Como foi possível que um aposentado de vida pacata montasse um arsenal dentro de um quarto de hotel em Las Vegas e começasse a disparar contra uma multidão? O que acontece no Rio de Janeiro, onde qualquer disputa entre traficantes, ou entre criminosos com a polícia, envolve metralhadoras, carabinas, fuzis, granadas e bazucas?
No caso dos Estados Unidos, a política de venda quase irrestrita de armamentos favorece o surgimento de atiradores solitários. No Brasil, o mercado paralelo de armamentos provoca números típicos de guerras: as armas de fogo matam 40 mil pessoas no país todos os anos – o equivalente a dois terços de todos os homicídios cometidos no país.
Boa parte das armas foi comprada legalmente, mas foram parar na mão de criminosos, ou contrabandeadas de fora do país – neste caso, elas entram por terra, em toda a faixa de fronteira que vai do Amazonas ao Rio Grande do Sul (mas especialmente via Paraguai), e também pelos maiores portos do país, em especial Santos, Sepetiba e Paranaguá. A Polícia Federal estima que 60% de todo o arsenal desviado, tenha sido produzido dentro ou fora do país, tenha como destino o Rio de Janeiro.
Como resolver esse problema? Esperar que o tráfico de armas diminua é uma ilusão. Contar com a melhoria dos controles da Polícia Federal e do Exército também. Confiar no bom senso das pessoas que andam armadas tampouco é uma ideia eficaz. Mas e a tecnologia? De que forma descobertas e invenções podem reduzir, de maneira inquestionável, o acesso e o uso de armas de fogo, tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos?
Soluções promissoras
A melhor alternativa em desenvolvimento neste momento são as chamadas armas inteligentes. Dezenas de diferentes modelos estão em fase de testes no mundo inteiro, principalmente no mercado americano, mas algumas opções já estão disponíveis. Elas são conhecidas como inteligentes porque garante que apenas quem a comprou possa usá-las. Assim, não poderiam ser vendidas no mercado negro, furtadas de delegacias para uso criminoso. Nem mesmo crianças que, eventualmente, encontrassem a pistola do pai seriam capazes de dispará-las por acidente.
A identificação biométrica funciona de diferentes formas. O Instituto de Tecnologia de Nova Jersey, por exemplo, desenvolveu ainda em 2005 um sistema de sensores inseridos na empunhadura da arma. Quando o gatilho é pressionado, esses sensores fazem o mapeamento da mão de quem está com a arma. Se o resultado for diferente, a peça permanece travada.
Outro sistema, desenvolvido na Alemanha, envia sinais de rádio a partir de algum acessório usado pelo dono – geralmente um relógio ou uma pulseira. Enquanto o acessório estiver próximo do armamento, ele fica destravado. Uma desvantagem o sistema ainda poderia permitir que um ladrão tomasse a pulseira do dono, junto com a arma, e passasse a ser a única pessoa com condições de usá-la.
Uma startup concorrente, de Israel, aposta numa espécie de cadeado para o desbloqueio, ao qual só pessoas escolhidas pelo dono da arma têm acesso. Existe uma quarta alternativa, a que recebe os maiores investimentos dos desenvolvedores: o cabo da arma ganha um leitor de impressão digital semelhante ao usado por bancos em seus caixas eletrônicos – e muito parecida com o sistema de desbloqueio por digital que já existe em smartphones. Nesse caso, apenas uma lista de digitais autorizadas poderia liberar a arma. É a opção mais segura e difícil de driblar.
Reações contrárias
O complicado é emplacar esses modelos em escala global. Não é uma questão de preço: as armas com identificação biométrica não custariam mais caro, mesmo incluindo chips e baterias (que precisam ser recarregadas apenas duas vezes por ano). O maior problema, especificamente nos Estados Unidos, é outro: a reação dos defensores de armas, que defendem que este tipo de bloqueio, barra seu direito à defesa.
Uma pesquisa do instituto Pew de abril deste ano indica que 47% dos americanos consideram que os direitos de uso de armas são mais importantes do que o controle. Os defensores das armas dizem também que esses sistemas precisariam ser 100% eficazes, e não apenas 99,99% - ou então o dono poderia ser vítima de uma falha de um chip.
“A tecnologia para armas inteligentes está adequadamente desenvolvida. Mas os potenciais investidores neste tipo de produto temem o boicote de entidades poderosas como a National Riffle Association (NRA) e outras organizações pró-armas”, diz Steve Teret, um especialista em saúde pública da Universidade Johns Hopkins que acompanha a evolução desse mercado e seu potencial para reduzir mortes.
Do ponto de vista do controle de violência, a medida precisaria ganhar escala. Afinal, se poucos fabricantes aderirem, o comércio ilegal poderia se apoiar nos modelos que não usam o sistema. Além disso, existem poucas e pequenas empresas apostando nesse densenvolvimento. Uma startup americana, a Smart Tech, lançou, em 2013, o Firearms Challenge, mas muitos dos participantes pediram para não ser identificados, tamanha a pressão dos grupos americanos pró-armas.
Em janeiro de 2016, o presidente Barack Obama chegou a esboçar um programa de desenvolvimento de armas inteligentes – quando elas ganhassem escala, o presidente pretendia proibir a venda de armas que não contassem com dispositivos de identificação biométrica. O novo governo Trump não se mostrou interessado na continuidade dessas pesquisas.
De concreto, por enquanto, existem poucos produtos. A empresa americana Kodiak, por exemplo, desenvolveu um leitor de digital que pode ser acoplado às pistolas M1911, uma das mais populares dos Estados Unidos. Existe também uma arma específica, comercializada nos Estados Unidos por um dos vencedores do Firearms Challenge: a Identilock, uma pistola que custa US$ 319,00 para os americanos e usa o sistema de digital. Funciona bem e é rápido: em menos de um segundo o sistema libera o uso. “As armas inteligente funcionam bem e poderiam reduzir a incidência de três tipos específicos de morte por armas de fogo: suicídios, homicídios e disparos ocasionais”, diz Steve Teret.
Trauma da adolescência
O criador da startup que comercializa a Identilock, a Sentinl, é um empresário de Detroit chamado Omer Kyiani. Ele mesmo é defensor do uso de armas e focou no desenvolvimento da tecnologia para impedir tiros acidentais. E por um motivo justo: aos 16 anos, ele foi atingido na boca por uma bala perdida. Muitas cirurgias depois, ele reconstituiu o rosto, mas nunca esqueceu o trauma. Ele vende seu produto como uma arma segura para pais de família preocupados com o risco de filhos pequenos terem acesso – algo como uma trava mais sofisticada.
Modelo parecido, em estágio menos avançado de desenvolvimnto, surgiu pelas mãos de Kai Kloepfer, um estudante do MIT (Massachusetts Institute of Technology). Ele começou a pesquisar o assunto com 15 anos, em 2012, depois de um assassinato em massa no cinema de Aurora, perto de sua cidade natal, Boulder, no Colorado. Aos 18, desenvolveu seu primeiro protótipo já usando o prêmio que, assim como Omer Kyiani, ele ganhou do Firearms Challenge. É também uma arma com identificação digital.
Nenhum modelo, de qualquer porte, chegou ainda ao Brasil. A questão é: mesmo que chegasse, as armas que já circulam são suficientes para fazer estragos por muitos anos. Além disso, as novas tecnologias não impedem que uma pessoa que adquiriu uma arma legalmente a use para matar alguém.
A essas críticas, os desenvolvedores respondem: as armas inteligentes são como cintos de segurança, ou airbags. Reduzem os danos, principalmente no caso de tiros acidentais e no uso de armas roubadas da parte de grupor criminosos organizados, mas não impedem uma pessoa de cometer crimes.
Contra atiradores solitários
Sobre o atentado de Las Vegas, por exemplo: não existe biometria disponível para armas do porte das utilizadas pelo atirador Stephen Paddock – a polícia ainda não divulgou detalhes sobre o arsenal que ele utilizou, mas sabe-se que foram ao menos 16 armas, semiautomáticas, possivelmente modificadas para atuar como se fossem automáticas.
Comprar armas semiautomáticas é possível nos Estados Unidos, ainda que os adaptadores que Stephen possivelmente usou para fazer com que elas funcionassem como automáticas não sejam legalizados. Quem compra armas semiautomáticas no país precisa preencher uma ficha, ser fotografado e apresentar suas digitais, além de pagar uma taxa de US$ 200 – o mesmo valor era cobrado em 1934 e nunca foi reajustado.
De toda forma, a tecnologia de biometria disponível poderia ser aplicada a semiautomáticas. Mas não teriam utilidade se ele comprou suas próprias armas. Nesse caso, a biometria autorizaria o uso, mesmo que para matar dezenas.
Biometria no Rio?
Funcionaria no Brasil? O sociólogo Antonio Rangel Bandeira, pesquisador do projeto de Controle de Armas da ONG Viva Rio, escuta falar das armas inteligentes há mais de dez anos. Participou em 2013 de um seminário sobre uso seguro de armamentos promovido, na época, pelo presidente Obama e o ex-prefeito de Nova York, Michael Bloomberg. “Parecem tão óbvias suas vantagens: só dispara nas mãos de seu proprietário legal, mediante leitura de suas impressões digitais; evitaria acidentes com crianças; uso indevido e roubo”, ele diz. “Mas não se fabrica em escala industrial, nem se propala o seu uso.”
Bandeira lembra que a cidade abandonou um programa que, no contexto da cidade, seria mais eficiente por evitar que armas de policiais fossem parar nas mãos de traficantes. “A polícia do Rio chegou a introduzir a título experimental controle biométrico (tomada de suas digitais, relacionando-as à sua arma de serviço) dos policiais ao receberem a arma para uso, de forma a prevenir desvios e mau uso. Mas depois abandonou essa e outras medidas de fiscalização interna”.