos específicos sobre o uso de veneno de abelha contra problemas neurológicos não revelaram nenhum benefício.
Aromaterapia: uso de concentrados voláteis extraídos de vegetais; os óleos essenciais supostamente promovem bem-estar e saúde. Embora o uso de óleos essenciais para fins medicinais seja antigo, a expressão “aromaterapia” foi inventada na França em 1937. Segundo o livro “Truque ou Tratamento”, de Edzard Ernst e Simon Singh, a aromaterapia pode ser útil como um leve redutor de estresse, mas uma revisão de estudos sobre o assunto publicada em 2000 aponta que a ação é tênue demais para merecer recomendação clínica.
Bioenergética: esta prática é descrita pelo Ministério da Saúde como uma “visão diagnóstica aliada à compreensão do sofrimento/adoecimento, adota a psicoterapia corporal e exercícios terapêuticos. Ajuda a liberar as tensões do corpo e facilita a expressão de sentimentos”. O Ministério aparentemente está se referindo à Análise Bioenergética, uma prática psicoterápica baseada em posturas do corpo, massagens, exercícios de respiração e exercícios físicos, derivada das teorias do psicanalista alemão Wilhelm Reich. Não há estudos científicos sobre sua eficácia nos principais repositórios internacionais de pesquisa sobre saúde.
Constelação familiar: uma técnica de representação espacial das relações familiares que, segundo seus propositores, “permite identificar bloqueios emocionais de gerações ou membros da família”. Técnica desenvolvida pelo psicoterapeuta alemão Bert Hellinger, tem como base o conceito pseudocientífico de campos de energia psíquica, e seus praticantes muitas vezes apelam para a linguagem do misticismo quântico. Não há estudos científicos sobre sua eficácia nos principais repositórios internacionais de pesquisa sobre saúde.
Cromoterapia: utiliza as cores nos tratamentos das doenças, com o objetivo de “harmonizar o corpo”. Existem diversos estudos sobre o assunto, mas a maioria dos que apontam resultados positivos é de baixa qualidade e foi publicada em periódicos obscuros. Uma análise ampla do tema, publicada em 2004, afirma que muito do que se diz sobre o uso de cores no contexto da saúde é “baseado em alegações pseudocientíficas” e tem uma base de evidências “fragmentada, esporádica e contraditória”. O escritor e divulgador da ciência Martin Gardner se referia ao indiano naturalizado americano Dinshah P. Ghadiali, pai da moderna cromoterapia, como “talvez o maior charlatão de todos”.
Geoterapia: uso da argila com água que pode ser aplicada no corpo. Segundo o Ministério da Saúde, a preparação pode ser usada “em ferimentos, cicatrização, lesões, doenças osteomusuculares”. Existem alguns poucos estudos sobre o tema, concentrados principalmente no uso de argila contra artrite, mas mais estudos, e de melhor qualidade, não necessários para estabelecer a realidade dos efeitos.
Hipnoterapia: conjunto de técnicas que pelo relaxamento, concentração “induz a pessoa a alcançar um estado de consciência aumentado”, que segundo o Ministério da Saúde “permite alterar comportamentos indesejados”. Um problema com a avaliação de hipnoterapias é encontrar uma boa definição de “hipnose”. A Colaboração Cochrane, uma organização internacional que se dedica a agregar e analisar o máximo de evidência científica sobre todos os tipos de tratamento, tem uma grande lista de informações sobre tratamentos baseados em hipnose, indo desde testes de seu uso para parar de fumar (não há evidência de que ajude) ou para reduzir as dores do parto (talvez ajude, mas a evidência não é clara). É mais um campo que requer mais estudos, com melhor qualidade.
Imposição de mãos: imposição das mãos próximo ao corpo da pessoa para, segundo o Ministério da Saúde, “transferência de energia para o paciente”. O órgão federal diz ainda que essa prática “promove bem-estar, diminui estresse e ansiedade”. Reiki é uma modalidade conhecida desse tipo de terapia. Em 1998, uma menina de 9 anos, Emily Rosa, tornou-se a pessoa mais jovem da história a publicar um artigo científico de Medicina, ao demonstrar que os praticantes de toque terapêutico são incapazes de detectar a “energia” do paciente. Estudos científicos de boa qualidade falham, consistentemente, em encontrar algum efeito do toque terapêutico maior que o do placebo. Nem mesmo seu uso para o controle da ansiedade conta com evidências convincentes, segundo a Colaboração Cochrane.
Ozonioterapia: mistura dos gases oxigênio e ozônio por diversas vias de administração com finalidade terapêutica. O Ministério da Saúde diz que “promove melhoria de diversas doenças”. Usado na odontologia, neurologia e oncologia. Uma análise dos estudos sobre o assunto publicada no ano passado diz que ainda não é possível apontar a ozonioterapia como uma opção viável de tratamento médico. Revisões feitas pela Colaboração Cochrane apontam que os estudos sobre a prática têm problemas metodológicos e que não há evidência de que ela ajude a reduzir cáries.
Terapia de Florais: uso de essências florais que, segundo o Ministério da Saúde, “modifica certos estados vibratórios” e “auxilia no equilíbrio e harmonização do indivíduo”. O uso de expressões como “estados vibratórios” e “harmonização” já deixa claro o caráter pseudocientífico da prática. A ideia de que o álcool que teve contato com certas flores e depois foi diluído teria propriedades médicas ocorreu ao homeopata britânico Edward Bach no início do século passado, e por causa disso essas terapias às vezes são chamadas de “Florais de Bach”. Em seu livro “Truque ou Tratamento”, Ersnt e Singh apontam que “diversos testes rigorosos de terapias florais já foram conduzidos”, e que “nenhum deles mostra que esta abordagem tenha eficácia superior à de um placebo”.
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