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violência urbana

Por que morrem tantos PMs no Rio de Janeiro?

Uma policial coloca flores no túmulo do coronel da polícia Luis Gustavo Teixeira, durante seu funeral em Sule Cap, no oeste do Rio de Janeiro, Brasil, em 27 de outubro de 2017, um dia depois de ser morto a tiros em uma favela. Teixeira era comandante do 3º Batalhão de Polícia Militar do Rio de Janeiro. Seu carro foi atingido por pelo menos 17 balas quando criminosos abriram fogo contra ele no Meier, bairro no norte do Rio de Janeiro. | CARL DE SOUZA/AFP
Uma policial coloca flores no túmulo do coronel da polícia Luis Gustavo Teixeira, durante seu funeral em Sule Cap, no oeste do Rio de Janeiro, Brasil, em 27 de outubro de 2017, um dia depois de ser morto a tiros em uma favela. Teixeira era comandante do 3º Batalhão de Polícia Militar do Rio de Janeiro. Seu carro foi atingido por pelo menos 17 balas quando criminosos abriram fogo contra ele no Meier, bairro no norte do Rio de Janeiro. (Foto: CARL DE SOUZA/AFP)

A cada três dias, um policial militar é morto no Rio de Janeiro. Em maio, o estado ultrapassou a marca de 50 mortes de PMs apenas neste ano. Os números se aproximam da sombria média que já havia sido registrada em 2017, quando 134 policiais perderam a vida ao longo do ano inteiro no estado, pouco mais que onze por mês.

A maioria deles nem mesmo estava trabalhando — nas mortes registradas até aqui em 2018, apenas 26% dos policiais estavam em serviço quando foram vitimados. Os demais estavam de folga, eram policiais da reserva ou reformados, mas sua identificação como PMs pelos criminosos teria precipitado uma ação ainda mais violenta do que em um ataque a uma pessoa comum.  

Além do custo humano, a mortandade de policiais tem um peso importante nas contas públicas do estado. Uma estimativa feita pela Diretoria de Assistência Social (DAS) da PM indica que, desde 1994, o Rio de Janeiro já gastou R$ 2,3 bilhões pagando pensões a famílias de policiais vitimados em mortes violentas – só no ano passado, o valor chegou a R$ 208 milhões.

Frequentemente denunciada como a polícia que mais mata no mundo, a PM do Rio convive diariamente com a outra face da estatística: também é aquela que mais morre. E enfrenta problemas cotidianos que vão muito além do confronto com os criminosos. 

Problemas de saúde 

Escassez de recursos materiais para operar, baixos salários, ameaças à integridade pessoal e à dos familiares — e, às vezes, a corrupção interna das próprias instituições policiais. Os problemas mais visíveis encarados na rotina de um PM são bem conhecidos dos governos e da população em geral, ainda que permaneçam sem solução.

Mas as dificuldades dos policiais não se resumem às questões mais evidentes. Com uma rotina em que a pressão é constante mesmo após tirar a farda, os policiais sofrem de doenças físicas e psicológicas em proporções muito maiores que a população em geral.  

Em 2011, um estudo da Fundação Oswaldo Cruz mostrou que mais de um quinto dos policiais militares já teve que se afastar do serviço por lesões permanentes que, na maioria dos casos, foram decorrentes da atividade profissional. Os PMs também sofrem mais com doenças crônicas potencializadas pelo estresse e pelas más condições de trabalho: apresentam índices de sobrepeso 32% maiores que a média nacional, um quarto sofre com níveis elevados de colesterol e mais da metade (53,5%) diz ter algum distúrbio de sono, entre outras moléstias. 

Para o coronel Ibis Pereira, ex-comandante geral da PM do Rio, esses dramas individuais acabam permanecendo menos visíveis e, assim, não constituem o foco dos investimentos em segurança pública.

“Existe uma relação que a maioria das pessoas não faz, que é a de um embrutecimento dos policiais causado por esse ambiente de trabalho. Essa rotina tem uma consequência na subjetividade, e o resultado é uma polícia violenta e violentada”, resume.

“A partir disso você tem o embrutecimento do policial, que se desdobra em uma polícia com sérios problemas de violência e corrupção. São reflexos da desumanização a que os policiais militares são submetidos, no Brasil de modo geral e particularmente no Rio de Janeiro”.  

O coronel participou de uma pesquisa do Laboratório de Análise da Violência (LAV) da UERJ entre 2013 e 2015, com resultados aterradores. “Nós mostramos na ocasião que a tropa estava adoecida, com altos índices de suicídio, por conta desse ambiente de trabalho esmagador”, diz Pereira. “O fato é que, desde lá, não houve nenhum tipo de mudança com relação à política pública, e se isso não acontece as condições de adoecimento permanecem. No Rio de Janeiro é ainda pior, pois podemos afirmar que essas condições se agravaram de uns tempos para cá, com a crise política, econômica e financeira do estado”. 

Rotina brutal

Visados por criminosos para represália inclusive quando estão fora de serviço, os policiais militares convivem com uma rotina de temor constante. “Quando ingressei na PM, em 1990, andávamos fardados e desarmados em transporte público. Hoje tenho colegas que comparecem armados para festas de crianças de 5 anos, dentro de condomínios”, relata Ronilson de Souza Luiz, major da PM de São Paulo e pós-doutor em educação pela PUC-SP, que analisou a formação de policiais militares em seus estudos. 

Frente às constantes ameaças, os policiais são submetidos a uma rotina que é violenta desde o momento da formação dos soldados que irão para as ruas. “Quando você fala em formar policiais, não se pode desconsiderar a realidade em que eles vão operar. Há um currículo visível, que se expressa em uma grade curricular, mas existem também currículos ocultos, determinados pela realidade: o policial tem no horizonte uma guerra, a guerra às drogas, e precisa se adaptar para sobreviver. Ou você se embrutece, ou enlouquece”, define o coronel Ibis Pereira. 

“No edital de 2018 para soldado o perfil psicológico pede: flexibilidade moderada, disposição para o trabalho, capacidade de liderança, relacionamento interpessoal adequado, inteligência, fluência verbal e resiliência – o ‘potencial para superar frustrações e reveses’”, destaca o major Ronilson Luiz. “Em ano eleitoral, chamo atenção aos futuros governantes para que não abusem deste quesito do edital”. 

Políticas ineficientes aumentam os riscos 

Com a experiência no comando da PM fluminense, Ibis Pereira ganhou notabilidade por defender a regulamentação do comércio de drogas. “A guerra às drogas é um discurso absolutamente falso na sua premissa e na sua análise”, argumenta. “De um modo geral, há uma crença de que a solução para o mal das drogas é prender as pessoas que estão vendendo e apreender as substâncias, e que isso levaria a um cenário em que as pessoas estão livres de drogas. Há 40 anos fazemos isso e não tentamos pensar em uma outra dinâmica. A guerra tornou-se a grande política pública”, critica. 

Apesar do seu posicionamento pró-legalização, o coronel entende que, mesmo em um cenário proibicionista, seria possível utilizar as polícias de maneira mais eficiente. Em 2016, um estudo do Instituto de Segurança Pública (ISP) do Rio de Janeiro demonstrou que cerca de 80% do volume de drogas apreendido vinham de apenas 5% dos casos. A imensa maioria dos casos, por outro lado, era de usuários ou vendedores do varejo, cuja detenção não chegava a trazer um volume significativo. A pesquisa do ISP mostrou que, em 2016, mais de metade das pessoas presas por tráfico (53%) tinham em posse menos de 60 gramas de substância entorpecente. 

“Para atuarmos de forma mais inteligente é necessário apostar na polícia investigativa. Para que a repressão não fique nos ombros de uma polícia que não investiga”, aponta Pereira.

Hoje, uma das grandes críticas ao modelo de segurança pública no Brasil é a falta de diálogo entre as polícias. Enquanto, no caso do narcotráfico, a investigação fica a cargo de uma polícia civil (federal), o patrulhamento ostensivo é responsabilidade da PM. Sem dispor das informações das investigações em andamento, os policiais militares acabam priorizando o flagrante.

“O flagrante delito vai ser buscado na periferia, nos lugares de pobreza, na favela, onde se pode identificar visualmente o comércio de drogas. Não vai ser nos bairros nobres onde muitas vezes se pedem drogas por telefone: para isso precisa de inquérito, quebra de sigilo telefônico. A PM não trabalha assim”, justifica o coronel.

A busca pelo flagrante expõe os soldados a riscos maiores e, em geral, rende apreensões de volume ínfimo.

“É muito mais fácil responder à demanda da sociedade para criminalizar determinados segmentos e mostrar apenas a ação nos morros, a repressão ao varejo, do que investigar a fundo quando aparece um helicóptero ligado a um político com cocaína dentro”, exemplifica Robson Sávio Reis Souza, professor da PUC-MG e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

“Se você tiver uma polícia preparada do ponto de vista técnico e investigativo, ela não vai atuar somente nas bordas do fenômeno da criminalidade, mas também no cerne. Vai começar a investigar uma corrupção institucionalizada que abarca os três poderes do Estado, que não querem enfrentar essa situação. Então você mantém o sistema policial correndo o tempo inteiro atrás dos aviõezinhos, que são mortos pela polícia ou entre eles, e são substituídos imediatamente por outros”, diz.  

Para Robson Sávio, os gestores públicos já conhecem o diagnóstico de que a ação das polícias deveria ser mais integrada. “Mas isso é uma aventura inglória, pois não encontra respaldo na própria institucionalidade do Estado e na sociedade, que em grande parte gosta desse modelo de polícia”, entende o especialista. “O Fórum Brasileiro de Segurança Pública estava em debate avançado para pensar em uma polícia de ciclo completo. Não uma unificação de polícias, mas um novo modelo, compreendendo investigação, perícia, etc. Essa discussão foi tirada de pauta pelo atual governo”, lamenta.

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