Talvez somente os leitores de Michel Houellebecq tenham tido a sensação de que a vida imita a arte quando a imprensa divulgou o motivo de Alek Minassian ter matado dez pessoas e ferido outras dezesseis ao atropelá-las com uma van em abril de 2018. Minassian tinha vinte e cinco anos, não tinha nada de repulsivo fisicamente, era programador, recém-formado e respeitado pelos colegas. Objetivamente, ele era um bom partido, e sabia disso. Contudo, ele não conseguia atrair mulher nenhuma.
Vinte e quatro anos antes, no primeiro romance de Houellebecq, Extensão do domínio da luta, o jovem Tisserand também preenche todos os requisitos, menos aquele, intangível, que atrai as mulheres que não pensam que um homem é fundamental para seu sustento. A falta de jeito de Tisserand numa boate faz com que a menina por quem ele se interessou prefira outro e vá embora com este para uma praia próxima. Tisserand cogita matar os dois, juntos nas dunas. Não mata. Minutos depois, ele próprio morre num acidente de carro.
Não foi a primeira vez que o nome de Michel Houellebecq esteve próximo de um atentado. Quem não se lembra daquele 7 de janeiro de 2015, em que muçulmanos atiraram contra os redatores da revista satírica Charlie Hebdo, em Paris? Naquele dia exato haveria o lançamento do romance Submissão, em que Houellebecq imagina uma França brandamente islamizada pela via eleitoral. Os socialistas, aterrorizados com a possibilidade de que a direita assuma a presidência, preferem formar uma coalizão com os muçulmanos: um pouco como se a esquerda brasileira preferisse aprovar leis que obrigassem as mulheres a usar burca a passar alguns anos com o presidente Bolsonaro.
(Depois do atentado, porém, Houellebecq admitiu que o romance mais adequado seria 2084, também em 2015 por Boualem Sansal, inédito no Brasil, que imagina um islã propriamente totalitário.)
Corta para 2019, e a cena de certo modo se repete. Houellebecq inicia o ano publicando Serotonina, romance que teria antecipado o movimento dos “coletes amarelos” na França, representantes das classes médias baixas que se sentem cada vez menos representadas pelas elites francesas e prejudicadas pelo projeto político e econômico da União Europeia.
Os exemplos parecem confirmar a grandeza do artista como uma espécie de “antena da raça”, na expressão de Ezra Pound sobre os poetas. Mas podemos enxergar em Houellebecq algo muito menos mistificado e muito mais místico: apenas uma certa humildade.
Foi o que Houellebecq demonstrou na entrevista dada ao programa Émission Politique em 4 de maio de 2017. Como em Submissão, a disputa eleitoral foi marcada por uma ascensão espetacular da direita. Marine Le Pen foi disputar o segundo turno com Emmanuel Macron. De onde veio uma votação tão expressiva?
Houellebecq admitiu que assistiu à disputa presidencial “com uma sensação de mal-estar, que pouco a pouco se transformou em vergonha”. Ele percebeu que estava diante da “França periférica, que hesita entre Marine Le Pen e nada”. E confessou, falando dessa França: “Eu me dei conta de que eu não a compreendia, não a via, que tinha perdido o contato com ela – e, quando você escreve romances, esse é um erro profissional bastante grave.”
“E por que você não a vê mais?”, perguntaram os entrevistadores. “Porque eu faço parte da elite globalizada. (...) Eu não a conheço. Não posso escrever um livro sobre ela. É por isso que me sinto desconfortável”, respondeu Houellebecq.
Difícil não pensar que foi para tentar compreender essa França periférica, para tentar simpatizar com ela, que Houellebecq escreveu Serotonina.
Tragédia por excelência
Não que Serotonina não seja uma continuação evidente do projeto de Houellebecq de contar a história daquela “extensão do domínio da luta”, que Alek Minassian teria levado ao ponto mais extremo.
A ideia de “extensão do domínio da luta” é a ideia trágica por excelência. Algo deveria ser pacífico, mas vira terreno de competição, de rivalidade, de violência. Creonte, rei de Tebas, determina que um inimigo da cidade não seja enterrado. Antígona, a irmã desse inimigo, diz: “Não”. A autoridade é questionada. O que deveria ser pacífico é contestado. O domínio da luta é estendido.
Alek Minassian achava que, por ser objetivamente um “bom partido”, “merecia” o amor de uma boa mulher. Mas ele precisava enfrentar uma competição para a qual, como o Tisserand do romance de Houellebecq, era totalmente inapto. A ideia de uma mulher buscar um “bom partido” à moda antiga só faz sentido em sociedades pré-feministas, que não contam com um Estado de bem-estar social. Para os homens incapazes de seduzir, o domínio da luta agora invadiu suas expectativas de realização amorosa e sexual, e fez com que essas expectativas se tornassem antiquadas, obsoletas como um iPhone de primeira geração.
Em Serotonina, o domínio da luta chega à subsistência dos produtores rurais da França, outrora protegidos pelo Estado. O narrador, consultor do Ministério da Agricultura, fala de como os acordos de abertura comercial da União Europeia, junto com o corte de subsídios, vão destruir a vida desses produtores – o que, na verdade, não é muito diferente de permitir que aplicativos de “carona” ameacem o império de taxistas. Também não é uma questão de ser contra ou a favor: é preciso ser simplesmente tacanho para imaginar que uma pessoa que aluga um carro, compra uma licença, paga mil impostos e taxas, e ainda tem de se submeter a uma máfia, não vai se revoltar quando um aplicativo permite que qualquer outra pessoa ofereça o mesmo serviço, a preços mais baixos, e sem ter de vencer as mesmas barreiras.
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O que também não nos impede de observar que Houellebecq, por outro lado, não apresenta o ponto de vista do consumidor francês, que passa a ter acesso a produtos mais baratos graças a essa mesma liberalização, mas essa é a deixa que dou para que eu mesmo insista que Serotonina não é uma ilustração dentro de um argumento retórico contra a liberalização econômica promovida pela União Europeia. Alguém pensaria que Submissão é um panfleto disfarçado “contra” a islamização da França?
Afinal, como deu a entender no programa Émission Politique, Houellebecq não escreve romances para criticar. Ele tinha “vergonha” de não compreender de onde vinha a perspectiva daquela França desconhecida – e, embora as frustrações de seus personagens terminem num grande protesto, não há no romance a menor referência a uma tomada de posição partidária específica, nem mesmo a algum projeto político.
E isso não porque faltem convicções a Houellebecq, que gosta de dizer-se conservador e nacionalista, mas porque a história da “extensão do domínio da luta” é, em seus romances, não a história de um lado vitorioso, mas da desagregação e da desestabilização provocadas pela luta.
Desagregação: a remoção das barreiras comerciais leva à destruição daqueles produtores, assim como a remoção de tabus pela revolução sexual, mesmo que tenha trazido mais oportunidades de fazer sexo, também trouxe a frustração de Tisserand e de Alek Minassian.
(Mas consideremos por um instante o quanto pode ser charmoso simpatizar com produtores rurais franceses, que não terão mais camembert para vender, e como parece asqueroso simpatizar com Alek Minassian.)
Indiferença e abandono
Desagregação porque os personagens de Houellebecq são, retomando o título de seu segundo romance, “partículas elementares” entregues à entropia. Quase nenhum personagem de Houellebecq é capaz de agir em função de um compromisso, de agir por um ato de vontade. Isso assusta porque eu, leitor, conheço minha propensão a não ser mais do que uma “partícula elementar”, de me deixar levar por meus impulsos, de agir por pura inércia.
Eu e os personagens de Houellebecq gostaríamos de agir segundo uma das opções de Hamlet, isto é, “levantar armas contra um mar de problemas e, opondo-se a eles, vencê-los”, mas o grande obstáculo do mundo contemporâneo é a indiferença, que não é propriamente uma forma de antagonismo. Alek Minassian e produtores rurais não são vítimas de conspirações, mas objetos de indiferença. Não são escorraçados; são abandonados.
Mas eles também (e eu também) são culpados de imitar essa indiferença, abandonando a si mesmos. O produtor rural Aymeric, de Serotonina, pode ajudar a organizar um protesto no qual sabe que será morto, mas isso vem após ele ter sido também abandonado pela mulher e ter virado alcoólatra. Aliás, o narrador de Serotonina sugere que Aymeric abandonou seus animais ao provocar a própria morte.
Em Extensão, Tisserand talvez se mate por ter sido abandonado de antemão. O Bruno de Partículas elementares interna-se num asilo psiquiátrico, abandonando de vez o filho adolescente, depois de ser abandonado pela companheira, que se mata depois de ter ficado paraplégica. A Isabelle de A possibilidade de uma ilha, ao perceber o primeiro sinal da decadência de seu corpo até ali esplendoroso, pede o divórcio, certamente antecipando-se ao abandono do marido, e vicia-se em morfina.
Se o primeiro tema em Houellebecq é a “extensão do domínio da luta”, o segundo são as “partículas elementares” do título de seu segundo romance. Esse abandono e essa indiferença provavelmente vêm de H.P. Lovecraft. O primeiro livro de Houellebecq, Lovecraft: contra o mundo, contra a vida (na verdade, não existe ainda tradução para o português) é um misto de estudo literário e biográfico do grande clássico do horror do século XX, e, ao ler Partículas elementares temos a impressão de que o livro nasce da seguinte pergunta: e se aplicássemos o estilo de Lovecraft à história de duas pessoas afetadas negativamente pela liberação sexual do século XX? E se contássemos a história dos desajustados nos tons de um terror indiferente, como se eles não fossem nem propriamente vítimas, mas acidentes de percurso no cumprimento de leis inexoráveis?
Mesmo quando há um pequeno vislumbre de uma reação diante do abandono, a inexorabilidade da morte é ressaltada. Um parágrafo de Partículas elementares é uma explicitação dessa total indiferença do universo físico, em que a beleza é uma ilusão. O narrador fala dos últimos dias de uma paciente de câncer, então com quarenta anos, e que tinha sido o amor platônico adolescente daquele cientista que virá a criar a clonagem humana:
“A partir da terceira semana ela pôde sair, e fazer curtos passeios à beira do rio ou nos bosques ali por perto. Era um mês de agosto excepcionalmente bonito, os dias sucediam-se idênticos e radiantes, sem a menor ameaça de tempestade, sem que nada também viesse pressagiar o fim. Michel a levava pela mão, e muitas vezes eles se sentavam num banco à margem do rio Grand Morin. As folhas da relva estavam calcinadas, quase brancas, o rio, sob as copas das faias, desenrolava indefinidamente suas ondulações líquidas, de um verde escuro. O mundo exterior tinha suas próprias leis, e essas leis não eram humanas.”
Sim, o leitor aqui já pode começar a sentir-se asfixiado. Provavelmente em busca de ar, Houellebecq começa a dar algum espaço ao humor em Plataforma, seu terceiro romance. A técnica do terror e a do humor não são tão diversas: aterrorizante é o que acontece com os personagens com quem o leitor deve se identificar, engraçado é o que acontece com personagens de quem o leitor mantém certa distância. Os narradores de Houellebecq ainda não começaram a ver a si mesmos com humor, mas o autor Houellebecq já começa a vê-los assim – chegaremos lá.
Uma das premissas de Plataforma é engraçada pelo que tem de escandalosa: o projeto de formalizar o turismo sexual na Tailândia e vender pacotes para os europeus, principalmente alemães. “Os europeus não têm amor, e as tailandesas só têm o corpo para vender.” A possibilidade de uma ilha, provavelmente o romance mais bem-realizado de Houellebecq, retoma a clonagem que já aparece em Partículas elementares, mas dentro de uma seita que promete a imortalidade a seus fiéis (e doadores, porque as pesquisas, é claro, custam muito dinheiro). O mapa e o território imagina o assassinato do próprio Houellebecq.
Submissão, por sua vez, traz os professores da Sorbonne, alguns velhos virgens, comprados por um petro-islã saudita que oferece altos salários e casamentos com adolescentes. O próprio articulador da islamização da Sorbonne é um europeu que diz ter se convertido ao islã um dia depois que seu bar favorito, localizado num belo hotel art déco de Bruxelas, fechou as portas – no fechamento do bar ele viu a decadência da Europa.
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A maior piada de todas, porém, é que o islã de Submissão vinha para atender justamente os “perdedores” da revolução sexual que figuravam em Extensão do domínio da luta e em Partículas elementares. Alek Minassian não atropelaria ninguém: como ele fez sua parte e se tornou um bom partido, alguma moça lhe seria destinada – quiçá até mesmo quatro. Tisserand estaria tranquilo.
Por fim, Serotonina tem o nome de um neurotransmissor que o imaginário popular associa à felicidade, mas o romance não tem rigorosamente nada de feliz. O narrador toma um remédio fictício, Captorix, que pode aumentar seus níveis de serotonina, mas isso apenas permite que ele seja capaz de interagir com garçons e atendentes, ao custo de acabar com sua libido.
“O que falta nos romances de Michel Houellebecq é o amor”
A essa altura, já posso ouvir o leitor murmurando: “O que falta nos romances de Michel Houellebecq é o amor”. Eu mesmo ouvi essa frase da boca de um amigo francês em julho de 2015. É verdade que na obra de Houellebecq há muito sexo, e também é verdade que esse sexo é na maior parte dos casos sinônimo de amor, que não existe qualquer separação entre eros e ágape, nada desse tipo.
Mas também é verdade que esse amor, quando surge na vida de um personagem, é sempre fruto do acaso — o que, aliás, corresponde perfeitamente ao nosso senso comum: o amor é algo que encontramos mais do que algo que praticamos. Mais ainda, mesmo que o amor, um princípio de amor, seja encontrado, ele nunca é cultivado. Os casais se separam assim como se juntaram, sem acreditar que podem entender o que estava acontecendo, e sem realmente se esforçar contra vários tipos de desgaste, do corpo que envelhece à traição incentivada pela bebida.
A religião tampouco oferece uma saída. O islã de Submissão é claramente uma piada. O narrador do romance, porém, tenta converter-se ao catolicismo. Houellebecq contou, numa entrevista ao famoso programa de TV francês On n’est pas couché, que tentou converter-se, e que a ideia original do livro vinha dessa tentativa. Quem o leu, sabe que o narrador vai visitar a famosa imagem da Virgem de Rocamadour, e a contempla por algum tempo, tentando como que compelir uma experiência mística, e obviamente fracassa. Em Ennemis publics, troca de cartas com Bernard Henri-Lévi sem tradução para o português, Houellebecq ainda conta que tinha o hábito de ir à missa em Paris, que era católico enquanto a missa durava, enfeitiçado pelo efeito estético; mas bastava sair da igreja, rever a cidade, que seu agnosticismo voltava imediatamente.
E então, de súbito, ao fim de Serotonina, no fim do fim, nos três últimos pequenos parágrafos, uma consideração tão destoante que nos dá a impressão de que o autor decidiu atropelar de vez o narrador, justamente esse narrador que, contrariando o estilo das obras anteriores, mais se aproxima do tom coloquial, mais abandona a pontuação para fazer sua frase parecer descuidada, displicente, automática, irrefletida. A afirmação de que Deus vela por nós a cada instante, de que os êxtases amorosos que nos são dados são claros sinais disso. De que Cristo deu sua vida por nós por estar exasperado com o endurecimento dos nossos corações, que são os corações dos personagens do autor bestseller Michel Houellebecq.
Não se trata daquela conversão estética desejada. Não é também exatamente uma conversão puramente ética, no sentido de adotar os princípios de caridade do cristianismo sem no entanto adotar as crenças no sobrenatural. É um vislumbre de uma conversão talvez mística, da possibilidade do aparecimento de uma outra “lei não-humana”, que dá muita, mas muita curiosidade quanto ao próximo livro de Michel Houellebecq.