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Pós-liberalismo: como a direita pode usar o Estado a favor do bem comum

(Foto: Bigstock)

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A direita pós-liberal quer substituir os princípios e regras do jogo do liberalismo por uma visão da ordem social e política ordenada ao bem comum. Em que propostas concretas isso se traduz? Esse é segundo artigo de uma série sobre a nova relação entre conservadores e Estado. Confira o primeiro.

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O termo “intervencionismo” continua forte demais para a direita americana, tão relutante com poderes públicos – do governo federal para baixo – que suplantem a iniciativa cidadã. No entanto, a verdade é que os apelos para colocar o poder do Estado a serviço dos fins conservadores se repetem entre os pensadores mais representativos do pós-liberalismo ou “conservadorismo do bem comum”: Patrick J. Deneen, Gladden Pappin, Adrian Vermeule , Sohrab Ahmari e Rod Dreher.

Também é novidade que políticos republicanos proeminentes, ligados ao conservadorismo nacional, queiram se distanciar do laissez faire que marcou seu partido durante décadas. Vamos falar sobre eles no terceiro artigo da série.

Bens e liberdades

Os pós-liberais vêm questionar uma série de ideias que as democracias liberais tinham como certas: a neutralidade ética do Estado, a visão do direito como mero instrumento pacificador, a separação entre política e religião, etc.

Uma das teses centrais do pós-liberalismo é que a melhor sociedade possível não é aquela em que um Estado imparcial se limita a proteger os direitos e liberdades individuais, mas aquela em que a ordem política facilita a boa vida. Como explica Patrick J. Deneen, professor de filosofia política da Universidade de Notre Dame, não basta que o Estado garanta a máxima liberdade, mas deve criar as condições que possibilitem o gozo efetivo dos bens que levam a uma vida plena: um casamento estável, um ambiente saudável para as crianças, uma comunidade religiosa, uma herança cultural, entre outras.

Como colocar isso em prática? Deneen deixa algumas pistas em outro artigo, ao elogiar Trump por ter chamado “o uso do poder público para intervir tanto no mercado quanto na esfera social”. E dá como exemplos, na esfera econômica e social, a imposição de tarifas sobre produtos estrangeiros, restrições à imigração e tratamento favorável à produção manufatureira nacional; na cultura, os impostos sobre doações universitárias, a proibição da teoria racial crítica em órgãos do governo federal e a nomeação de juízes conservadores.

Outro autor simpatizante do pós-liberalismo, o colunista Nathan Blake, pesquisador do Ethics and Public Policy Center, fornece mais exemplos (aqui e aqui) do que significa usar o poder político para ordenar a sociedade para o bem comum. Algumas propostas são puro Estado de bem-estar europeu, como licença remunerada para assistência à família. Mas a maioria segue uma linha mais intervencionista:

— restabelecer as leis que restringem ou proíbem a atividade comercial um dia por semana (geralmente domingo) para garantir a todos um dia de descanso;

— forçar os sites pornográficos a implementar sistemas eficazes para verificar a idade dos usuários;

— exigir que os varejistas on-line indiquem o país onde cada um dos produtos que vendem foi fabricado;

— penalizar as empresas que importam produtos de países que não respeitam os direitos humanos (e cita expressamente a China).

A família: “o assunto público mais pessoal”

A política familiar é uma área onde os conservadores pós-liberais decidiram enterrar sua devoção ao laissez faire. “Embora os conservadores americanos costumassem pensar que o Estado era o principal fator corrosivo dos valores familiares”, escreve Gladden Pappin, editor-chefe do American Affairs e professor associado de ciência política da Universidade de Dallas, “não há razão para supor que que a força estatal é inerentemente mais perigosa do que as forças de mercado.

Aqui o modelo é a política familiar de Viktor Orbán, cujo governo se compromete a gastar 5% do PIB com as famílias. Segundo Pappin, o que mais caracteriza a ação do Poder Executivo húngaro nessa área é a disposição de vê-la não como uma política setorial à qual são alocados recursos de tempos em tempos, mas como a "peça essencial das atividades econômicas em todos os setores". Trata-se de conceber o apoio à família como “o assunto público mais pessoal”, como dizia uma lei húngara de 2011.

Ao longo da última década, essa visão se refletiu em auxílios de vários tipos. Aqui estão alguns que Pappin menciona:

— subsídios para o cuidado com os filhos;

— isenção de impostos pessoais com base no número de filhos e durante toda a vida para mães de quatro ou mais filhos;

— subsídio para avós que cuidem de netos menores de dois anos;

— facilidades para o trabalho em tempo parcial destinado aos pais com filhos pequenos;

— um subsídio para a aquisição de habitação cujo montante aumenta com o número de filhos, além da oferta de financiamento habitacional;

— formação familiar e moral nas escolas públicas como alternativa às aulas de religião;

— medidas para reduzir o custo da vida familiar, como livros didáticos gratuitos ou um programa de férias subsidiado para estudantes desfavorecidos;

— o perdão da dívida universitária, parcial ou total em função do número de filhos;

— selos ou certificados de turismo familiar para estabelecimentos que favoreçam famílias como clientes;

A lei, mestra da virtude

Outra área que os conservadores pós-liberais querem repensar é a do direito. Adrian Vermeule, professor de direito constitucional em Harvard, está promovendo o "constitucionalismo do bem comum" como uma alternativa às teorias jurídicas dominantes à direita e à esquerda. Se a primeira afirma que a Constituição deve ser interpretada de acordo com o sentido público que as palavras tinham no momento em que a Constituição e suas emendas foram promulgadas (originalismo), a segunda defende a adaptação do texto constitucional ao espírito da época, o que muitas vezes se traduz em interpretação mais favorável da autonomia individual.

Diante dessas interpretações, Vermeule sustenta que a lei não existe para garantir a máxima autonomia do cidadão diante do poder do Estado, nem se limita a conciliar interesses conflitantes entre pessoas com diferentes visões de mundo. Sua razão de ser, disse ele em um artigo que resume bem sua posição, é "garantir que os governantes tenham o poder necessário para governar bem"; isto é, conduzir as pessoas, as sociedades que formam e a comunidade como um todo para aquilo é o seu próprio bem.

Para Vermeule, isso inclui o poder do Estado de legislar sobre questões morais. Não de forma tímida, como se pedisse perdão, mas com a convicção de que “toda legislação se baseia necessariamente em alguma concepção substantiva de moral, e que a promoção da moralidade é uma função essencial e legítima da autoridade”. Trata-se de recuperar resolutamente a ideia do valor pedagógico da lei: “O constitucionalismo do bem comum não se horroriza com a dominação ou hierarquia política, porque considera que a lei é paterna, sábia professora e motivadora de bons hábitos".

Adeus ao estado imparcial

A abordagem de Vermeule explode a concepção de um Estado neutro diante de diferentes concepções de mundo, como ele mesmo reconhece ao dizer que sua teoria é “iliberal”, no sentido de que não segue as regras do liberalismo.

O constitucionalismo do bem comum quer que o Estado tome partido por uma visão substantiva do bem. E entende que é perfeitamente legítimo que as autoridades ordenem e imponham certos comportamentos para garantir a saúde, a ordem ou a moralidade pública, ou “para proteger os vulneráveis ​​dos estragos das pandemias, desastres naturais e mudanças climáticas”.

Em um artigo recente para o The New York Times, ele entra em mais detalhes. Razões de saúde pública podem levar o Estado a exigir que grandes empresas vacinem seus funcionários (ou um sistema alternativo de máscaras e testes). E é claro que sua doutrina significaria dizer adeus à interpretação libertária da lei em questões como aborto, liberdade de expressão, liberdades sexuais ou direitos de propriedade.

Na opinião de Vermeule, sua visão do direito coincide com aquela que dominou o Ocidente até o século XX, quando a tradição jurídica moderna passou a conceber a sociedade como um conglomerado de indivíduos autônomos. Contra isso, a tradição clássica entendia que “as leis devem ser interpretadas à luz do objetivo legítimo do Estado, que é o desenvolvimento da comunidade enquanto comunidade”.

A experiência das últimas décadas, acrescenta, nos mostra que indivíduos e famílias não podem prosperar em uma comunidade “dilacerada por conflitos, anarquia, pobreza, poluição, doença e desespero. (…) Nenhuma família ou associação cívica é uma ilha; a saúde da sociedade civil e da cultura dependem da saúde da ordem constitucional”.

Por mais que a sociedade americana esteja furiosamente polarizada, o jurista de Harvard acredita que não seria difícil concordar com uma série de princípios substantivos ou concordar que "famílias estáveis, segurança material, trabalho decente e senso de harmonia social são elementos objetivamente bons para todos ”.

Contudo, é isso que permanece obscuro na visão de Vermeule. Que ideia de bem comum deve orientar os juízes na aplicação concreta da lei? E se um juiz entender que a interpretação da lei que mais beneficia a comunidade passa pela promoção agressiva do progressismo cultural, como propõe o constitucionalista de esquerda Mark Tushnet? Faz sentido levar ao tribunal e, a partir daí, a todo o Estado administrativo a lógica que Tushnet resume: “As guerras culturais acabaram; eles perderam, nós ganhamos”? É o suficiente responder com um argumento do tipo "é isso que eles estão fazendo, então façamos igual"? Além do mínimo ético exigido de todos, cabe aos tribunais dirimir os embates entre as diferentes visões morais do mundo?

Em breve, Vermeule publicará um livro intitulado Constitucionalismo do Bem Comum. Esperemos que esclareça essas questões.

*Juan Meseguer é ensaísta, poeta, doutor em sociologia e redator chefe do site espanhol Aceprensa.

©2022 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol.

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