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Centenas de nacionalistas brancos, neonazistas e membros do "alt-right" marcharam pela East Market Street em direção ao Emancipation Park durante o dia 12 de agosto de 2017, em Charlottesville, Virgínia. Após confrontos com manifestantes anti-facistas e policiais, a manifestação foi declarada ilegal e as pessoas foram forçadas a sair de Lee Park, onde está uma estátua do general confederado Robert E. Lee | CHIP SOMODEVILLA/AFP
Centenas de nacionalistas brancos, neonazistas e membros do "alt-right" marcharam pela East Market Street em direção ao Emancipation Park durante o dia 12 de agosto de 2017, em Charlottesville, Virgínia. Após confrontos com manifestantes anti-facistas e policiais, a manifestação foi declarada ilegal e as pessoas foram forçadas a sair de Lee Park, onde está uma estátua do general confederado Robert E. Lee| Foto: CHIP SOMODEVILLA/AFP

O antissemitismo voltou a ser notícia. 

Alguns dos pôsteres nas manifestações de supremacia branca em Charlottesville mostravam um homem atingindo com um martelo uma Estrela de Davi – a maior ameaça, aquilo que precisa ser destruído. Manifestantes cantaram “Judeus não irão nos substituir” e “Sangue e solo!”, uma tradução direta do slogan nazista “blut und boden”, que remete à ideia de que judeus são intrusos poderosos e perigosos. 

Isso culmina o fim de uma temporada que teve a Chicago Dyke March, marcha de mulheres lésbicas de Chicago, expulsando participantes que usavam uma Estrela de Davi na bandeira do orgulho LGBT, com a justificativa rasa de que iria “contra os valores antirracistas da marcha”, e debates sobre a possibilidade de Gal Gadot, uma israelita ashkenazi, ser uma pessoa não branca. Principalmente nos últimos anos, houve um aumento de debates válidos sobre os modos como muitos judeus ashkenazi tem privilégio branco nos Estados Unidos. 

Oprimidos ou privilegiados?

Então, somos oprimidos? Ou não? Os motivos para essa pergunta parecer complicada remontam ao milênio passado. Desde o surgimento do antissemitismo moderno, o ódio contra judeus está profundamente ligado à ideia de que judeus têm uma série de vantagens particulares. 

Na Idade Média, judeus eram banidos de muitas profissões e ofícios, e muitas vezes era considerado ilegal que judeus fossem proprietários de terras. Era mais conveniente para as autoridades locais permitirem que judeus trabalhassem em ofícios que eram repugnantes aos cristãos – principalmente agiotagem, que no mundo cristão era associado a depravação e pecado. 

Na perspectiva judia, a agiotagem era uma linha de trabalho útil por dois motivos. Primeiro, era relativamente portátil, e em períodos de sorte, permitia que os nossos ancestrais tivessem capital líquido – duas coisas práticas em uma época em que a expulsão de judeus de vilarejos e até mesmo de países inteiros não era uma raridade. 

A maioria das políticas europeias no final da idade média e começo da idade moderna estabeleciam impostos incrivelmente maiores para judeus, então emprestar dinheiro era essencial para a sobrevivência das comunidades. 

Uma parcela muito pequena de judeus começou a trabalhar com dinheiro porque era uma opção viável e uma necessidade prática. E então surgiu ressentimento contra eles por isso – e passaram a ser associados a esse trabalho de um jeito que banqueiros cristãos nunca foram associados. Já em 1233, gravuras antissemitas mostravam o judeu avarento, usando muitos dos mesmos temas que podem ser encontrados em uma busca rápida no Google. 

Vida precária

Muitos judeus ao longo da história viveram uma vida precária, não só economicamente. Em muitos momentos da história nós fomos tolerados, e até mesmo aceitos, pelas autoridades e pela população local do país em que vivíamos. Mas nós também fomos submetidos muitas vezes a expulsões, massacres, inquisições e genocídio – frequentemente, aliás, motivado pelo estereótipo do judeu avarento e desonesto que servia como bode expiatório para outras ansiedades e complexidades da sociedade. Muitas vezes, a mudança de viver em paz para o fundo do poço acontecia com muita rapidez. 

Então esse é o paradoxo: antissemitismo e privilégio judeu são, e tem sido há muito tempo, os dois lados de uma mesma moeda. Mesmo hoje, sinto isso profundamente. 

De um lado, judeus enquanto categoria são, até o momento, protegidos da violência do estado que muitos outros grupos experienciam. Agentes de imigração e segurança não estão atrás de nós enquanto grupo; nós não somos impedidos de entrar no serviço militar nem somos discriminados em política de bloqueio de entrada no país. 

Apesar de ter judeus de todos os níveis econômicos nesse país, judeus americanos, coletivamente, têm muito mais capital social e cultural do que muitos outros grupos, e nós não somos tão vulneráveis quanto outras comunidades que estão sob ataque. São muitos os motivos para isso; um dos maiores, no entanto, é que muitas famílias judias americanas estão estabelecidas aqui há mais de um século e, ao longo do tempo, judeus ashkenazi puderam ser assimilados a uma cultura maior e “se tornarem brancos”. 

O antissemitismo de sempre

Mas ao mesmo tempo, o antissemitismo está funcionando do mesmo jeito que vem funcionando há séculos. Os ataques de Trump aos “globalistas de Soros”, a afirmação do assessor da Casa Branca, Stephen Miller, de que um repórter teria “tendência cosmopolita” (uma frase que tem conotações antissemitas antigas, apesar da origem judaica de Miller), a Estrela de Davi sobreposta ao dinheiro em um tweet notório de Trump no ano passado, os apitos na propaganda final da campanha de Trump – e os pôsteres e cantos em Charlottesville –, todos se apoiam em uma narrativa manufaturada há séculos de que judeus são ricos, poderosos e estão no controle. 

Conforme essa retórica fica mais evidente, nós somos alvos de mais ódio: cemitérios judaicos foram vandalizados pelo menos cinco vezes este ano, e o Memorial do Holocausto em Boston foi atingido pela segunda vez nos últimos meses. 

A mudança de uma relativa paz para algo mais pode acontecer tão rapidamente – em um piscar de olhos. Alguns membros da comunidade judaica estão sentindo o nosso trauma intergeracional centenário de modo profundo, percebendo essa época como nada menos que aterrorizante, com memórias de tochas de massacre e bandeiras com suásticas permanecendo com força. 

Mas esse não é o momento para se curvar. Esse é o momento para se levantar. Eu, pelo menos, tenho vantagens que os meus ancestrais na Europa sequer sonhavam, e isso inclui o capital social para combater o preconceito com poder e força total. Nós, enquanto comunidade, temos uma obrigação de nos posicionarmos por aqueles que são mais vulneráveis tanto a ataques institucionais quanto ataques aleatórios, e incorporar o mesmo poder de uma mulher de 89 anos fotografada em Nova York segurando um cartaz que dizia: “Eu já escapei dos nazistas uma vez. Eles não irão me derrotar agora”.

*Danya Ruttenberg é rabi-residente em Avodah e autora de "Nurture the Wow: Finding Spirituality in the Frustration, Boredom, Tears, Poop, Desperation, Wonder e Radical Amazement of Parenting".

Tradução de Andressa Muniz
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