“Jovem demais para fazer tatuagem. Jovem demais para fazer um piercing. Jovem demais para tomar álcool. Jovem demais para comprar cigarros. Jovem demais para comprar armas. Quer remover o seu pênis? Quem é a sociedade para te impedir?” A ironia é da transexual conservadora americana Blaire White, no Twitter. O assunto das assim chamadas crianças trans ocupa há anos os debates políticos nos Estados Unidos, e não dá mostras de retroceder para o esquecimento tão cedo. No mês passado, a empresa de mídia Daily Wire lançou um documentário em que o tema é proeminente.
Mas a própria Blaire relatou, no podcast de maior audiência no ocidente, do apresentador Joe Rogan, que sentia que era diferente desde os cinco anos de idade. Já a brasileira naturalizada suíça Roberta Close, 57 anos, que fez cirurgia de mudança de sexo em 1989, declarou à revista Quem, em 2019, que “era uma menina desde criança”. Adultos trans foram crianças um dia, mas isso não equivale a se afirmar que era adequado esse vocabulário quando estavam naquela faixa etária. À parte relatos pessoais, há conhecimentos que endossem a ideia de “crianças trans”?
Crianças disfóricas existem, mas chamá-las de trans é ir contra os dados
Debra Soh, canadense doutora em neurociência do sexo, conta em seu livro de 2020 The End of Gender (“O Fim do Gênero”, em tradução livre, inédito no Brasil) sobre o encontro que teve com um pai de uma suposta criança trans em um coquetel. “Na minha opinião, era muito provável que ele não tinha uma filha transgênero — ele tinha um filho gay”. O pai havia autorizado o bloqueio da puberdade do menino, que dizia que queria ser uma menina. “Por que ele confiaria em mim, uma completa estranha, acima de uma equipe médica inteira que conhecia bem a criança? Mas eu podia ver a dor nos olhos dele e sabia que uma parte dele se sentia dividida”, comenta a dra. Soh.
À primeira vista a atitude da cientista pode parecer empáfia. Mas as estatísticas estão do lado dela. Entre 60 e 90% das crianças que dizem que querem ser do outro sexo desistem disso quando chega a puberdade. São as conclusões de 11 estudos diferentes que as acompanharam. A disforia de gênero, como chama a psiquiatria essa vontade persistente de mudar de sexo e profundo desconforto com o próprio corpo, tem uma alta remissão entre as crianças que a manifestam, mesmo quando severa. Quando chegam à vida adulta, essas pessoas têm maior probabilidade de desenvolver uma atração por pessoas do mesmo sexo. Então a disforia era sinal de alguma coisa — mas não necessariamente de transexualidade.
Portanto, seria mais preciso reservar a palavra “trans” somente para os casos em que o tratamento hormonal e possíveis outros tratamentos cirúrgicos (não obrigatórios após o hormonal) são os mais recomendados medicamente para o alívio da disforia. Esse seria o caso somente quando é seguro que não haverá uma desistência, o que geralmente ocorre após a puberdade. Quando uma pessoa chega a um estado de maturidade suficiente para ser transexual, já não é mais criança. Assim, não se deve falar em crianças trans, mas em crianças disfóricas, cujo futuro é incerto.
As normas brasileiras parecem adequadas: somente maiores de 18 anos podem realizar cirurgias de mudança de sexo, como estabeleceu a diretriz 2.265 de 2019 do Conselho Federal de Medicina. Já a hormonioterapia cruzada (tomar hormônios do sexo oposto e, no caso dos garotos, também interromper a testosterona), só é permitida a partir dos 16 anos, quando a puberdade está avançada, com autorização de pais ou responsáveis. É uma solução a ser considerada por profissional médico, paciente e família caso a caso, não algo a ser recomendado para crianças disfóricas em geral. As cirurgias, mas também os hormônios, têm efeitos irreversíveis.
“Em muitos casos”, comenta Debra Soh no livro, “as crianças dirão que são do sexo oposto porque querem fazer as coisas que o sexo oposto faz, e esta é a única linguagem que elas têm para comunicar essa ideia”. Só por volta dos cinco aos sete anos elas aprendem que ser homem ou mulher é uma característica fixa que não muda com base em superficialidades como aparência ou atividades preferenciais.
Evidentemente, se cerca de 80% das crianças disfóricas desistem, 20% persistem. Nos Países Baixos, onde o assunto é estudado há mais tempo, as pessoas que persistem para a transexualidade têm uma taxa mais alta de suicídio que a população geral. Mas é uma taxa comparável à dos homossexuais. No maior estudo a respeito, já discutido aqui na Gazeta do Povo, envolvendo mais de 8 mil transexuais acompanhados em quase 50 anos, o tratamento de transição de sexo foi associado a uma queda de suicídios entre aquelas que transicionavam do sexo masculino para o feminino (“mulheres trans”), e não piorava as coisas para o outro grupo.
Ideias radicais que ferem jovens radicalmente
Se temos alguns bons indicativos de estudos, por que tanta polêmica nos Estados Unidos? É que, por lá, as diretrizes variam estado a estado, e entre hospitais. Há locais no país em que a vontade dos pais de menores de idade disfóricos pode ser atropelada pelo Estado, que oferece o tratamento e às vezes até moradia para o menor sair de casa. Foi o caso de Yaeli Martinez, menina de nascença que foi acolhida em moradia do Estado da Califórnia e, após tratamentos de transição para a expressão masculina sob protestos da mãe, cometeu suicídio. A diretriz do Estado claramente está sob influência de ativistas que pensam que, quando surge alguém como Yaeli, somente a “afirmação” do que a pessoa sente é aceitável como tratamento.
Muitas das ideias que circulam no ativismo identitário vão contra as diretrizes médicas brasileiras para transexuais. Algumas têm raízes acadêmicas, como a ideia de que gênero é algo distinto e não relacionado a sexo. Essa ideia, muito mais fruto de ativismo interno às universidades que da pesquisa científica, é criticada por cientistas como Marco del Giudice, especialista em diferenças entre sexos na espécie humana e professor do Departamento de Psicologia da Universidade do Novo México, nos Estados Unidos.
Em um capítulo de livro de 2019 no qual ele faz uma revisão de vários métodos para medir as diferenças entre os sexos, Marco comenta que “a distinção sexo-gênero é problemática e, em última análise, infactível”, pois “não apenas ela sugere uma separação nítida entre explicações sociais e biológicas; também pressupõe que já se sabe se um certo aspecto do comportamento é biológico ou socialmente construído para o fim de escolher o termo apropriado”. Coisas que parecem totalmente culturais, como as diferenças de escolha de carreira, têm participação de fatores biológicos, por exemplo. Assim, a distinção entre sexo e gênero seria uma distinção sem real diferença.
Essa distinção é vista em materiais didáticos para educar a respeito da transexualidade. O potencialmente mais famoso desses materiais é o desenho de um boneco inspirado no formato de um biscoito de gengibre popular na culinária de Natal de países anglófonos. Ele é destacado na cabeça, coração e área genital. A identidade de “gênero” seria do domínio da cabeça, isso supostamente seria independente da atração, que está no coração, e também do sexo, apontado na área genital. Esse esquema ignora grande parte da própria pesquisa com transexualidade, que aponta que na verdade são aspectos interrelacionados com altíssima frequência.
Confusões filosóficas e científicas do ativismo geram resultados — muitas vezes indesejados — no mundo real. O desconforto com o próprio corpo, que é comum entre adolescentes, passa então a ser interpretado incorretamente como disforia. A palavra “transgênero”, mais amena à ideologia, passou a ser mais utilizada que “transexual”, com mais âncora na realidade. E o termo “gênero” atrai teorias radicais que viraram material de segunda mão em redes de blogs e grupos que sugerem que, se um jovem se sente diferente a respeito de como se expressa, deve ser “transgênero” — e a disforia é até jogada fora como critério necessário para isso. Sites de ativismo sugerem a sério que pessoas podem ser “gênero praia”, “gênero fofo”, “gênero estrela”, entre outros termos menos inteligíveis. O resultado é mais confusão e, potencialmente, mais sofrimento para uma geração cada vez mais afetada em sua saúde mental pelas redes sociais e o paradoxal isolamento concomitante.
Ironia trágica
Há uma trágica ironia na atual maior aceitação de pessoas com disforia e as possíveis transformações sociais e biológicas pelas quais elas passam. Quando o tabu era maior, causava mais sofrimento àquelas pessoas para as quais a transição era o melhor tratamento possível, mas ao mesmo tempo isso assegurava que a transição não fosse oferecida para quem ela seria desnecessária.
Agora, com os ajustes politicamente corretos de vocabulário — cirurgia de “readequação” ou “confirmação” de “gênero” em vez de cirurgia de mudança de sexo, “transgênero” em vez de transexual — e o ativismo pela inclusão, alegados trans entre os jovens americanos explodiram. Foram de raríssimos décadas atrás para 5% entre os americanos menores de 30 anos, segundo pesquisa do Pew Research Center. Com a pressão pela “afirmação” e também uma moda desvinculada da disforia, já são conhecidos casos trágicos de desistência após hormônios e cirurgias, especialmente entre jovens do sexo feminino, que sempre foram mais vulneráveis a contágios sociais, da bulimia à autoidentificação LGBT. A ideologia progressista também está vinculada ao fenômeno.
Portanto, falar em “crianças trans”, ignorando os detalhes de tratamento que, apesar da pouca pesquisa, contam ao menos com práticas de décadas na psiquiatria, seria uma atitude que tende a alimentar a confusão e glorificar a substituição da análise ponderada de fatos pela sanha ideológica de pregar uma só solução para todos os casos. A diversidade de ideias seria bem-vinda até na psiquiatria, em que o termo “gênero” e suas ambiguidades é utilizado sem grande atenção à controvérsia acadêmica.
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