A perversão do programa Lifeline serve como uma aviso de que políticas baseadas apenas nas boas intenções podem ser danosas.| Foto: Bigstock
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Nos últimos 15 meses, não foram poucas as análises em relação à forma como os EUA lidaram com a Covid-19 e suas consequências, muitas das quais não têm relação com a saúde: a ameaça do colapso da economia, o poder do governo e o isolamento com seus efeitos colaterais.

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No epicentro dessa preocupação estão os mais vulneráveis dentre os norte-americanos, as pessoas pobres. Quanto ao isolamento, como podemos mitigar os danos dele para os que já vivem numa situação de vulnerabilidade? Muitas defenderam um acesso cada vez maior à tecnologia por meio do programa de distribuição de celulares subsidiado pelo governo e destinado aos pobres para que eles permaneçam conectados. Mas a solução é simples assim mesmo?

Eu me lembrei de uma experiência recente que tive ao me oferecer para trabalhar num abrigo para moradores de rua. Para ser simpática, comecei a conversar com um dos abrigados que me falou com sinceridade sobre sua vida amorosa. Eu o provoquei um pouco: “Como você sabe que seu relacionamento é saudável?” Imediatamente, e sem falar nada, ele pegou o celular e começou a mexer na tela. Ele ignorou minha presença e deixou a pergunta no ar, sem resposta. Eu o incomodei e ele se desviou da questão — e o celular o ajudou nisso.

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Como esse homem, sem emprego e morando num abrigo, pode ter um smartphone? Ele e outros abrigados têm smartphones graças a um programa do governo norte-americano chamado Lifeline.

A Federal Communications Commission (FCC) implementou o programa Lifeline em 1984, para ajudar lares pobres a terem o que era considerado um serviço essencial: acesso ao telefone. Originalmente, o programa cuidava das contas de telefone de uns poucos cidadãos pobres. Mas, com o tempo, o programa foi inflado com benefícios maiores para mais pessoas. Hoje em dia, muitos pobres têm direito a celulares gratuitos, com planos de serviço baratos ou gratuitos e direito a ligações, mensagens de texto e dados ilimitados. O governo cobra impostos das empresas de telefonia para financiar o programa. As empresas, então, repassam o custo aos consumidores por meio do Universal Service Fund, uma taxa cobrada na conta de todo usuário convencional.

Naquela noite, conversei com outros dois moradores interessados em fazer parte da Forge, o programa de longo prazo para os abrigados homens. Elogiei o interesse deles — para aqueles homens, o que poderia ser melhor do que um programa que estimula a virtude, o trabalho e a autossuficiência?

Mas ambos de mostraram hesitantes quando me aprofundei no assunto. Por que escolher um caminho de mendicância crônica em vez de optar por uma saída da pobreza? Ambos deram a mesma explicação: “Não posso perder meu celular”. Os participantes do programa Forge têm de abandonar o celular por seis meses a fim de viverem num ambiente sem distrações.

Naquela noite, fiquei pensando nas consequências não-intencionais. Na superfície, o programa Lifeline parece bom e até necessário. O que haveria de errado em dar aos pobres um meio de procurar trabalho, marcar consultas e se manter conectado com a família? O problema está no risco de uso abusivo e danos correlatos.

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O vício em celular não se restringe aos pobres. Um estudo de 2015 e publicado no Journal of Behavioral Addictions descobriu uma correlação significativa entre o uso de smartphones e a depressão entre estudantes adultos.

Mas os efeitos negativos parecem assolar sobretudo os que estão na base da pirâmide social. Outros estudos associam o uso demasiado de celulares à ansiedade, depressão e isolamento social, doenças que já afetam desproporcionalmente os pobres e cujos casos aumentaram durante a pandemia de Covid-19.

Robert Putnam, em seu revolucionário livro Bowling Alone [Boliche solitário], indica que o isolamento social é danoso principalmente para os economicamente prejudicados. Por outro lado, conexões sociais sólidas, principalmente fora do círculo social empobrecido da pessoa, são fundamentais para tirá-la da pobreza.

Na verdade, os pobres são os que mais precisam tirar proveito dos benefícios das conexões sociais reais, como oportunidades de trabalho, senso de comunidade e de pertencimento e uma visão mais otimista da vida — e há indícios de que os smartphones prejudicam nossa capacidade de fazer essas conexões.

Faz sentido dar aos pobres um aparelho tão associado ao isolamento social e à depressão como forma de combater justamente o isolamento social e a depressão, sobretudo numa época tão complicada, quando esses problemas já estão exacerbados?

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O programa Lifeline é um lembrete de algo que os militantes ocasionais sabem bem. Boas intenções nem sempre geram bons resultados. Saber o que será de fato útil é uma função que apenas a caridade local e compassiva é capaz de exercer. Ao pensar sobre o papel do governo na solução dos problemas causados pela pandemia, lembre-se de que soluções amplas podem gerar mais problemas do que os que resolve. Aquilo que se pretende a resolver a solidão e a depressão pode, na verdade, estar fomentando isso.

Savannah Aleckson é jornalista.

Infográficos Gazeta do Povo[Clique para ampliar]

©2021 FEE. Publicado com permissão. Original em inglês