Em julho de 2008, o escritor Christopher Hitchens (1949-2011) se apresentou como cobaia e tirou a prova da questão mais controversa do noticiário politico americano de então: os limites do uso daquilo que o governo chamava de “técnicas de interrogatório extremo”.
Na época, o autor e polemista britânico vivia nos Estados Unidos e era a voz mais eloquente em defesa da invasão americana ao Iraque depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, em Nova York.
Em seus artigos e conferências, Hitchens não condenava o método de extrair confissões de prisioneiros no Iraque, Afeganistão e na base de Guantánamo por afogamento, conhecido como waterboard, fundamental para obter as informações que levariam ao cerco e a execução de Osama Bin Laden (em 2011).
O waterboard é um processo de afogamento que faz com que o “interrogado”, preso numa maca pelos pés, mãos e cintura e com o rosto coberto por uma máscara, seja asfixiado por “interrogadores” com um fluxo de água, sem poder se defender.
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Hitchens topou submeter-se ao waterboard para esclarecer ao mundo, de forma definitiva, se o método deveria ou não ser considerado tortura. A experiência foi filmada e descrita por Hitchens em um artigo na revista “Vanity Fair”.
Sua antiga opinião durou exatos 11 segundos. Ele conta que tentou aguentar o quanto pode, mas teve de usar a senha que combinara com os agentes do serviço secreto americano para interromper o processo. “Fui inundado pelo pânico, mais do que pela água, e acionei o sinal combinado”, escreveu.
Fui inundado pelo pânico, mais do que pela água, e acionei o sinal combinado”
No artigo que fez depois do waterboard, conta que acordava “à noite tentando afastar lençóis e cobertores do rosto e, quando faço qualquer coisa que me deixa sem fôlego, me vejo lutando com o ar em meio a uma horrível sensação de sufocamento e claustrofobia. Se isso não constitui tortura, então a tortura não existe”.
Bolsonaro
A questão ressurgiu no debate público brasileiro após a o deputado Jair Bolsonaro (PSC-RJ) dedicar seu voto a favor do impeachment da presidente Dilma Rousseff ao coronel Brilhante Ustra (1932-2015), o oficial do exército que comandava o Doi-Codi de São Paulo e o mais notório torturador da ditadura brasileira. Para aplausos de boa parte da plateia de parlamentares e de muita gente que observava pela TV.
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Aplausos que vieram certamente de quem nunca teve a oportunidade de, como Hitchens, enfrentar de fato um torturador. Ou como afirma o professor Loran Nordgrens, da Universidade de Northwestern, de quem não percebe que “existe um abismo entre o que a razão imagina que é a tortura e o que corpo e mente experimentam quando submetidos à tortura. É um fenômeno evolucionário que nos protege psicologicamente.”
Existe um abismo entre o que a razão imagina que é a tortura e o que corpo e mente experimentam quando submetidos à tortura
Em entrevista ao site Pensando Direito, ele explica por que é impossível ter uma noção real do sofrimento causado pela tortura. ”Quando passamos por experiências similares, apenas achamos que compreendemos o sofrimento de quem está sendo torturado. Nós esquecemos muito rapidamente do real grau de sofrimento”.
A única saída, segundo Nordgren é lembrar às pessoas que “elas estarão subestimando o sofrimento alheio e, por consequência, devem tomar cuidado quando ignoram a dor do outro, quando formulam leis, ou mesmo quando lidam com o passado.”
O que diz a lei
Outra é tornar claro como o direito internacional e a Constituição Federal tratam o tema. A 1.ª Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU) “Sobre a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanas ou Degradantes” define como tortura qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter informações ou confissões; de castigá-la por ato cometido ou sob suspeita de tal; de intimidar ou coagir; ou por qualquer motivo baseado em discriminação de qualquer natureza.
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O tema foi introduzido no ordenamento jurídico brasileiro na Constituição de 1988. No artigo 5.º, que trata dos direitos fundamentais, o inciso III decreta que “ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante”. Mais adiante a carta magna elenca a tortura como um dos crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia.
Ainda está muito arraigada a falsa impressão que a violência serve para combater outros tipos de violência ou ameaças
Alexandre Salomão, presidente da comissão dos Direitos Humanos da OAB/PR, diz que a defesa da tortura por parte da sociedade é um problema cultural. “Ainda está muito arraigada a falsa impressão que a violência serve para combater outros tipos de violência ou ameaças. Isto vem da falta de uma educação voltada para o entendimento e para a paz, que geram este tipo de apologia e discursos como o do bandido bom é bandido assassinado.”
Ele afirma que defender a prática de tortura configura apologia ao crime, de acordo com o Código Penal, e que o presidente da OAB/RJ, Felipe Santa Cruz, afirmou que a Seccional recorrerá ao Supremo Tribunal Federal (STF) e, se necessário, à Corte Interamericana de Direitos Humanos, na Costa Rica, para pedir a cassação do mandato de Bolsonaro.
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Para Felipe, há limites na imunidade parlamentar e trata-se de um caso de discurso de ódio. “A imunidade é uma garantia constitucional fundamental à independência do parlamento, mas não pode servir de escudo à disseminação do ódio e do preconceito. Houve apologia a uma figura que cometeu tortura e também desrespeito à imagem da própria presidente. Além de uma falta ética, que deve ser apreciada pelo Conselho de Ética da Câmara, é preciso que o STF julgue também o crime de ódio.”