Desde 1992 não há mulheres competindo na Fórmula 1. A falta de diversidade levou a Federação Internacional de Automobilismo (FIA) a criar, em 2018, a W Series, uma categoria de automobilismo exclusiva para pilotos mulheres. A decisão, porém, criou um debate sobre qual a melhor forma de fomentar a carreira de mulheres no automobilismo. A FIA foi alvo de muitas críticas entre parte das pilotos.
Uma das criticaram a entidade foi a jovem alemã Sophia Floersch, que compete na Fórmula 3. Ela afirmou que a categoria feminina não era “a maneira certa de ajudar as mulheres no desporto motorizado”. “Concordo com os argumentos [de que há poucas mulheres no automobilismo e que isso precisa ser incentivado], mas discordo da solução. Para mim, correr na W Series seria dar um passo atrás na minha carreira. Quero competir com os melhores, e os melhores são homens, por isso quero correr entre os homens”, disse a piloto alemã.
A jovem de 19 anos ainda comparou a situação à administração de empresas: “Precisamos de administrações femininas separadas das outras? Não. Este é o caminho errado”, concluiu.
Quando a categoria foi anunciada, a britânica e ex-piloto da Fórmula Indy Pippa Mann considerou a notícia “um dia triste para o automobilismo”. “Querem ajudar as mulheres competidoras as segregando em vez de lhes dar apoio. Estou profundamente decepcionada por ver um retrocesso histórico”, disse ela na ocasião.
Posteriormente, Mann elogiou as mulheres pilotos que se recusaram a ir para a categoria e lamentou que muitas “se sintam forçadas a escolher correr pela W Series”. “O sistema está quebrado. A Europa se aproxima da segregação como solução", criticou.
Projeção e experiência
O propósito da FIA com a W Series é aumentar a quantidade de mulheres pilotando. Elas mostrariam serviço, ganhariam projeção e experiência para depois migrarem para categorias integradas, já tendo retorno de mídia e patrocinadores.
Mas algumas competidoras temem que a categoria seja o início de uma separação entre homens e mulheres no automobilismo, sendo expandida para outras categorias já tradicionais.
Para fomentar a formação de pilotos mulheres, elas defendem que a FIA, em vez de criar uma categoria exclusivamente feminina, deveria criar programas para ajudar a financiar a carreira de pilotos mulheres.
Um exemplo que poderia servir de inspiração para esse projeto vem da Nascar, a competição norte-americana de carros de turismo. Ela criou um programa de desenvolvimento de pilotos chamado “Driver For Diversity (Piloto pela diversidade, DFD)”. O objetivo é fomentar a formação e entrada de minorias étnicas na categoria.
O DFD foi bem sucedido ao formar pilotos competitivos como Kyle Larson, que tem descendência japonesa e já venceu provas na Nascar.
Dessa forma, em vez de criar uma categoria exclusiva para mulheres, as pilotos alegam que a FIA deveria incentivar o automobilismo entre mulheres mantendo todas as categorias integradas e criando programas de financiamento para a carreira de jovens pilotos.
Apoio
Mas muitas mulheres no automobilismo apoiaram a criação da W Series.
A inglesa Jamie Chadwick, que atualmente compete na Fórmula 3 britânica, é uma das mais entusiasmadas com a nova categoria: “A W Series dá às pilotos outra plataforma para correr. Sou uma piloto de corridas e, se puder, vou correr os 365 dias do ano. Continuo disputando com homens em outros campeonatos, mas a W Series é o complemento perfeito para me ajudar a evoluir”, afirma.
A piloto Stephanie Cox, que disputa o GT4 europeu, também vê a W Series como algo positivo. “Falando por mim, quero ser uma piloto do mais alto nível possível e poder correr com os melhores pilotos, homens e mulheres. Para isso, é também importante ganhar o tipo de experiência que a W Series permite”, opina.
Estudo mostra que sexo não faz diferença no automobilismo
"A Fórmula 1 exige muito, fisicamente, das mulheres", disse Helmut Marko, consultor da equipe RBR. Para ele, as exigências físicas da modalidade são incompatíveis com a natureza feminina. Isso explicaria o fato de a categoria não ter mulheres no grid desde 1992.
A opinião é contestada pela piloto brasileira Bia Figueiredo: “O carro torna o esporte mais igualitário”. E os dados disponíveis dão razão à brasileira.
Um estudo realizado pela Universidade de Michigan é o mais completo a investigar o problema. Os pesquisadores analisaram a frequência cardíaca, respiratória e temperatura corporal, entre outros fatores, de pilotos homens e mulheres durante as corridas.
A conclusão foi a de que não há diferenças significativas nas reações fisiológicas entre homens e mulheres durante as corridas.
Por que há poucas mulheres no automobilismo?
Como a ausência de mulheres na Fórmula 1 não encontra explicação na biologia, então o fato de haver poucas mulheres no automobilismo se dá por questões culturais e comportamentais.
Para Bia Figueiredo, a explicação está justamente no fato de as pilotos mulheres serem poucas. “Somos minoria ainda, né? São pouquíssimas, raríssimas. Você é apaixonada, tem talento, mas ainda tem a parte financeira que é muito difícil. Hoje vejo meninas que amariam ter tido a mesma oportunidade que eu e não tiveram, e que poderiam ser grandes talentos também”, diz.
“Quantos pilotos cearenses já tivemos na Fórmula 1 até hoje? Nenhum, pois não há pilotos lá. Usando este exemplo, precisamos preparar mulheres, incentivar mulheres, para que a gente ganhe volume e possamos nos destacar”, compara.
Ela avalia que, até a década de 1970, praticamente não havia mulheres no automobilismo. E, como até hoje há menos mulheres nas categorias de base, as probabilidades de uma mulher chegar na Fórmula 1 são menores.
Bia se diz favorável a criação da W Series, mas defende a continuidade das categorias integradas.
Como se chega até a Fórmula 1?
“Para se chegar à Fórmula 1 é necessário muita dedicação, concentração e dinheiro”, avalia Sérgio Siverly, do site Boteco F1.
E esse caminho começa cedo: de seis a oito anos, no kart. Mas o veículo precisa ser profissional, o que desde muito cedo exige um grande investimento.
Se destacando no kart, o piloto ainda precisará participar de várias categorias de base, como a Fórmula Ford, a F3 Inglesa e a GP2. Porém, como são campeonatos de menor visibilidade, conseguir patrocínios é mais difícil.
“Há muitas pessoas que embarcaram nesse sonho de se tornar piloto de F1, contraíram dívidas perpétuas e naõ chegaram nem perto”, conta Siverly.
Caso o piloto se destaque, ele pode ser convidado a fazer testes com carros de Fórmula e ser contratado por uma equipe.
A principal dificuldade para a formação de pilotos, portanto, vai muito além do talento. É dinheiro.
O que dizem os pilotos homens sobre a falta de mulheres?
O piloto pentacampeão Lewis Hamilton já afirmou sentir falta da presença feminina na categoria e que gostaria de ver mais mulheres na pista.
Com bom humor, ele brincou com a situação no iníco da temporada de 2017. "Gostaria que dessem mais espaço para as mulheres no paddock. São homens demais!", disse, arrancando risos dos presentes na conferência.
O responsável pela W Series é o ex-piloto escocês David Coulthard. Ele afirma que o seu papel na promoção do campeonato é incentivar mais mulheres a entrar para o automobilismo, relembrando que sua irmã não teve oportunidades.
"Quero trazer mais mulheres para o automobilismo. Minha irmã correu, ela foi muito boa, mas não conseguiu o apoio porque minha família estava me apoiando e eu me arrependo disso. Se elas forem boas o suficiente, eles irão para a Fórmula 1", diz.
Brasileira na W Series
Conhecer a trajetória de uma piloto que sonha em chegar na Fórmula 1 pode ajudar a entender a importância que uma categoria como a W Series pode desempenhar. Isso porque a categoria se destaca por não ter custo de participação. Isto é, as competidoras não precisam de patrocínio. Tudo é bancado pela FIA.
A catarinense Bruna Tomaselli, 22, compete desde 2004 e nunca teve patrocínio ou apoio formal das entidades ligadas à modalidade. Sua carreira até aqui foi financiada por sua família, dona de um negócio na pequena cidade de Caibi, no oeste de Santa Catarina.
Foi com esse apoio que ela conseguiu entrar na USF2000, categoria de base da Fórmula Indy. Este ano, ela foi premiada por ser a piloto com maior número de ultrapassagens na temporada.
Ela conta que quase sempre era a única menina nas competições que disputou e que raramente havia outra mulher no paddock. "Mas, de uns tempos para cá, as coisas estão mudando. Há mais pilotos mulheres competindo, mas também mais mulheres fazendo parte das equipes, como engenheiras e chefes de equipes. Com o passar do tempo, a tendência é ter mais mulheres nesse esporte", avalia.
Tomaselli está participando da seletiva da W Series para compor o grid em 2020 e vê a categoria como possibilidade para ascender na carreira. “Nessa primeira temporada houve muitas experiências. Sem dúvida a categoria vai crescer nos próximos anos", diz.
Mulheres que se destacaram no automobilismo
Há diversos nomes femininos que já se destacaram no automobilismo, como a francesa Michele Mouton, que foi vice-campeã mundial de Rali em 1982, a alemã Jutta Kleinschmidt, campeã do Rali Paris-Dakar em 2001, e a piloto de Nascar Danica Patrick, que já venceu corrida na Fórmula Indy.
A própria Bia Figueiredo se destacou como a primeira mulher a vencer uma corrida de Fórmula Renault e também na Indy Lights.
A Fórmula 1 já teve cinco mulheres que integraram equipes como pilotos principais: as italianas Maria Teresa de Filippis (em 1958, na Maserati, e 1959, na Behra), Lella Lombardi (entre 1974 e 1976 na Brabham, March e Williams) e Giovanna Amati (1992, na Brabham), a britânica Divina Galica (1976, na Surtees, e 1987, na Hesketh) e a sul-africana Desiré Wilson (1980, na Williams).
Recentemente, a Fórmula 1 teve a colombiana Tatiana Calderón como piloto de testes da Sauber. Na temporada de 2014, a equipe suíça teve Simona de Silvestro como piloto de testes.
Em 2012, a escocesa Susie Wolff foi contratada como piloto de testes da Williams.