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Em novembro de 2002, não havia melhor lugar para um jornalista recém-formado estar do que no imponente prédio de 25 andares da Editora Abril, em São Paulo. Milhares de funcionários estavam distribuídos em centenas de redações de revistas como Veja, Exame e Superinteressante. Na banquinha localizada no térreo, as revistas eram exibidas orgulhosamente como o produto mais bem-acabado da maior editora do país.
Eu havia me formado fazia pouco tempo na PUC-PR e estava em São Paulo fazendo por três meses o curso de Focas do jornal O Estado de S. Paulo (Focas é a gíria dos jornalistas para os recém-formados). Na última semana no bairro do Limão, sede do Estadão, tirei uma tarde livre para ir até a Editora Abril conhecer as redações e pedir frilas na cara de pau.
Nossas convicções: O valor da comunicação
Cresci lendo as revistas da Abril que meu pai trazia para casa. Me alfabetizei lendo a Turma da Mônica quando ainda era publicada pela Abril (depois foi publicada pela Editora Globo e atualmente pela Panini), como milhares de outros brasileiros. Com nove anos de idade, adorava criar minhas próprias revistas e passava horas copiando os infográficos das publicações abrilianas.
Então, anos depois de sair do interior do Paraná, pisar no chão de granito do hall de entrada da Abril era para mim a realização de uma longuíssima jornada que sempre me pareceu um tanto impossível.
Nessa primeira vez, saí de lá com alguns frilas para as revistas InfoExame. Sete meses depois, no entanto, voltei para trabalhar em VEJA — como a particular gramática abriliana exige. Depois parti para outros veículos de São Paulo, até voltar definitivamente à maior revista do Brasil, uma das principais semanais do mundo, em 2010, como editor de ciência e saúde de Veja.com. Foram três anos trabalhando com alguns dos jornalistas mais inteligentes que já conheci.
Quando deixei a publicação para voltar a Curitiba em 2014, a Abril fervilhava de gente. Pessoas criativas e empenhadas, que faziam as melhores publicações do Brasil.
Nossas convicções: As empresas, sua finalidade e o bem comum
Hoje, quatro anos depois, a editora não ocupa mais o luxuoso edifício à beira da marginal Pinheiros. Demitiu milhares de funcionários e vendeu ou simplesmente descontinuou a maioria de seus títulos. Não cabe a este texto tentar explicar o que fez a empresa declinar tão rapidamente, embora seja de conhecimento público as dificuldades que o mercado editorial enfrenta.
É triste, porém, perceber que para cada notícia sobre a derrocada da Abril existe uma claque que aplaude a crise com entusiasmo, tanto à direita (que acha que as publicações da editora optaram por lacrar, seja lá o que isso signifique) quanto à esquerda (que nunca perdoou a VEJA e outras revistas do grupo por revelarem os podres do Partido dos Trabalhadores). Aliás, essas duas “acusações” se estendem para boa parte da imprensa, principalmente quando ela desagrada as torcidas organizadas dos partidos e políticos.
Se o declínio da Abril já é triste o suficiente pelos empregos perdidos, de pessoas que têm família para sustentar, pelas publicações encerradas, que levavam informação e entretenimento para milhões de leitores, há um outro aspecto que deve ser levado em conta: quando revistas e jornais morrem, a democracia morre junto, aos poucos.
Um estudo realizado por pesquisadores das Universidades de Notre Dame e Chicago e publicado em maio deste ano mostra como o desaparecimento de jornais locais impacta as finanças públicas. A conclusão da pesquisa: quando um jornal morre, o governo local perde eficiência, ou seja, sem a vigilância da imprensa, passa a custar mais caro para os pagadores de impostos.
Para chegar ao resultado, o coordenador do estudo, Pengjie Gao, da Universidade de Notre Dame, analisou 1.600 jornais de 1.266 cidades americanas entre 1996 e 2015. Gao e os outros pesquisadores estudaram o modo como o dinheiro público era gasto enquanto a cidade tinha um jornal ativo e depois de seu fechamento.
Diz o estudo:
Após o fechamento de um jornal, os custos dos empréstimos municipais aumentam de 5 a 11 pontos base, impondo ao município um adicional de US$ 650 mil por edição. Este efeito é causal e não é impulsionado por condições econômicas subjacentes. A perda de monitoramento do governo resultante do fechamento está associada a maiores salários e maiores déficits do governo, e aumenta a probabilidade de reembolsos antecipados dispendiosos e licitações com cartas marcadas. No geral, nossos resultados indicam que os jornais locais mantém os governos sob vigilância, mantendo baixos os custos municipais e, em última análise, economizando dinheiro dos contribuintes.”
Um exemplo citado pelos pesquisadores de como o fechamento de um jornal faz mal para a cidade, tanto para as finanças quanto para a democracia local, foi o fim do Rocky Mountain News, de Denver, no Colorado, em 2009.
Uma pesquisa nos artigos da Rocky Mountain News sugere que eles forneceram uma valiosa cobertura de questões do governo local, incluindo uma auditoria de fundos federais questionáveis que foram alocados para o departamento de xerife local, um acordo espúrio entre o governo da cidade e a companhia aérea Lufthansa, que pode ter violado a lei federal, e um esquema no Aeroporto Internacional de Denver em que os funcionários estavam recebendo salários irregulares. Estes exemplos sugerem que o Rocky Mountain News foi um importante agente de monitoramento para o governo, fornecendo informações aos moradores locais sobre como seus impostos estavam sendo gastos.”
Outra pesquisa, desta vez conduzida na Inglaterra, mostra como o engajamento da população na democracia local, por meio do comparecimento em votações, diminuiu a ponto de ficar abaixo da média nacional, pela primeira vez, após o fechamento do jornal local.
Se pequenas publicações têm tanta importância, a importância das revistas da Abril é algo quase inestimável. A revista VEJA, por exemplo, foi quem revelou o esquema de propinas nos Correios organizada pela PTB, mostrando o fio da meada que desembocaria no que depois foi chamado de Mensalão, que desviou mais de 100 milhões de reais de dinheiro público.
A VEJA também teve papel central no escândalo do Petrolão, revelando as falcatruas que custaram mais de 30 bilhões de reais (ou 48 bilhões em números atualizados)
É normal e saudável que nem todos concordem com a linha editorial de veículos importantes de comunicação. Globo, Folha de S. Paulo, Estadão, VEJA e a Gazeta do Povo são frequentemente questionados e atacados por grupos de todos os espectros ideológicos. Muitas vezes com razão, muitas vezes sem.
A imprensa não é perfeita e nunca será. Mas a democracia é bem melhor quando estes veículos existem e fazem seu indispensável trabalho de monitoramento do poder. Sem eles, o mundo fica mais pobre — literalmente.