Ouve-se muito falar que é o representante brasileiro quem “sempre faz o primeiro discurso” na Assembleia Geral das Nações Unidas, que se reúne em Nova York todo no mês de setembro, mas isso não é exatamente verdade: o que hoje é a ordem tradicional dos discursos – Brasil primeiro, Estados Unidos em segundo, e depois os demais países, de acordo com um sistema que leva em conta, entre outros critérios, o nível de representação (se é o chefe de Estado quem vai falar, ou um ministro, ou um embaixador) só começou, de fato, em 1955, na Décima Assembleia. Antes disso, México, Estados Unidos, Canadá, Cuba e Filipinas também já haviam feito a abertura.
Ainda assim, o Brasil foi o país que mais abriu sessões, mesmo no período anterior a 1955. Entre 1946 a 1954, um brasileiro abriu a Assembleia Geral três vezes. Representantes do México, duas, e EUA, Filipinas, Canadá e Cuba, uma vez cada. A primeira Assembleia Geral aberta pelo Brasil foi a quarta, de 1949.
Mesmo depois do estabelecimento da tradição, a partir de 1955, no entanto, o Brasil não falou primeiro em duas oportunidades: nos anos de 1983 e 1984, o então presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan, discursou antes do representante do Brasil, o então ministro das Relações Exteriores do governo João Figueiredo, Ramiro Saraiva Guerreiro.
Figueiredo, aliás, foi o primeiro presidente brasileiro a fazer um discurso de abertura da Assembleia da ONU, em 1982. Antes dele, a tarefa sempre ficara a cargo do chanceler ou de um embaixador. Desde então, todo novo presidente do Brasil faz o discurso inaugural da Assembleia pelo menos uma vez, ao longo de seu mandato. A única exceção foi Itamar Franco.
Criação do Estado de Israel
A página oficial da ONU sobre o protocolo da Assembleia Geral diz apenas que “certas tradições emergiram ao longo do tempo”, incluindo a ordem dos dois primeiros países a falar, Brasil e Estados Unidos. A explicação usual é que os EUA falam em segundo lugar por serem o anfitrião da Assembleia, e o Brasil, em primeiro, em reconhecimento ao papel desempenhado pelo brasileiro Oswaldo Aranha (1894-1960) nos primórdios da Organização das Nações Unidas.
Oswaldo Aranha presidiu a Primeira Assembleia Geral Especial das Nações Unidas, realizada em 1947, e a Segunda Assembleia Geral Ordinária, no mesmo ano. Essas duas reuniões tiveram o papel histórico de determinar – por meio da resolução 181 da Assembleia Geral – a partição da Palestina entre árabes e judeus, abrindo caminho para a criação do Estado de Israel.
A votação final da resolução, em 29 de novembro de 1947, foi dramática: todos os seis países árabes que faziam parte da ONU na época retiraram-se da Assembleia em protesto contra a aprovação, sendo que quatro deles – Arábia Saudita, Iraque, Síria e Iêmen – anunciaram que não se sentiriam obrigados a respeitar a decisão, tomada por 33 votos 13, apenas dois além do mínimo necessário. Durante os trabalhos, Aranha rejeitou propostas, de autoria de países árabes e também da Colômbia, que devolveriam o plano para a Palestina ao estágio de debate em comitê, retirando-o da pauta de votação.
No Brasil, na década de 30, Aranha havia sido um dos principais articuladores da Aliança Liberal, o movimento que levaria à Revolução de 30 e à chegada de Getúlio Vargas ao poder. Foi Ministro da Justiça e, depois, da Fazenda de Vargas. Participou da Assembleia Nacional Constituinte convocada após a revolução de 1932 em São Paulo, e foi nomeado embaixador brasileiro em Washington depois da promulgação da carta. Buscava viabilizar-se candidato à Presidência da República para o pleito previsto para 1938 quando Vargas deu o golpe do Estado Novo, em 1937.
Sua primeira reação foi de ruptura com a ditadura que se instalava, mas em 1938 voltava ao governo, agora como ministro das Relações Exteriores. A nomeação foi saudada em editorial, pelo New York Times, como sinal de que “o regime [de Getúlio Vargas] não seguirá pelo caminho das ditaduras fascistas europeias”.
Articulação com os Aliados
Oswaldo Aranha foi instrumental para o alinhamento do Brasil com as potências aliadas na Segunda Guerra Mundial, enfrentado a oposição de figuras do governo Vargas e, em alguns momentos, até mesmo do próprio presidente-ditador. Em 1940, quando a Marinha britânica deteve um navio brasileiro, o Siqueira Campos, que transportava carga vinda da Alemanha, Aranha teve de atuar para impedir o rompimento das relações diplomáticas do Brasil com o Reino Unido.
Durante a Conferência do Rio de 1942, uma reunião de chanceleres das Américas convocada pelos Estados Unidos após o ataque de Pearl Harbor, a foto de Aranha ilustrou a capa da revista Time, e sua participação no encontro ajudou a cimentar a decisão coletiva das repúblicas das Américas de cortar relações diplomáticas com os países do Eixo, aprovada sob as ressalvas de Chile e Argentina.
Três anos antes de sua morte, em 1957, durante o governo de Juscelino Kubitschek, Aranha, como embaixador, faria o discurso de abertura da Assembleia Geral das Nações Unidas, em nome do Brasil.
O livro “O Brasil nas Nações Unidas: 1946-2006”, publicado pelo Itamaraty, resume assim sua intervenção: “Oswaldo Aranha, um dos líderes brasileiros que mais havia se distinguido na formulação da política de aliança com os EUA, critica a falta de cooperação norte-americana ao desenvolvimento da América Latina. Suas palavras revelam frustração diante do rumo tomado pela relação estratégica global e do papel secundário destinado à América Latina”.
Então, fazer a abertura da Assembleia Geral, falando antes até dos Estados Unidos, é uma honra para o Brasil? Talvez. Mas, em 2012, o colunista do New York Times Michael Pollack ofereceu uma interpretação alternativa para a ordem dos discursos, “bem conhecida”, segundo ele, “dos fãs de shows de rock”: “O astro geralmente tem um show de abertura. A Assembleia Geral é um lugar lotado, com delegados de 193 Estados-membros ainda chegando e procurando seus lugares durante os pronunciamentos iniciais. O discurso do Brasil oferece um modo diplomático de todo mundo se ajeitar para o que costuma ser a atração principal: o presidente dos Estados Unidos”.
Bolsonaro e mais 36 indiciados por suposto golpe de Estado: quais são os próximos passos do caso
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
A gestão pública, um pouco menos engessada
Projeto petista para criminalizar “fake news” é similar à Lei de Imprensa da ditadura