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mito ou verdade?

Por que parte da direita acredita que a soja deixa os homens afeminados

Os maiores estudos já realizados a respeito mostram que o impacto da soja sobre os hormônios e o aparelho reprodutivo dos homens é nulo ou desprezível | Pixabay
Os maiores estudos já realizados a respeito mostram que o impacto da soja sobre os hormônios e o aparelho reprodutivo dos homens é nulo ou desprezível (Foto: Pixabay)

A despeito de alguns relatos de casos isolados que causaram impacto na mídia internacional, não há prova científica de que o consumo de produtos à base de soja torne homens efeminados. Os maiores estudos já realizados a respeito mostram que o impacto da soja sobre os hormônios e o aparelho reprodutivo dos homens é nulo ou desprezível, e que o grão pode até ser útil na prevenção do câncer de próstata. A despeito disso, setores da direita vêm propagando, via redes sociais, a ideia de que a soja reduz a masculinidade e a virilidade – e gera tendências ideológicas de esquerda.

O fenômeno, em seus contornos gerais, não chega a ser uma surpresa. Prescrições de dieta e tabus alimentares são fatores poderosos na formação de identidades coletivas. Em seu livro Diet Cults (“Seitas de Dieta”, em tradução literal), o nutricionista e jornalista esportivo americano Matt Fitzgerald sugere a existência de uma ligação profunda entre dieta, identidade e moralidade.

Setores da esquerda também têm seus códigos, expressados, por exemplo, no fascínio por produtos orgânicos e na rejeição aos transgênicos, duas atitudes muitas vezes defendidas com base em argumentos pseudocientíficos, como a afirmação de que transgênicos causam câncer, que é totalmente infundada

A rejeição de parte da direita à soja deles parece ter ganhado corpo nos últimos meses, vindo do mundo de língua inglesa, onde a expressão “soy boy” (“menino-soja”) despontou como o um pejorativo para se referir a homens heterossexuais jovens que manifestam posições esquerdistas, consideradas, por parte da direita mais radicalizada, “pouco másculas”. De acordo com esse raciocínio, o consumo de soja gera homens efeminados, e homens efeminados tendem para a esquerda no espectro político. 

A confusão ideológica entre esquerdismo e feminilidade é curiosa em si, mas o mais interessante é que os promotores do uso “soy boy” dizem estar com a ciência ao seu lado, e por causa disso parecem já ter convencido uma parte da direita brasileira.

Sua ciência, porém, tem bases extremamente frágeis, e vai contra a melhor evidência disponível. Só não é tão falsa quanto a que liga transgênicos ao câncer porque se baseia num dado real e em alguns poucos estudos de pequeno alcance, cuja significância é apresentada de forma exagerada e desproporcional. 

Feminização?

O dado real é o de que a soja contém isoflavonas, moléculas semelhantes, em estrutura, a hormônios femininos, como o estrogênio. O suposto risco de que as isoflavonas, presentes em derivados de soja, possam “feminizar” homens explodiu na cultura popular depois que a edição americana da revista Men’s Health publicou, em 2009, uma reportagem sobre soja com o sugestivo título “Is This the Most Dangerous Food For Men?” (Esta é a Comida Mais Perigosa para os Homens?), relatando o drama de um militar americano que dizia ter desenvolvido seios e atrofia do pênis depois de consumir grandes quantidades de leite de soja. 

Quanto aos estudos, há alguns relatos de casos isolados, como um jovem diabético de 19 anos que sofreu perda de libido e disfunção erétil “após a ingestão de grandes quantidades de produtos baseados em soja, numa dieta de estilo vegano”, descrito no periódico Nutrition, em 2011.

Mas, embora esse tipo de análise de situações individuais possa sugerir caminhos para a pesquisa ou dar pistas para a interpretação de casos específicos, a melhor evidência científica costuma vir da agregação de um grande número de estudos de boa qualidade, cada um deles envolvendo não apenas um indivíduo, mas dezenas de voluntários. 

Quando chegamos a esse nível, a conclusão é de que o consumo de soja não afeta nem a concentração de testosterona – o hormônio masculino – disponível no corpo dos homens, e nem os feminiza. Há até a sugestão de que o consumo de soja, em certas condições, possa ser benéfico para homens, reduzindo o risco de câncer de próstata. 

Um trabalho, publicado em 2010 no periódico Fertility and Sterility, agregou os resultados de 15 testes envolvendo a comparação entre grupos de homens que receberam isoflavonas e proteína de soja e outros que não tiveram esse tipo de suplementação. Conclusão: “nem alimentos baseados em soja, nem suplementos de isoflavona alteram as medidas de testosterona biodisponível em homens”. 

Outra avaliação, publicada no mesmo periódico, tratou de nove estudos, apontando que “essencialmente, não há evidência” de que a exposição à isoflavona afete os níveis de hormônio feminino em homens. “Evidência clínica também indica que as isoflavonas não afetam os parâmetros do esperma ou do sêmen”.

Referindo-se a estudos em ratos que haviam mostrado uma ligação entre isoflavonas e disfunção erétil, o autor, Mark Messina, comentas que esses resultados “não se aplicam a homens”, tanto por causa de diferenças metabólicas entre roedores e seres humanos quando pela “quantidade excessivamente alta de isoflavonas a que os animais foram expostos”. 

Figuras que vêm promovendo ativamente o mito dos “soy boys”, como o youtuber direitista britânico Paul Joseph Watson, citam ainda um estudo de 2007, publicado no Journal of Clinical Endocrinology & Metabolism que aponta uma queda de 1% ao ano, de 1987 a 2004, no nível de testosterona dos homens nos Estados Unidos, independentemente da idade – ou seja, uma queda que não pode ser explicada pelo envelhecimento da população. Resultado semelhantes foram obtidos em países nórdicos, e a causa não parece ser o aumento de incidência da obesidade. Watson diz que essa queda no nível de hormônio masculino acompanhou uma elevação no consumo de derivados de soja. 

O problema com esse raciocínio é que muitas outras coisas aumentaram entre 1987 e 2004 – a concentração de dióxido e carbono na atmosfera, por exemplo, assim como a população dos grandes centros urbanos, o número de assinantes de TV a cabo e o consumo de carne de frango. Correlação não prova causação – há até um website dedicado a apresentar correlações espúrias, como entre taxa de divórcio no Estado do Maine (EUA) e consumo de margarina

A causa da redução da testosterona ao longo do tempo ainda não foi explicada, mas os resultados dos estudos sobre o impacto das isoflavonas nos hormônios humanos fazem da soja uma candidata bastante improvável.

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