Uma família foi condenada a pagar mais de R$ 6 milhões em impostos atrasados na Austrália. Desde 2011 sem acertar as contas com o fisco, eles alegavam que o pagamento de impostos contrariava "a vontade de Deus".
A fazenda de Rembertus Cornelis Beerepoot e Fanny Alida Beerepoot, da Tasmânia, foi confiscada e vendida pelo município onde vivem em 2017. Rembertus argumentou no tribunal que a lei de Deus é a "lei suprema desta terra" e que fazer as pessoas pagarem impostos estava enfraquecendo a dependência que elas têm de Deus - o que estaria gerando "maldições como secas e infertilidade".
O argumento não foi aceito pelo juiz Stephen Holtno, que julgou o caso.
Quais os limites da liberdade religiosa?
Na sentença do magistrado que julgou o caso, o juiz Stephen Holt afirmou que não há qualquer referência específica na Bíblia para fundamentar o argumento de que o pagamento de impostos estaria em desacordo com a vontade divina. "A Bíblia diz que as questões civis e a lei de Deus operam em duas esferas diferentes", escreveu.
Segundo os especialistas em direito religioso Thiago Rafael Vieira e Jean Marques Regina, autores de Direito Religioso: questões práticas e teóricas (Ed. Concórdia), o magistrado está correto. “O governo civil também se sujeita à soberania do próprio Deus. Assim sendo, há um imperativo moral para que o Estado use da espada para promover o bem e refrear o mal, e esta atividade deve ser financiada por todos”, afirmam.
Como em um Estado Democrático de Direito todos são iguais perante a lei, há limites para a liberdade de crença e seu exercício. Para os autores, “uma doutrina religiosa que se coloca contrária ao pagamento de impostos por parte de seus fiéis é contrária à organização do bem comum, que é o Estado”.
Segundo o advogado e doutorando em direito tributário pela PUC Stéfano Ferreira, se algum caso semelhante ao dos australianos ocorresse no Brasil, também fracassaria na tentativa de escapar da Receita. “Não basta o cidadão simplesmente não querer pagar um tributo. Se optar por isso, o Estado pode tomar as medidas legalmente estipuladas para expropriar o patrimônio do contribuinte”, afirma. “Se o pagamento de tributos é justo ou não, pecado ou não, são debates que entrariam no campo da ética e da política. Para o direito, basta ter cumprido os requisitos legais para criação do tributo que ele será cobrado”, complementa.
Ele afirma que o argumento dos australianos só seria aceito se fosse aprovada uma lei que isentasse do imposto de renda, por exemplo, cidadãos que professem determinada fé.
Embora a liberdade religiosa esteja prevista no art. 5º, VI da Constituição, dentro de um Estado Democrático de Direito não há direitos absolutos. Dessa forma, quando há conflitos entre direitos, um deles prepondera sobre o outro. Nesse sentido, como a administração pública precisa de recursos para prestar as atividades definidas pela própria constituição, isso deve ser custeado por impostos. Assim, o direito à propriedade privada, também previsto constitucionalmente, bem como a liberdade religiosa, é relativizado a favor da cobrança de tributos. Sendo o Estado uma entidade soberana, suas ações se sobrepõem às vontades individuais.
Imunidade tributária para igrejas
Apesar disso, as entidades religiosas têm imunidade tributária no Brasil, o que significa que a União, estados e municípios estão impedidos de criarem tributos sobre os templos — como na maior parte do mundo. A finalidade é evitar interferência ou qualquer tipo de pressão estatal nos assuntos religiosos, assim como na imprensa e nos partidos políticos. Isto é, a justificativa para a imunidade é política, não econômica.
Segundo Stéfano, uma interpretação possível desta lei é a de que a imunidade dos templos teria relação também com a liberdade religiosa, de crença e culto. “Isso evitaria que o Estado adotesse medidas para impossibilitar o funcionamento dos templos, mas vejo isso como um argumento frágil. Só seria possível inviabilizar uma atividade religiosa se os tributos cobrados fossem o bastante para se enquadrarem na categoria de confisco”, explica.
Mas essa linha de argumentação não é acolhida pelos magistrados brasileiros. Segundo a obra do tributarista Hugo de Brito Machado, “os indivíduos, por seus representantes, consentem na instituição do tributo, como de resto na elaboração de todas as regras jurídicas que regem a Nação. [...] É algo pertinente à legitimidade do próprio poder estatal.”
Stéfano afirma que, juridicamente, o dever de pagar impostos decorre da legislação aprovada democraticamente pelo Parlamento e que nenhuma igreja é um poder da República, isto é, ela não pode criar uma norma jurídica. “O estado é laico, religião não é lei. Normas morais e religiosas não interferem no ordenamento jurídico a não ser que ele assim aceite por meio do procedimento correto”, diz.
O jurista afirma que em alguns países o Estado cobra impostos de igrejas, inclusive as “ajudando”. “Na Suécia, o dízimo é cobrado juntamente com o imposto de renda”, conta.
Embora a imunidade se refira a templos religiosos e não a pessoas físicas, em 2009 jornalistas da Folha de São Paulo mostraram com é fácil driblar esse sistema. Eles criaram uma igreja com pouco mais do que o salário mínimo na época e depois de apenas 5 dias úteis de espera. Como não há requisitos teológicos ou doutrinários, nem um número mínimo de fiéis para se criar um culto religioso, bastou vontade para que eles abrissem uma conta bancária vinculada à igreja, com aplicações financeiras isentas de imposto de renda e imposto sobre operações financeiras (IOF).
Se a empreitada fosse adiante, eles poderiam deixar de pagar IPVA, IPTU, ISS, ITR, dentre outros impostos, desde que os bens fossem colocados em nome da igreja. Os sacerdotes escolhidos para o templo teriam ainda vantagens como a isenção do serviço militar obrigatório e direito a prisão especial.
O erro dos australianos foi não ter vindo ao Brasil e criado um templo por aqui.
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