A tese do sociólogo Jessé Souza (UFABC) em seu mais recente livro, “A Elite do Atraso”, é ousada (e poderiam dizer alguns, sem receio, até revisionista): tendo por principal alvo Sérgio Buarque de Holanda e sua interpretação do Brasil em “Raízes do Brasil”, a marca da sociedade brasileira não seria o patrimonialismo – e tampouco a cordialidade, o “jeitinho brasileiro” de DaMatta etc., tratados por Souza como “generalidades” acerca do brasileiro (p.10) – mas sim a escravidão (e não a colonização portuguesa ou a miscigenação, conforme também afirmaram os intérpretes clássicos do Brasil).
Contudo, a ousadia maior da hipótese está, por incrível que pareça, menos nesse aspecto e mais na motivação que Souza atribui para que a versão de Holanda tenha prevalecido: a manutenção da crença no imaginário das pessoas em geral que a corrupção é o maior mal brasileiro e, por consequência, seu combate o maior objetivo da política.
Certamente não por engano a operação Lava Jato compõe o subtítulo da obra: se somos marcados pelo patrimonialismo, concentrar poder nas mãos do Estado é equívoco apocalíptico: o Estado é mau gestor, então a administração deve ser transferida o máximo possível para as mãos do mercado e para efetivar a tarefa é necessário vilipendiar as empresas estatais, a começar pela sua maior figura, a Petrobras (a privatização da Vale é tida como um erro notório por Souza, p. 13), de modo que se inculque nas massas a necessidade de vendê-la para o capital estrangeiro, capaz de administrá-la com eficiência e de maneira impoluta.
A narrativa é relativamente simples e não é original, é a ideia de que estaria em curso uma operação para entregar nossa petrolífera aos malvados americanos. Embora não seja citado diretamente, o juiz Sérgio Moro (junto da “mídia”) é reduzido a agente a serviço dos interesses estrangeiros em nossas riquezas nacionais: “o que a Lava Jato e seus cúmplices na mídia e no aparelho de Estado fazem é o jogo de um capitalismo financeiro internacional e nacional ávido por ‘privatizar’ a riqueza social em seu bolso. Destruir a Petrobras, como o consórcio Lava Jato e grande mídia, a mando da elite do atraso, destruiu, significa empobrecer o país inteiro de um recurso fundamental, apresentando, em troca, não só resultados de recuperação de recursos ridículos de tão pequenos, mas principalmente levando à destruição de qualquer estratégia de reerguimento internacional do país” (p. 12).
Note-se bem que a corrupção é jogada para escanteio em nome do nacionalismo, propositalmente ignoram-se as ações da elite do atraso petista, capazes da proeza de fazer uma petrolífera dar prejuízo (tal como se observa na Venezuela ou viu-se com a ANCAP uruguaia, levada à bancarrota pelo pitoresco Mujica).
Não se deixe de notar que se trata da oficialização da versão da nomenklatura petista para a quebradeira da Petrobras, apenas agora travestida de nova interpretação brasileira.
Essa é a diferença substancial de “A Elite do Atraso” para “A Radiografia do Golpe”, do mesmo autor e publicado pela mesma editora; enquanto este último, que veio a público em tempo recorde, quase imediatamente após o impedimento de Dilma Rousseff, é mera caixa de ressonância da narrativa dos sites governistas, o primeiro se propõe a mesma tarefa, mas não sem também tentar oferecer uma explicação “profética” (termo usado por Souza para se referir a Holanda) do Brasil.
Desse modo, é preciso salientar onde exatamente Jessé Souza está inserido. Trata-se, creio, de uma nova roupagem para a intelectualidade orgânica do PT, que ou deixa de lado ou cria alternativa para o caráter histriônico dos arroubos de uma Marilena Chaui para então alçar voos efetivamente mais altos, é menos fazer a plateia rir – em parte por vergonha e em parte por acordo – e mais fincar bandeira na ciência política nacional.
O próprio Jessé, quem vim a conhecer exatamente por essa razão (do minuto 39:50 ao 57:50), é crítico da intelectualidade uspiana, bem como do modo uspiano-paulista de entender o Brasil, trata-se, portanto, de uma crítica à esquerda “da esquerda”, sob o fundamento do que poderíamos chamar de “tradicional” (ou ainda, extremada, pois propõe soluções ainda mais à esquerda para os problemas inflados pelas versões moderadas de suas políticas). Isso também atesta a impressão de que o autor e seus pares querem bem mais que apenas reforçar a narrativa de extrema-esquerda sobre casos de corrupção no Brasil nos últimos anos.
A metáfora do lobo em pele de cordeiro nunca fez tanto sentido, como em toda ditadura eficiente, uma infantaria de intelectuais é posta em marcha para que a versão do partido se converta em Ciência – e, portanto, em “verdade” com o peso de revelação divina; o esforço em reaver a sociologia nacional (sobrando até para um dos fundadores do PT, Raymundo Faoro!) não deixa mentir.
Valem aqui três adendos finais: o livro foi escolhido como melhor do ano de 2017 pelos leitores da Amazon na categoria não-ficção e meu próprio artigo se coloca à guisa de resposta à obra de Jessé Souza. Quando a direita conseguirá deixar de ser apenas reativa e adentrará a seara propositiva? Enquanto não o fizermos, só restará a repetição das versões da intelectualidade orgânica do PT (quer a oficial, quer a “do B”) para explicar o Brasil – e se é para recorrer a algo ainda não consagrado como clássico da sociologia nacional, fiquemos com Mario Vieira de Mello, João Camilo de Oliveira Torres e José Osvaldo de Meira Penna, para citar três pesos-pesados – porque são as únicas que existem até agora.
Se compreendida apropriadamente, dentro do quadro conceitual da mentalidade revolucionária, esse esforço atlântico em reduzir a relevância do combate à corrupção também é mais que mero exercício de intelectualismo oficial. A mentalidade revolucionária de fato vê a corrupção (e a criminalidade urbana, acrescento) não apenas como possível mal menor, mas até como aliada pontual, visto que o projeto de chegar ou se manter como estamento, isto é, por o Estado em situação de sítio, é um fim em si mesmo justificado por qualquer meio (e alardeado com os chavões “defesa das riquezas nacionais”, “distribuição de renda”, “justiça social”, como é sabido).
Em época de desgaste e total falta de credibilidade da classe intelectual, que errou quilometricamente o alvo em virtualmente tudo que importa na última década e meia, como é possível não apenas que a versão esdrúxula de Jessé Souza ganhe corpo, mas que passe batida aos olhos mais atentos, senão sem uma resposta pontual, ao menos com a devida exposição como produção subserviente à elite que atrasou o Brasil nos últimos 13 anos, a saber, o corrupto estamento lulo-petista?
André Assi Barreto é professor de Filosofia das redes pública e privada do Estado de São Paulo, tradutor e assessor editorial das editoras Linotipo Digital e Armada.
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