No Brasil, o Poder Executivo é sempre para onde se voltam as esperanças da população. Mesmo nos momentos de maior descrédito dos governantes, parece permanecer a ideia de que o erro foi na escolha dos nomes, e não em esperar que o Estado resolva todos os nossos problemas: assim, bastaria substituir os mandatários da vez para tudo se resolver.
Aproveitando-se dessa linha de pensamento, a cada ciclo eleitoral um novo candidato surge como uma liderança messiânica, capaz de combater as mazelas do país. Na propaganda, Lula foi o “pai dos pobres”, e Dilma herdou parte dessa imagem, conseguindo se eleger e reeleger. Na prática, viu-se que não era bem assim.
A situação, porém, parece estar mudando gradativamente. Lula até lidera as pesquisas de intenções de votos para 2018, mas tem uma rejeição majoritária – segundo pesquisa do Ibope realizada em abril, 51% dos consultados não votaria no petista de jeito nenhum. Dilma, por sua vez, foi afastada da presidência sem apoio popular e, apesar de defendida até hoje por parte da esquerda, nunca juntou multidões nas ruas pedindo sua permanência.
O cenário não é muito melhor para Michel Temer, que no final de abril viu seu governo bater míseros 4% de aprovação. A sequência de líderes impopulares, com gestões mal avaliadas, pode ter um efeito a longo prazo: fazer com que a população espere cada vez menos do governo.
Cultura intervencionista
A expectativa dos brasileiros em relação ao governo não vem do nada: é resultado de uma longa tradição de intervenções do Estado nos mais diversos setores da vida cotidiana. Desde o Império, passando pela República e com a profissionalização definitiva do aparelho burocrático estatal a partir do golpe de Getúlio Vargas em 1930, nenhum governo brasileiro abriu mão da cultura intervencionista – na vida social e também na economia. No Brasil, mesmo períodos que em outros países levaram a uma redução do Estado, como a ditadura militar (que, no Chile, representou o advento de um modelo neoliberal na América do Sul), foram marcados por um forte intervencionismo.
Para o cientista político Bruno Garschagen, o brasileiro parece viver um paradoxo: ao mesmo tempo em que a maioria da população diz não confiar nos políticos, ainda se espera muito do Estado. Em seu livro “Pare de Acreditar no Governo”, Garschagen traça as origens desse pensamento, indicando que independentemente do viés político, o que uniu os mais diferentes governantes brasileiros entre Dom João VI e Dilma Rousseff foi o compromisso em preservar ou ainda aumentar a extensão dos braços do Estado sobre a rotina da nação.
Para o autor, o Brasil precisa de uma “transformação cultural”. É impossível esperar que os governantes atuem contra o próprio sistema que lhes dá poder sem que a população compreenda as consequências do modelo intervencionista tão vigente no país.
“É preciso levar ao maior número de pessoas a ideia de que existe uma cultura intervencionista, explicar essa cultura intervencionista e de que forma essa política afeta as pessoas no dia a dia”, analisa. “Ela atrapalha a vida das pessoas – a vida social e também a econômica”.
Modelos messiânicos também lá fora
A esperança depositada no Poder Executivo, embora seja tipicamente brasileira, não é uma exclusividade nossa – mesmo países conhecidos pela sua defesa de menos regulamentações, como os Estados Unidos, viveram processos semelhantes nas últimas décadas. Esta é a tese defendida pelo jornalista Gene Healy, vice-presidente do Cato Institute, organização libertária sediada em Washington.
Para Healy, autor do livro “The Cult of the Presidency” (O Culto à Presidência), a crescente crença dos norte-americanos na infalibilidade de seus presidentes ajudou a fortalecer uma espécie de poder imperial que não tem efeitos apenas na política externa: também viola as liberdades civis dos próprios cidadãos dos EUA. “A ideologia política não é sequer um fator essencial”, diz Healy. “A ‘presidência imperial’ é um monstro de duas cabeças, gestado por progressistas e que chegou à maturidade pelas mãos dos conservadores”, afirma, em entrevista à Gazeta do Povo.
Em geral, os presidentes que costumam ser lembrados na história americana são sempre aqueles envolvidos em grandes demonstrações de poder, seja por sua participação em guerras ou em grandes políticas intervencionistas para impulsionar a economia –Franklin Roosevelt é um exemplo de alguém lembrado pelas duas razões, com o “New Deal” e a Segunda Guerra Mundial.
Por outro lado, aqueles que governaram em períodos de relativa paz e prosperidade, sem colocar o dedo do governo na vida econômica e social, frequentemente acabam relegados pelos historiadores como se seus governos não tivessem realizações relevantes.
Lá, como aqui, o problema parece ser semelhante, aponta Gene: como seria de se esperar, ninguém que alcança o poder deseja abrir mão dele – e a percepção pública parece premiar justamente aqueles cujo governo se vale das prerrogativas de um Estado forte.
Os exemplos se repetem: Barack Obama teve sua chegada à presidência saudada por muitos como uma oportunidade de frear o aumento do intervencionismo na vida cotidiana provocado após o 11 de setembro, mas seu governo não tomou qualquer medida para combater a vigilância massiva por parte das agências de Inteligência do governo.
Mudança passa pela conscientização
No caso do Brasil, talvez ainda seja muito cedo para prever quanto da impopularidade dos últimos presidentes é apenas um repúdio à figura individual de Lula, Dilma ou Temer – e quanto é, realmente, uma redução na fé generalizada de que o “governo”, enquanto entidade abstrata, ainda pode encontrar a solução mágica para as dificuldades do país.
Para Bruno Garschagen, “a baixa aprovação de Temer e Dilma ainda não podem gerar a afirmação de que o gosto do brasileiro pelo governo começou a declinar”.
O caminho para superar o messianismo ainda é muito longo. O ex-presidente Lula, afinal, ainda lidera as pesquisas eleitorais para 2018. Mesmo com a grande rejeição, o histórico recente demonstra que não é preciso ter apoio da maioria da população para chegar à presidência: em 2014, o número de abstenções, brancos e nulos foi superior tanto à votação de Dilma Rousseff quanto aos votos de Aécio Neves no segundo turno.
Uma vitória de Lula seria menos um reconhecimento de apoio popular ao ex-presidente, entende Garschagen, e mais um sinal de que “as alternativas políticas seriam ainda piores do que alguém que usou o Estado brasileiro a seu serviço e é acusado de ter participado desse grande esquema de corrupção investigado pela Lava-Jato”.
Se ainda não se pode afirmar com certeza que a esperança dos brasileiros no governo finalmente entrou em declínio, a sucessão de governos com pouca aprovação pode ajudar na transformação cultural defendida pelo autor de Pare de Acreditar no Governo.
Quando isso ocorrer e a população pressionar por um menor intervencionismo, a mudança poderia ser vista até mesmo dentro do próprio sistema político.
“Isso é possível desde que haja pessoas com vocação política que tenham e defendam essas ideias de um governo e de um Estado menores, e não nessa dimensão que nós temos. Aí, sim, você cria uma nova elite política comprometida com a sociedade, e não com mais intervenção”, conclui Garschagen.