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Por que os filmes da Marvel são melhores que “O Irlandês” de Scorsese

Cartaz de 'Vingadores: Ultimato': primazia do filme nas telas irritou cineastas brasileiros
Cartaz de "Vingadores: Ultimato": primazia do filme nas telas irritou cineastas brasileiros (Foto: Divulgação)

Depois de comer compulsivamente o jantar de Ação de Graças e as sobras, você pode ter aproveitado o fim de semana para alguma maratona compulsiva de filmes. Você tem uma infinidade de opções, dependendo do serviço de streaming escolhido. Por exemplo, se assinou o novo Disney+, pode se deliciar com o Universo Cinematográfico da Marvel (MCU, na sigla em inglês).

Mas isso seria o equivalente cinematográfico de comer junk food, e suas calorias vazias demais? De acordo com observações recentes do icônico diretor Martin Scorsese, os filmes da Marvel nem podem ser qualificados como cinema, o que os tornaria mais parecidos com produtos “quase comida” como o “Quase Pizza”, do Saturday Night Live.

Você deveria, então, comer algo mais nutritivo? Se tiver uma senha do Netflix, poderá assistir ao trabalho mais recente de Scorsese. O Irlandês é, de acordo com a Wikipedia, um “filme de crime épico” que, em três horas e meia, poderia ser classificado como um banquete em prato único. Presumivelmente, ele deveria ter os ingredientes cinematográficos essenciais que Scorsese constata ausentes na dieta Marvel.

Qual é a melhor escolha?

Super-heróis ou mafiosos?

Recentemente, assisti a todos os 23 filmes interconectados do MCU, que a Marvel chama de “A Saga do Infinito”. Também assisti a O Irlandês no dia de seu lançamento, logo antes do Dia de Ação de Graças. Ponto a ponto, na minha comparação, o épico da Marvel é muito melhor que o do Scorsese. Eu diria também que não apenas tem um gosto melhor, mas que é melhor para você.

Sou tendencioso, admito. Li quadrinhos de super-heróis enquanto crescia. Se você não o fez, ou se o maravilhoso filme de Francis Ford Coppola, O Poderoso Chefão, foi profundamente formativo para você, mas não o Super Homem de Richard Donner (um dos favoritos de minha infância), então O Irlandês pode se adequar melhor ao seu gosto.

Gostaria apenas de insistir que, se você optar por desfrutar da megafranquia da Marvel, não deveria se sentir envergonhado ou “inculto”. O MCU não é um guilty pleasure, mas uma obra-prima culinária de estilo próprio.

Além disso, O Irlandês não é necessariamente alta culinária. Para mim, foi mais como um pretensioso jantar de microondas, como o Beef Merlot da Healthy Choice, contendo partes de máfia reaquecidas que perdem os sabores e os nutrientes dos clássicos anteriores.

Os maus companheiros

O Irlandês não é de todo ruim. Tem algo a dizer sobre amizade, paternidade, lealdade e moralidade que são de algum valor. Mas, no final das contas e pelos próprios padrões de Scorsese, ele falha. Em sua crítica à Marvel no New York Times, ele escreveu:

Para mim, para os cineastas que eu vim a amar e respeitar, para meus amigos que começaram a fazer filmes na mesma época que eu, o cinema era sobre revelação – estética, emocional e espiritual. Era sobre personagens – a complexidade das pessoas e suas naturezas contraditórias e às vezes paradoxais, a maneira que elas poderiam amarem-se e machucarem-se umas às outras e, de repente, ficarem cara a cara consigo mesmas. 

O cinema, então, é sobre revelação e profundidade de caráter. Não sou especialista em cinema, mas posso concordar com isso. No entanto, por mais que tentasse, encontrei pouco disso em O Irlandês.

Pegue o protagonista Frank Sheeran, interpretado por Robert De Niro. Esta é sua trajetória no filme (spoilers leves abaixo):

  • Quando jovem, ele é um motorista de caminhão que se torna um ladrão mesquinho a serviço de uma família da máfia.
  • Ele desenvolve gratidão e lealdade vitalícias ao chefe da máfia que o conduz e atua como seu benfeitor (Russell Bufalino, interpretado por Joe Pesci).
  • Ficamos sabendo que ele lutou na Segunda Guerra Mundial e daí se tornou um niilista moral dedicado. Como tal, ele passa gradualmente de ladrão a assassino.
  • Sua filha mais velha se torna distante por conta da brutalidade da sua ocupação. Isso o incomoda, mas não o suficiente para influenciar sua conduta.
  • Frank fica brevemente dividido entre lealdades, mas mata um de seus amigos mais queridos sem muita hesitação. 
  • No final de sua longa vida, ele está melancólico e sozinho, tendo alienado sua família, e, no entanto, expressa muito pouco pesar ou remorso por qualquer coisa que tenha feito. 

Nem uma vez o personagem experimentou alguma revelação profunda ou ficou cara a cara consigo mesmo. No máximo, ele murmura uma expressão relutante de arrependimento. Longe de ser “complexo”, “contraditório” ou “paradoxal”, Frank prova ser um sociopata consistente ao longo da vida, que apenas raramente manifesta o menor lampejo de decência humana.

Com um estudo sobre um personagem tão sombrio se arrastando por três horas e meia, não é de admirar que eu me sentisse entediado com frequência. Pior, achei isso pouco esclarecedor. Histórias de heróis trágicos ou anti-heróis, se bem feitas, podem ser implacavelmente sombrias e, ao mesmo tempo, fascinantes e edificantes. Não é assim com O Irlandês. Com uma trajetória tão atrofiada, havia muito pouco para contemplar ou aprender da vida e dos momentos de Frank Sheeran.

Iron Man & Irishman

Compare isso com a trajetória de Tony Stark, o principal protagonista da Saga do Infinito da Marvel, retratado eletricamente por Robert Downey Jr. Mesmo se você vir apenas o primeiro filme da MCU, o Homem de Ferro, de 2008, dirigido por Jon Favreau, o personagem exibe muito mais perplexidade e tem muito mais revelações do que Frank Sheeran de O Irlandês.

Conhecemos Tony como um playboy indiferente e aproveitador cínico da guerra. Até o seu melhor amigo o repreende por ser “constitucionalmente incapaz de ser responsável”.

Ao atravessar uma zona de guerra, ele brinca com soldados estrelados em sua escolta militar. Mas então o comboio é atacado e os jovens soldados com quem fez amizade são todos mortos. Pouco antes de uma granada detonar na sua frente, ele vê a marca de sua empresa – seu próprio nome – estampado nela.

Ele acorda em uma caverna, um prisioneiro de terroristas portando as armas dele mesmo, uma das quais crivou seu peito com estilhaços que, se atingir seu coração, o matarão.

Diante da perspectiva de morte iminente seguida por um legado manchado de sangue, Tony recobra as forças. Ele monta um reator em miniatura que mantém os estilhaços longe do seu coração e um super-traje que ele usa para derrotar seus captores e escapar.

Depois de retornar à civilização, ele renuncia ao complexo industrial militar e, como Homem de Ferro, dedica sua genialidade para salvar o mundo, começando com a limpeza das bagunças que suas próprias armas fizeram.

Em 'Homem de Ferro', Tony enfrenta um profundo acerto de contas moral. Suas escolhas passadas jogaram literalmente uma bomba em sua vida, e ele não poderia mais ignorar em sua mente a responsabilidade, porque essa bomba tinha literalmente seu nome nela. Isso o mergulhou no submundo. Mas ele emergiu de seu inferno pessoal transformado. O cínico irresponsável morreu e renasceu um herói super-responsável.

Ora, isso sim é uma revelação. E esse é um personagem que fica cara a cara consigo mesmo.

Em defesa da fantasia

Sim, o Homem de Ferro é irrealista em certo sentido, especialmente se comparado a dramas criminais como O Irlandês. Ninguém poderia construir um reator em miniatura funcional numa caverna. E as lições da vida não vêm tão bem embaladas e rotuladas claramente como uma bomba com seu nome nela.

Mas o que os esnobes anti-fantasia perdem é que as histórias não precisam ser realistas para serem ótimas: e não apenas divertidas, mas profundamente edificantes.

Como nos antigos mitos de deuses, monstros e heróis lendários, a fantasia pode liberar uma história para ser simbólica, arquetípica e mais real em um sentido mais profundo, na medida em que transmite em modo grandioso verdades universais sobre a condição humana.

Não, você nunca precisará construir seu próprio traje de super-herói para escapar da caverna de um terrorista e corrigir seus erros do passado. Mas você provavelmente terá uma “noite escura da alma” em algum momento da sua vida — talvez várias. E a única maneira de você sair disso é assumir a responsabilidade, acertando as contas com suas próprias contribuições passadas que o levaram até sua situação atual e mudando a direção da sua vida futura adequadamente.

Essa é a verdade moral que é retratada na história de origem do Homem de Ferro. É uma mensagem que o público capta em algum nível, mesmo que não consiga articulá-la. E é uma mensagem que soa verdadeira, porque combina com a natureza humana e, portanto, com a experiência humana. É por isso que tantos acham a jornada heroica de Tony tão emocionante, enquanto outros filmes de super-heróis (os da DC, por exemplo) com pirotecnia comparável são tão sem graça.

Uma verdadeira saga

Surpreendentemente, a trajetória do personagem Tony Stark continuou fascinante e edificante ao longo de vários filmes (com diferentes equipes de produção) por toda a “Saga do Infinito”.

Cada filme adicionou novas camadas à complexidade de Tony. Ele não alcançou a perfeição naquela caverna. Após os eventos em Os Vingadores (2012), seu novo senso de responsabilidade ficou crescido e distorcido, contribuindo para um caso debilitante de transtorno de estresse pós-traumático em Homem de Ferro 3 (2013) e até mesmo o transformando desastrosamente em um louco por controle semi-tirânico em Vingadores: Era de Ultron (2015) e Capitão América: Guerra Civil (2016).

Mas em Vingadores: Ultimato (2019), o clímax da Saga do Infinito, seus traços mais heroicos retornam de modo triunfante. Nesse filme, vários tópicos da trajetória do personagem (relacionados a grandes temas como culpa, redenção, família e sacrifício) que começaram 11 anos antes no Homem de Ferro são lindamente amarrados. Não é à toa que, como postou meu colega Sean Malone no Facebook:

… Toda vez que ia assistir aquele filme nos cinemas… as pessoas choravam. 

Elas também riram, aplaudiram, vaiaram e ofegaram, e fizeram *todas* as coisas que a boa arte deve obrigar o público a fazer. 

E para registro, por mais que eu goste do personagem, Tony Stark nem é meu Vingador favorito. Acho a história de Steve Rogers (o Capitão América) ainda mais impactante, emocional e moralmente falando (mas isso é para outro artigo).

Cinema mítico

Joe e Anthony Russo, os diretores do Ultimato e de outros filmes da MCU, responderam vigorosamente as críticas de Scorsese numa entrevista ao Hollywood Reporter:

“Quando olhamos para as bilheterias de Vingadores: Ultimato, não vemos isso como um sinal de sucesso financeiro, mas como um sinal de sucesso emocional”, disse Joe sobre o filme que faturou US$ 2,27 bilhões no mundo todo. “É um filme que teve um impacto sem precedentes no público em todo o mundo, na forma como eles compartilham essa narrativa e no modo como eles a experimentaram. E nas emoções que sentiram enquanto assistiam”.

Scorsese observou que ele tentou assistir a alguns filmes da Marvel, mas rapidamente os abandonou. Os Russo observaram que é desafiador ter um diálogo sobre cinema se o aclamado diretor sequer tenha visto os filmes sobre os quais está falando.

As mentes criativas e comerciais por trás da Saga do Infinito da Marvel criaram uma mega-história de 23 filmes que durante 11 anos trouxeram alegria, inspiração e catarse a milhões de pessoas. Essa é uma façanha impressionante do cinema.

Portanto, não se envergonhe se você gostar de um filme de super-herói, se ele ganhar um pouco do seu dinheiro e do seu tempo, se ele mexer com suas emoções, se ele inspirar você a se tornar uma pessoa melhor. Histórias de fantasia sobre heróis e aventuras maiores do que a vida alimentam as almas desde o início da civilização.

Amar os mitos modernos não significa que você é uma pessoa inculta. Significa apenas que você é humano.

Dan Sanchez é o diretor de conteúdo da Foundation for Economic Education (FEE) e editor da FEE.org.

© 2019 FFE. Publicado com permissão. Original em inglês.

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