Diante do escândalo envolvendo Weinstein e a publicidade dada a casos de abuso sexual envolvendo celebridades, as questões sobre as “estruturas sexuais” da sociedade tem chamado cada vez mais a atenção da opinião pública. Artigos publicados no Public Discourse, Fight the New Drug e Harvard Journal of Law and Public Policy chamaram a atenção para pesquisas que estabelecem uma conexão entre a pornografia e o tráfico sexual. Os dados mostram que muitas mulheres e praticamente todas as crianças que aparecem em materiais pornográficos são vítimas de tráfico sexual. Consequentemente, a demanda por pornografia significa demanda por meninas e meninos vítimas do tráfico humano. O submundo do crime satisfaz prontamente essa demanda.
Apesar de essa relação causal entre o consumo ocidental de pornografia e o tráfico humano ser óbvia e relativamente consensual, quero propor que a pornografia talvez exerça influências mais sutis e indiretas sobre a indústria do tráfico sexual. Neste ensaio, me aterei à influência da pornografia sobre a demanda e a oferta do “turismo sexual”.
Turismo sexual
O turismo sexual é definido como a prática (geralmente entre homens ocidentais) de se viajar para países onde há menos restrições e menos castigos para a compra do sexo. Em geral, eles compram sexo com crianças menores de idade, o que é automaticamente considerado tráfico sexual sob a lei norte-americana. Essas crianças geralmente vêm de lares pobres e os cafetões exploram a vulnerabilidade delas com promessas de dinheiro e comida antes de vendê-las a estrangeiros. As vítimas infantis do turismo sexual compõem parte importante dos quase dois milhões de crianças vítimas pelo tráfico sexual internacional todos os anos.
O que é preciso para alguém alcançar tal nível de degradação moral a ponto de planejar uma viagem pelo mundo a fim de estuprar crianças vítimas de tráfico sexual? Esse crime hediondo, que deveria despertar a revolta de qualquer pessoa racional, é o objetivo das “férias” do turista sexual. Como é possível se tornar impassível diante deste mal? Podemos fazer a mesma pergunta sobre os gigolôs cujo negócio é vender meninos e meninas.
A pornografia exerce um papel nessa inércia? Em geral se diz que a pornografia e a cultura sexualizada ajudam a transformar aos poucos nossas atitudes quanto à sexualidade a fim de que elas sejam ainda mais permissivas no que diz respeito à degradação e aos atos de violência. As pessoas obviamente são complexas – inclusive os traficantes – e, assim, compreender exatamente o que leva uma pessoa a agir de certa forma é impossível. Mas acho que temos base para acreditarmos que a pornografia é um fato agravante que permite que cafetões e clientes atuem dessa forma.
À medida que o turismo sexual prospera em nossa época, os cafetões usam plataformas como Backpage, Craigslist e até o YouTube para expor “suas meninas”, facilitando a vida dos turistas sexuais que querem encontrá-las. Esses anúncios nos ajudam a entender um pouco a mente dos gigolôs e clientes que se envolvem com o turismo sexual. Trabalhando nas Filipinas no verão de 2017, fui levado a investigar um traficante em potencial que estaria usando o YouTube para publicar vídeos de jovens meninas filipinas na companhia de homens ocidentais. Ele defendeu seu trabalho com o seguinte “argumento”:
É bom que essas crianças saiam com estrangeiros. Como as meninas vão fazer sexo com seus namorados de qualquer maneira, ao pagá-las os visitantes na verdade ajudam no problema da pobreza infantil.
Com base no fato de que o canal dele tinha quase sessenta mil inscritos, essa justificativa era aparentemente suficiente. Ainda assim, parece óbvio a qualquer pessoa capaz de um raciocínio moral básico que esse argumento é incrivelmente falho. Como, então, os traficantes e seus clientes podem acreditar numa lógica tão distorcida? Acho que a resposta está, em parte, na pornografia.
Os filósofos morais nos dizem há tempos que nós nos tornamos aquilo que fazemos. Se nos permitimos agir de uma forma corrupta, nós nos tornaremos corruptos. Ao analisarmos as justificativas inacreditáveis dos traficantes, percebemos a veracidade dessa máxima moral.
Transformando o sexo em mercadoria e degradando as mulheres
O tráfico afasta o sexo da verdadeira natureza da identidade pessoal. Ao tratar o sexo como mercadoria que pode ser comprada e vendida, cafetões e clientes se distanciam e distanciam suas ações da pessoa cujo corpo eles estão comprando ou vendendo. Porque, se o sexo é mesmo um bem distinto que alguém possui, então as meninas e meninos vendidos não estão sendo prejudicados, já que eles geralmente recebem algum tipo de benefício – comida, dinheiro, proteção física – em troca. A troca é justa: já que todos são “beneficiados”, não há problema, ainda mais porque as crianças geralmente agem com “consentimento”.
Como alguém pode chegar a ter uma visão assim tão friamente utilitarista do sexo? A influência da pornografia e aceitação respondem ao menos parcialmente à pergunta. Como pesquisas cada vez mais demonstram, a pornografia funciona como uma “educadora sexual” que ensina os consumidores o que eles devem considerar realista e normal em se tratando de sexo. Portanto, ela tem o poder de ensinar os erros latentes no argumento do traficante sexual. A prostituição e a pornografia ensinam que o sexo é apenas uma transação financeira, focada em partes do corpo e facilitada pelo consentimento.
Se entendermos a sexualidade como um aspecto da identidade pessoal e a relação sexual como a expressão mais íntima dessa identidade, isso é um problema grave. Clientes e gigolôs tratam as mulheres que compram e vendem como propriedade do desejo sexual masculino. O comprador tem o “direito” a fazer as coisas pelas quais paga. Esse ato de instrumentalização faz com que comprador e cafetão estabeleçam uma relação de propriedade da vítima. Da mesma forma, a pornografia permite que os espectadores tenham acesso ao corpo feminino o tempo todo, ensinando que esse acesso é direito deles. Esse efeito se soma às representações pornográficas da degradação e submissão das mulheres à força e violência masculinas que – como a pornografia é uma professora eficiente das normas – moldam o comportamento dos espectadores em relação a essa relação sexual inerentemente desigual. Eles começam a ver isso como algo normal.
Conceito inadequado do consentimento
E quanto ao fato de as vítimas supostamente terem consentido nessa relação desigual? Esse consentimento, na forma como é obtido (sendo que legalmente nunca pode ser obtido de menores), é visto de uma forma bastante juvenil. Reduzido a uma ideia vaga de não-resistência verbalmente manifestada, o consentimento se torna uma ação quase desprovida de sentido que permite que gigolôs e clientes não sintam remorso pelo abuso. Na verdade, a disposição das vítimas de se envolverem com a prostituição geralmente sofre tanta influência de circunstâncias financeiras, coerção psicológica e traumas que seu “consentimento” não consegue alcançar nenhum padrão mínimo de moralidade.
O que leva alguém a defender essa ideia insuportavelmente inadequada de consentimento? Mais uma vez, a pornografia exerce um papel. A ideia do consentimento manifestada pela indústria chega ao ponto do paradoxo: desde que a vítima diga “sim”, vale tudo, incluindo cenas de violência contra mulheres, algo que aparece em surpreendentes 88% da pornografia. Mesmo que o consentimento seja dado na produção da cena – e não é, como mostram as provas da ONG Fight the New Drug — o efeito disso tem sido uma tolerância cada vez maior com formas deturpadas de comportamento sexual, como o estupro. Ao sensacionalizar o sexo não-consensual, violento e degradante, dizendo que tudo é fundamentalmente consensual, os pornógrafos transmitem uma mensagem profundamente confusa. É uma mensagem que a pornografia expressa com tanto poder que tende a reforçar mitos em torno do estupro para seus espectadores. A ideia resultante do consentimento não tem praticamente nenhum conteúdo inteligível.
Há uma conexão causal entre pornografia e tráfico sexual?
Três coisas estão claras. Primeiro, traficantes e turistas sexuais defendem comportamentos e pressuposições errados quanto ao sexo, consentimento e dignidade, sobretudo a respeito do tráfico humano. Depois, essas atitudes e pressuposições baseiam a justificativa deles para cometerem crimes horríveis contra pessoas vulneráveis. Em terceiro lugar, sabe-se que a pornografia gera em seus consumidores exatamente esses comportamentos e pressuposições.
Concluir, a partir disso, que a pornografia estimula o tráfico por meio do turismo sexual e da indústria da prostituição parece algo lógico e justificado. Mas por enquanto é melhor ter isso com uma inferência superficial. Precisamos – algo de que não dispomos atualmente – é de provas empíricas mais sólidas de que a pornografia estimula o tráfico humano ao disseminar seus valores. Já temos provas que relacionam a pornografia a comportamentos sexuais degenerados; agora precisamos de pesquisas para determinarmos se são esses comportamentos que levam (e não se trata apenas de uma correlação) as pessoas a participarem do turismo sexual como comprador ou vendedor.
Há uma última coisa a ser levada em conta. Esse texto começou dando o crédito pelo trabalho de investigação a instituições como a Fight the New Drug, que expôs a relação direta entre a pornografia e o tráfico sexual. O fato de tantos atores pornográficos tem sido vítimas do tráfico é parte de uma história muito maior sobre a falta de consentimento que parece onipresente em toda a indústria. Quando se pensa na frequência da coerção e desonestidade que enganam e levam as mulheres a entrar para a pornografia, dá para ver que boa parte das obras pornográficas retratam atos que não são completamente consensuais.
De certo modo, isso obviamente quer dizer que não se deve assistir à pornografia porque isso alimentará a demanda por uma indústria que explora sistematicamente mulheres, meninas e meninos. Mas pode-se tirar uma conclusão mais sombria disso, porque esses atos em geral são de fato estupro ou são retratados como estupro. Os consumidores regulares de pornografia, portanto, assistem rotineiramente a um ato de exploração sexual comercial, participando indiretamente no estupro e abuso de uma vítima inocente em nome de seu prazer sexual. Mesmo que achemos que isso não é capaz de influenciar alguém a agir e comprar sexo, isso simplesmente deve ser o fim da questão moral.
Agradeço a Nathan Elvidge, da Oxford University, por sua ajuda neste artigo.
Rose Brugger é filósofo e cientista político da Baylor University.
© 2019 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês