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No Górgias, um dos mais importantes diálogos de Platão, somos apresentados à indigesta figura de Cálicles, político ambicioso nascido na ilha de Egina, cuja imoderada defesa da lei do mais forte até hoje parece inspirar os apóstolos da Realpolitik. Manifestando seu agressivo desdém pela investigação socrática acerca da natureza da justiça, o sofista afirma que o sucesso de uma empreitada basta para lhe conferir valor moral, sendo a força, no fim das contas, o fundamento do justo.

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A certa altura do diálogo, Cálicles descreve a filosofia como atividade talhada para jovens, não para homens feitos, caso em que passa a ser ridícula. Fazendo troça das especulações do filósofo, aponta a sua inutilidade em face daquelas situações em que só o poder arbitra, pouco importando se quem o exerce o faz ou não de maneira justa. Instando-o a deixar de lado as tolices filosóficas e se dedicar à vida prática, ele provoca Sócrates: “Agora mesmo, se alguém te detivesse ou a algum dos teus iguais, e te metesse na prisão sob o pretexto de algum crime que não houvesses cometido, terás de confessar que não saberias como haver-te, mas ficarias com vertigens e de boca aberta, sem achares o que dizer no instante de te apresentares ao tribunal, e, por mais insignificante e desprezível que fosse o teu acusador, virias a perder a vida, se lhe aprouvesse pedir para ti a pena capital”.

Imune à malícia do interlocutor, Sócrates permanece sereno e encerra o diálogo com o mito do julgamento dos mortos, segundo o qual, após despir-se dos trajes corporais adquiridos neste mundo, a alma torna-se visível e exposta. “Quando chegares à frente do teu juiz, filho de Egina, e ele puser a mão em ti e levar-te para o julgamento”, responde o filósofo às maledicências do outro, “ficarás de boca aberta e com vertigens, tal como eu aqui”.

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Mutatis mutandis, a provocação do sofista ao filósofo lembra a que, séculos depois, os algozes de Jesus Cristo lhe dirigem ao pé da cruz: “Salva-te a ti mesmo, e desce da cruz (...) Salvou os outros, e não pode salvar-se a si mesmo” (Mc 15,30-31). Tal qual o filósofo, Jesus refreia o impulso de reagir segundo a mesma lógica do poder terreno usada por seus provocadores. Sua resposta, como a de Sócrates, aponta para uma dimensão que transcende a moldura humana da política e da guerra. Cada qual a seu modo, ambos recusam ceder às tentações daquele que, não por acaso, foi alcunhado de “o príncipe deste mundo”.

Aquelas tentações e a dificuldade em resistir-lhes são o tema de A Mente Imprudente: os Intelectuais na Atividade Política, livro do cientista político americano Mark Lilla que acaba de sair no Brasil pela Record, 16 anos depois do lançamento original. Nele, o autor dedica-se a compreender as razões profundas que levaram alguns dos mais destacados intelectuais europeus do século 20 a se envolver na política e, desgraçadamente, emprestar o intelecto privilegiado à causa das duas grandes ideologias de massa da época, o comunismo e o nazi-fascismo. Além de Martin Heidegger, cuja reputação foi indelevelmente marcada por seu envolvimento com o regime de Hitler, situação exposta no livro pela ótica desencantada de dois de seus mais célebres ex-admiradores, Hannah Arendt (sua amante) e Karl Jaspers, também Carl Schmitt, Walter Benjamin, Alexandre Kojève, Michel Foucault e Jacques Derrida figuram como personagens do drama.

Sendo os representantes possíveis de verdades transcendentes num mundo secularizado (daí Julien Benda tê-los descrito como os novos “clérigos”), aqueles intelectuais abdicaram dessa sua função e, fiéis à 11.ª tese marxista sobre Feuerbach, puseram-se antes a transformar o mundo que compreendê-lo. Fizeram-no alguns como numa implosão, internalizando a revolta metafísica contra o mundo. É o caso de Foucault e sua pulsão niilista pela transgressão via “experiências-limite” (com sexo, drogas e violência), que tanto influenciou suas análises moralizantes sobre os desajustados sociais e o seu nietzscheanismo suicida. Outros, como Schmitt e Kojève, entrando oficialmente na política e virando funcionários do governo (funcionário do Reich, no caso do primeiro). Outros ainda, como Heidegger e Benjamin, fundindo religião e política em versões particulares de messianismo político (nazista e comunista, respectivamente). Benjamin chegou a ser descrito pelo historiador judeu Gershom Scholem, seu amigo pessoal, como um “teólogo abandonado no reino do profano”. Segue-se, finalmente, o caso algo sui generis de Derrida, que, tendo começado na mudez política de seu combate linguístico contra o “logocentrismo”, também acabou recaindo num tipo singular de messianismo, um “messianismo estrutural” (na sua própria definição) visando a uma ideia eterna - a única não desconstruível - de justiça. Nisso, via-se como herdeiro de “um certo espírito do marxismo”, que o fazia ainda embargar-se de emoção aos primeiros compassos de A Internacional.

O grande mérito de Mark Lilla é conseguir articular os seis ensaios biobibliográficos que compõem a obra em torno de uma mesma ideia-força, a concepção grega de Eros, abordada em suas mais variadas facetas. É por essa via que ele busca responder à pergunta central: “Que pode haver na mente humana que tornou possível a defesa intelectual da tirania no século 20?”, um fenômeno que, ao contrário da tirania propriamente dita, seria inédito na história. Se tiranos houve desde tempos imemoriais, e em toda parte, argumenta Lilla, o “intelectual filotirano” é uma criação europeia do entreguerras, período em que, justamente, para falarmos como Leszek Kolakowski, “o diabo encarnou na história”.

Dedicando o epílogo àquela questão intrincada, o autor resume algumas tentativas frequentes de resposta, que apelam quer a uma história das ideias, quer a uma sociologia dos intelectuais europeus da época. Após apontar-lhes as insuficiências, opta pela mais clássica psicologia platônica, pressupondo, na esteira do filósofo, a existência de uma atração quase irresistível entre anseios intelectuais e ambições políticas, ou, em suma, entre saber e poder.

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Para Platão, uma mesma força psicológica pode atrair o homem tanto para a filosofia quanto para a tirania. Essa força é Eros, o amor. No Fedro, o filósofo imagina a alma humana como uma biga puxada por dois cavalos alados: um deles, nobre e bem domado, tende naturalmente, dispensando a chibata, na direção das coisas belas e verdadeiras; o outro, bruto e indomável, faz força rumo às regiões mais baixas da psique, perseguindo a cobiça e a concupiscência como se fossem um punhado de alfafa. Conforme um ou outro cavalo assuma o controle, a alma tende a quedar-se ao rés do chão ou, ao contrário, elevar-se.

Eros é, pois, uma força de igual vetor capaz de rumar em sentidos opostos. Como explica Sócrates, trata-se de uma espécie de loucura prazerosa, muito difícil de controlar. E é justo na capacidade ou incapacidade de autocontrole erótico que reside a diferença entre o filósofo, cujo amor à sabedoria nunca chega ao ponto de fazê-lo perder a alma, e o tirano, cujo amor ao poder adquire a forma de paixão avassaladora e incontrolável. O filósofo é aquele que sabe domar o tirano interior, origem tanto da tirania política quanto da sua apologia intelectual.

É digno de nota que, adepto confesso do liberalismo, Lilla tenha recorrido a Platão em seu estudo sobre a filotirania intelectual, indo na contramão de um certo senso comum acadêmico liberal que vê no pensador grego, idealizador da figura do “rei-filósofo”, o patriarca da imaginação totalitária contemporânea. Para os proponentes dessa tese (muito popularizada por Karl Popper), as três viagens que, ao longo da vida, Platão fez a Siracusa a fim de orientar os tiranos Dionísio I e Dionísio II, teriam sido a tentativa de concretização daquele seu projeto político. Desde então, a cidade siciliana tornou-se um símbolo da rendição intelectual à política. Daí que, ao retornar às aulas após o seu vergonhoso mandato como reitor nazista na universidade de Freiburg, Heidegger tenha ouvido de um colega mordaz: “De volta de Siracusa?”.

Mas, como bem mostra Lilla, aquela é uma leitura pedestre do envolvimento de Platão com a cidade e os seus tiranos. Como se depreende da leitura de sua Carta Sétima, o dileto aluno de Sócrates decepcionara-se com a política ainda jovem, primeiro em função do governo tirânico dos Trinta de Atenas (404-403 a.C.), e depois, de forma definitiva, do regime democrático que o sucedeu, responsável pela morte de seu estimado mestre. Além de ter uma visão cética da política, considerava degradante a cultura de Siracusa, que conhecera em sua primeira viagem, ao tempo do tirano Dionísio I. Sempre reticente, foi apenas por insistência de seu discípulo Díon, de quem ouvira maravilhas sobre o pendor filosófico do novo tirano Dionísio II, que Platão concordou em retornar à cidade outras duas vezes, concluindo ao final pela impossibilidade de incutir o verdadeiro espírito filosófico naquele sujeito arrogante, espécie de precursor do déspota esclarecido iluminista, que da vida intelectual extraíra apenas um “verniz de opiniões superficiais”, e que tentara cooptar Platão “por meio de distinções e presentes de dinheiro”.

Lilla argumenta que, ao contrário do que sugerem os críticos mais apressados, a ideia do “rei-filósofo” nunca foi um projeto político. Trata-se, antes, de um tipo ideal no sentido weberiano, ou de raciocínio por absurdo. Diferente de alguns intelectuais contemporâneos, que, como o filósofo americano Jason Brennan, propõem exatamente isto, Platão não entretinha qualquer utopia totalitária ou epistemocrática. O propósito de seu híbrido conceitual é incitar os interlocutores a imaginar a dissolução dos termos componentes, rei e filósofo, que se seguiria necessariamente à sua fusão. Afinal, um rei-filósofo, se existisse, não seria plenamente nem uma coisa nem outra. Portanto, a proposta platônica não é a de uma identificação completa do intelectual com o político, mas tampouco a de sua total disjunção. Trata-se, em vez disso, da sugestão de um compromisso entre a ordem interna da alma, especialidade do filósofo, e a boa ordem da sociedade, dever do governante justo.

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Se, nos diálogos platônicos, o tirano aparece como a imagem invertida do filósofo, em A Mente Imprudente os intelectuais filotiranos aparecem como a imagem invertida de Platão. Lilla faz da solidez espiritual deste último o termo de contraste para melhor ressaltar a fraqueza (demasiado humana!) daqueles. Enquanto Platão, autoconsciente da necessidade de controlar o seu Eros, resiste às tentações de Siracusa, Heidegger, Foucault e companhia cedem ao canto de sereia das ideologias de massa e dos modernos Dionísios, que apelam à sua vaidade, onipotência e superestimado senso de justiça.

Num país como o Brasil, em que tantos professores e estudantes universitários, cujas almas o cavalo xucro já arrastou para a lama, creem-se plenamente capazes de fazer um mundo melhor, o livro de Mark Lilla ganha contornos de urgência. Se, decerto, não será lido por aqueles, deve, contudo, ser lido por nós, para que nos protejamos dos efeitos nocivos de inteligências corrompidas.

(*) Flávio Gordon é antropólogo e autor do livro A Corrupção da Inteligência