Existe um site muito interessante chamado wtfhappenedin1971.com (“O que diabos aconteceu em 1971?”), cuja página inicial se limita a mostrar, sem qualquer comentário, dezenas de gráficos de estatísticas dos Estados Unidos (de todos os assuntos que se possam imaginar, do consumo de carne até a taxa de encarceramento) com algum tipo de inflexão súbita no início dos anos 70, geralmente para pior. Embora não se diga de imediato, deixando-se a pergunta para a livre consideração do leitor, a tese dos elaboradores é a de que a fonte misteriosa de todos esses males seria a decisão, naquele ano e país, de abandonar o padrão-ouro para a moeda corrente, em favor de uma moeda fiduciária (não lastreada em metais).
Não faço ideia se a tese específica é verdadeira ou falsa. Mas a página sempre me vem à cabeça quando vejo algumas outras estatísticas, que, conforme constato, bem que mereceriam uma páginaanáloga, a ser chamada, desta vez, de WTF Happened in 2013.
O ano não é exato; o psicólogo social Jonathan Haidt antes fala num período de anos entre 2011 e 2015. Assim como os defensores do padrão-ouro, o psicólogo também tem sido capaz de coletar gráficos exibindo estatísticas as mais diversas, mas sempre relacionadas de alguma forma a saúde mental ou emocionalidade negativa, e todas essas estatísticas também mostram um ponto de inflexão muito visível por volta desses outros anos.
Como Haidt também destaca, foi, em paralelo a isso, um período de ebulição política. Exemplares iniciais de grande repercussão foram a Primavera Árabe e o movimento Occupy Wall Street, ambos em 2011.
Em seguida, em junho de 2013, o Brasil foi surpreendido pela maior onda de protestos da sua história até então, com pauta indefinida e inexplicável pelo tradicional fator econômico, visto que as estatísticas ainda eram confortantes à época (a grande recessão só viria nos anos de 2015 e 2016, que voltaram a testemunhar protestos de igual dimensão). A tendência internacional se verifica até mesmo numa inexplicada queda de popularidade da monarquia britânica em meados da década, passando a atingir níveis mais baixos até mesmo do que na famosamente conturbada década de 1990, em que a família real se vira às voltas com a comoção popular em torno do adultério e divórcio do príncipe herdeiro.
No entanto, diferentemente da tese da moeda fiduciária, a explicação dada por Haidt para estes fenômenos já tinha sido, em muitos casos, invocada contemporaneamente aos eventos: trata-se do advento das redes sociais.
A propagação das redes sociais
É certo que as redes sociais não passaram a existir apenas em 2011. O Facebook, por exemplo, foi criado em 2004. Mas é natural que as tecnologias levem alguns anos para se propagarem na população, tanto pelo barateamento quanto por outros fatores. Na minha adolescência nos anos 2000, as redes sociais — como o Orkut — eram vistas como coisa de jovem; pessoas de mais idade preferiam interagir por e-mail, mídia muito limitada em termos de amplitude de interação. Mas, por volta de 2012 em diante, sobretudo com a propagação do Facebook — e, posteriormente, do WhatsApp —, pessoas de faixas etárias mais altas passaram a se envolver em redes sociais tanto quanto os adolescentes. Com isto, também passaram a desfrutar da possibilidade de interagir e formar grupos com pessoas distantes — inclusive para fins de mobilização política.
Um fator que certamente contribuiu para a propagação na população foi o advento do smartphone moderno, ao levar a internet a quem antes não a possuía e ao permitir aos mesmos usuários acessar as redes sociais a qualquer hora do dia. O primeiro iPhone com loja de aplicativos foi lançado em 2008; o Samsung Galaxy S, em 2010.
A revolução do retuíte
Mas a explicação não está apenas no aumento da penetração das redes sociais: elas também passaram por inovações tecnológicas posteriores ao seu surgimento que potencializaram em muito os seus efeitos. Haidt destaca, em particular, o botão de retuíte, surgido no Twitter em 2009; e, no Facebook, as funções de curtir (2009) e compartilhar (2012). Estes recursos aumentaram exponencialmente a quantidade de interações, inclusive as interações entre completos estranhos; em consequência, potencializaram a viralização. E, uma vez que curtidas e compartilhamentos são pretendidos como forma de recompensa, constituíram também incentivo para o exercício das faculdades criativas dos usuários, inclusive para articular novas ideias associadas a emoções negativas, como raiva ou indignação — que parecem ser desproporcionalmente premiadas neste sistema, por produzirem naturalmente mais engajamento nos usuários.
Não se trata de algo novo; já antes das redes sociais, sempre se observou que a imprensa tinha como viés focar nas notícias negativas. Mas as redes sociais intensificaram este processo, e já foram achadas evidências empíricas de que a própria imprensa foi desde então obrigada a reforçar o viés pessimista, para competir no novo mercado da atenção. Tudo isso pode ajudar a explicar o incremento da insatisfação popular.
O escrutínio sobre os poderosos
Por último, mas não menos importante, as redes sociais possibilitaram um grande aumento da circulação de informações. E, como já explicara o pesquisador em comunicação Joshua Meyrowitz em 'No Sense of Place: The Impact of Electronic Media on Social Behavior' [Sem senso de lugar: o impacto da mídia eletrônica no comportamento social] obra profética de 1985, as novas tecnologias que facilitam a circulação de informação (como a televisão, à qual atribui as revoluções culturais da década de 1960) são, no cômputo geral, lesivas aos poderosos.
Meyrowitz faz referência a obras futuristas distópicas, como “1984” (publicada em 1949, quando a televisão começava a se popularizar), que tratam novas tecnologias como ferramentas autoritárias; na obra de George Orwell, todo cidadão tem em casa um televisor especial controlado pelo governo central, com câmera de viligância. Como aponta Meyrowitz, pouca atenção foi dada ao fato de que o funcionamento de um televisor do mundo real é inverso ao do romance: é o governante que passa a ser observado por milhões de câmeras de vigilância — e isto tampouco é confortável para ele.
Com a internet e os smartphones, o escrutínio aumentou mais ainda; cada cidadão tem uma câmera e um teclado à mão para documentar condutas das autoridades ou opinar sobre elas — inclusive negativamente. Nem a rainha Elizabeth II, que exercia função quase exclusivamente simbólica no seu país, escapou da tendência, como se viu.
Não é à toa que os poderosos ao longo da história sempre procuraram se resguardar do escrutínio, até mesmo fisicamente: seja recluindo-se em palácios fora da capital, como em Petrópolis ou Versalhes, seja até mesmo mudando a própria capital: a situação quase categórica ao longo da história foi de o centro de poder mudar para uma localidade mais vazia (como Brasília). Ao inverso dos cidadãos comuns, os dirigentes nacionais quase nunca são atraídos pelos grandes centros, quando distintos da capital.
E raramente gostam das redes sociais, razão pela qual elas são tão frequentemente alvos de governos.
Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.
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