Na obra 1984, de George Orwell, havia o “Two Minutes Hate”, um momento diário em que todos deveriam assistir a dois minutos de um filme que retratava os inimigos do Partido e expressar seu ódio. De tempos em tempos, a internet experimenta seus “dois minutos de ódio” (que podem durar alguns dias), direcionando críticas a qualquer coisa que destoe do que é considerada a norma de conduta social predominante — e supostamente adequada.
Em 2018, por exemplo, causou alvoroço a matéria “Quanto custa o outfit?”, referente a um evento em que jovens ricos expunham e ostentavam o alto valor de seus vestuários. Por vezes esse tipo de hate é revisitado, como o que foi direcionado nos últimos dias aos compradores de um tênis cujo preço supera os R$ 6 mil e pode chegar a R$ 7 mil em alguns modelos. A controvérsia não é de hoje: o tênis de estética suja e pesada virou moda já há algum tempo, e seu preço se deve sobretudo a pertencer à badalada marca Balenciaga.
Volta e meia no debate público se questiona por que, no capitalismo, as pessoas pagam caro por itens de gosto duvidoso, especialmente em um mundo onde muitos não têm o que comer. A questão acaba servindo para atacar o sistema de livre mercado. Porém, há explicações econômicas para tanto.
Em 1895 o economista britânico Alfred Marshall demonstrou como a oferta e a procura “criam” o preço dos produtos. No entanto, há itens bastante específicos cuja demanda é determinada justamente em função do preço. O economista americano Thorstein Veblen formulou a Teoria do Consumo Conspícuo, segundo a qual “as pessoas consomem para serem notadas”, a exemplo do Rei do Camarote.
O desejo de pagar preços altos serve mais para ostentar a riqueza que para adquirir um bem de melhor qualidade. Dessa forma, um “bem de Veblen”, como ficou conhecido, não precisa ter maior qualidade que os equivalentes mais baratos, mas sim representar alto status.
A procura por esses itens aumenta quando ficam mais caros. Caso haja uma redução de custo, pode-se verificar um aumento temporário nas vendas, mas, após um período de tempo, com a popularização do produto, perde-se o caráter de ostentação e exclusividade, de forma que os mais abastados não mais farão questão de comprá-lo e as vendas cairão.
Esse tipo de comportamento consumerista é notável em mercados de carros de luxo, champanhe, relógios e determinadas grifes de roupa. Entre os bens mais conhecidos constam veículos como o Porsche e o relógio Rolex.
Isso ocorre porque o comportamento econômico não é ditado apenas pelo interesse pessoal racional de cada indivíduo, mas também por fatores psicológicos, como a busca por status. Não poderia ser diferente: indivíduos são seres sociais, que buscam, além da própria utilidade, o status, algo possível de ser obtido agindo de acordo com normas culturais, conforme teorizou o filósofo social Karl Polanyi.
Já o Nobel de Economia de 2002, Daniel Kahneman, demonstrou que as pessoas não são 100% racionais em suas decisões. Dessa forma, as ciências econômicas modernas foram expandidas para a psicologia, dando início à era da economia comportamental.
Atenção, leitor: a contribuição que levou Kahneman a ser laureado com um Nobel não foi dizer que pessoas gastam R$ 6 mil em um tênis feio porque não são racionais o tempo todo.
Status
Nesse contexto, a marca Balenciaga se desenvolveu desde o início do século XX vestindo celebridades e pessoas "da alta sociedade europeia". Após o falecimento de seu fundador no início dos anos 1970, o estilista espanhol Cristóbal Balenciaga, a marca ficou esquecida pela mídia. Seu renascimento ao final do século XX se deu, em larga medida, por voltar a ser associada a status. Atualmente a marca veste celebridades como Natalie Portman e Nicole Kidman.
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Mesmo que muitas das invenções da Balenciaga mirem um gosto duvidoso — muitas mesmo! —, ela também foi responsável por inúmeras inovações, que com o passar dos anos foram copiadas por outras marcas mais populares, e provavelmente já até vestidas por você e eu.
Portanto, não há nada de errado em pagar caro por itens de luxo por uma razão bem simples: como o dinheiro é do indivíduo, ele pode gastá-lo com o que bem entender (embora boa parte disso vá para o governo para que você receba em troca o indesejado apelido de “contribuinte”).
A despeito de não ter esse propósito, o consumo de bens de luxo pelos mais ricos também pode beneficiar os menos abastados ao longo do tempo, pois tende a funcionar como uma espécie de subsídio para a popularização da tecnologia.
Foi assim no passado com bens antes restritos aos mais ricos e que hoje são desfrutados até mesmo por aqueles que integram o quintil de menor renda da população. Se você lê este texto em seu notebook, computador pessoal ou smartphone, é pela mesma razão.
Não está convencido? Em 1937 a "Folha da Manhã" sorteou uma geladeira cujo preço era equivalente a mais de 60 vezes o valor do salário mínimo, que seria criado em 1940. Hoje mais de 93% dos brasileiros têm geladeira. Não há exagero em afirmar que as condições de vida atuais da classe média brasileira superam as de reis do século XIX.
Quanto a gastar com bens caros, não há nada de novo em dizer que o valor é subjetivo — a teoria econômica parte desta premissa desde 1871. Convenhamos: todos nós, em algum momento, já gastamos dinheiro com coisas que outras pessoas considerariam triviais. O porquê de adquirirmos algo é uma indagação que ainda inquieta estudiosos.
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E, dentro deste panorama, o senso estético também é subjetivo. Ao decidir escrever este artigo, omiti o preço e mostrei o tênis da Balenciaga para grupos de amigos e familiares perguntando suas impressões. E gosto realmente não se discute. Entre algumas opiniões críticas, vários gostaram do produto. Embora tenhamos sérias divergências em relação a vestuário e isso até apresente riscos à possibilidade de eu voltar a me encontrar com essas pessoas, não deixo de considerar justo que gastem como bem quiserem o próprio dinheiro.
Por que o capitalismo é tão odiado?
Quando um rico gasta tanto dinheiro em um tênis desses, questiona-se que o mercado permite aos indivíduos agirem com ganância ou egoísmo. O consumo de bens de luxo é um front de ataques ao sistema de livre mercado, não obstante ele seja responsável por proporcionar melhores condições de vida para seus habitantes e pela diminuição da pobreza.
Foi a partir deste paradoxo que, em 1974, o economista Israel Kizner publicou na revista The Freeman um ensaio denominado “The ugly market: Why capitalism is hated, feared and despised” (A feiura do mercado: por que o capitalismo é odiado, temido e desprezado?”, em tradução livre).
Entre os motivos elencados, consta a impressão de que o livre mercado possibilita diversos agentes agirem de forma egoística. Todavia, há, dentro do próprio processo de mercado, restrições à cobiça de seus participantes.
Outra questão comumente associada a esse tipo de crítica ao consumo de bens de luxo é a de que os anticapitalistas não costumam comparar o status quo com as transformações que o livre mercado proporcionou, beneficiando as condições de vida de seus habitantes ao longo do tempo.
Segundo Kizner, isso se dá porque a crítica à eficiência ou moralidade do capitalismo por parte deles se dá em relação ao mundo idealizado pelos anticapitalistas, o que apresenta pouca relevância para problemas reais.
A esse tipo de argumento se dá o nome de “falácia do Nirvana”. Para melhorar um mundo imperfeito deve ocorrer proposições em relação a esse próprio mundo imperfeito. Ademais, é simplesmente impossível reformar sistemas inteiros em sua integralidade como muitos revolucionários sugerem.
Buscar compreender isso é mais importante do que criticar como outras pessoas utilizam seu próprio dinheiro, mesmo que se faça isso demonizando o único sistema possível que pode lhe dar acesso a um smartphone.