André Bevilaqua não é estranho às armas. Quando criança ele caçava. Já adulto, carregar uma fazia parte do protocolo que seguia em leilões de bens confiscados em um tribunal regional. Mas quando o advogado do Rio de Janeiro decidiu comprar uma pistola de calibre .380 no ano passado, se deparou com um mar de burocracia que só um burocrata brasileiro poderia gostar.
Depois de um ano - colecionando um amontoado de questionários, altas taxas, uma verificação de antecedentes criminais, uma avaliação psicológica, uma prova escrita e um teste de tiro, além de uma visita de três inspetores de armas de fogo - ele finalmente conseguiu a liberação para a compra.
Essa é a norma no Brasil, onde aqueles que respeitam a lei se submetem a uma via-crúcis conduzida pelo Estado em nome da segurança pública. Enquanto isso, na prática, criminosos que transformaram o Brasil em uma zona continental de matança carregam armas livremente.
Bevilaqua não reclama. Ele sabe que uma arma em cada casa não é maneira de estancar o banho de sangue que deu ao Brasil o papel de protagonista na violência armada global e levou o governo federal a colocar as forças armadas nas ruas da cidade brasileira mais conhecida internacionalmente.
Violência por arma de fogo
Se apenas a maior nação da América Latina pudesse aplicar todo seu aparato de leis à tragédia que está acabando com seu futuro, seria um grande avanço. A América Latina é onde estão 43 das 50 cidades mais violentas do mundo e 19 delas estão no Brasil.
O terrorismo global acabou com mais de 3.300 vidas no mundo inteiro no primeiro semestre de 2015; o Brasil superou esse total em apenas três semanas. Nenhum país registrou mais assassinatos naquele ano: 60 mil.
Apenas esses números sugeririam a necessidade de um controle de armas mais rígido. Os estudiosos reconhecem que, graças aos controles descritos no estatuto do desarmamento de 2003, o Brasil evitou 135 mil homicídios até 2007. Por isso fica difícil comprar as atuais propostas defendidas por lobistas de armas e alguns políticos, as quais visam tornar o Brasil mais seguro ao diminuir os controles.
"Mais armas em circulação significa mais crimes", afirmou Daniel Cerqueira, especialista em violência criminal no Instituto Brasileiro de Pesquisa Econômica Aplicada. Em um estudo conduzido nos municípios de São Paulo, Cerqueira descobriu que cada ponto percentual a mais no número de armas em circulação resultou em um aumento de 2% nos homicídios.
No entanto, a correlação entre armas legais e crimes violentos é mais complicada. Sim, a maioria das armas apreendidas em atos criminosos no Brasil foram vendidas legalmente e depois acabaram nas mãos de bandidos. Entretanto, estancar a venda de armas comerciais não tem nenhum efeito em conter o vazamento delas para o submundo criminoso e parece ser uma maneira incompetente de lidar com problemas mais amplos, como o contrabando de armas, os cartéis que atuam nas fronteiras, especialmente, os policiais corruptos que alimentam o mercado negro . "O Brasil é uma peneira", disse Bevilaqua. "Tudo passa".
Não é preciso ir além do Rio, onde, nas palavras do ministro da Justiça, Torquato Jardim, "os comandantes da polícia são parceiros do crime organizado". Em 2015, as autoridades da cidade rastrearam um número surpreendente de armas apreendidas em cenas de crime em várias empresas privadas de segurança, que pertenciam - legalmente, como foi descoberto - a policiais ativos.
Ações de longo prazo
Outras duas questões-chave devem ter mais atenção no debate público, muitas vezes sobrecarregado no discurso sobre armas e violência: continuidade administrativa e saúde fiscal. Ambos variam dramaticamente em todo o Brasil e sua ausência pode condenar regiões inteiras a tumulto, medo e ruína econômica.
Os homicídios diminuíram dramaticamente em São Paulo, onde as finanças públicas estão em ordem, a polícia é paga em dia e as políticas e a estratégia de governo permaneceram consistentes nas últimas duas décadas.
Compare isso com o estado do Rio de Janeiro, onde uma classe governante contaminada pela corrupção por muito tempo quebrou as finanças estaduais e destruiu os serviços públicos. O resultado: após quase uma década de queda de violência, a taxa de homicídio do Rio está novamente aumentando. "O Rio é uma grande janela quebrada", disse o cientista político Fernando Schuler, do Insper, referindo-se à teoria de que os pequenos crimes deixados sem punição levam a uma crise na ordem pública.
Algo semelhante ocorre no Rio Grande do Sul, tradicionalmente próspero, que declarou "calamidade financeira" em 2016 e viu a taxa de homicídios subir 20% naquele ano chegando a 53 mortes por 100.000 habitantes em Porto Alegre, a quinta maior capital brasileira.
"A violência e a qualidade das instituições governamentais são partes inseparáveis do debate", disse o ex-secretário de segurança pública da cidade de Belo Horizonte, Claudio Beato. "A segurança pública depende totalmente da capacidade do estado em impor a lei, e no Brasil o estado falhou".
A violência armada pode muito bem ser uma epidemia nacional, mas assim como ocorre com a renda e a educação, a conta é dividida de forma desigual em um país dividido por classe, raça, idade e gênero. No Brasil, como na maioria dos países, o homicídio é uma doença que atinge homens jovens, e é onde tanto as vítimas como os perpetradores da violência são desproporcionalmente negros e pobres - problema que uma única lei de regulamentação de armas não pode resolver.
Ainda assim, os brasileiros precisam se desarmar.
"Nos dias de hoje, quando todos estamos vivendo no limite, os mal-entendidos e o medo podem facilmente explodir em confrontos, e então mais armas significarão mais tragédias", falou Antonio Carlos Carballo, coronel aposentado da polícia.
Mais do que um fetiche por armas, a desconfiança em relação aos que deveriam defender o estado foi o que levou os brasileiros a rejeitar a proibição das vendas comerciais de revólver em um referendo em 2006. O mesmo sentimento surgiu de novo, à medida que os crimes por armas de fogo se tornam mais frequentes, em um chamado crescente de grupos privados que colocam mais fé em suas armas do que em seus pacificadores.
Esse é um desafio a longo prazo que nenhum decreto de um burocrata pode consertar.
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