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Pós-liberalismo: em busca de uma economia e uma cultura que funcionem para todos

Cabe lembrar que os conservadoers não têm o monopólio da representação do bem comum nem dos cidadãos comuns. (Foto: Bigstock)

Nos Estados Unidos, a direita pós-liberal tem um aliado no conservadorismo nacional. Ambas as direitas defendem um programa econômico com mais ingredientes do Estado de bem-estar social europeu. E querem frear os efeitos desintegradores do progressismo cultural nas famílias.

O conservadorismo nacional é um movimento impulsionado pela Fundação Edmund Burke, com sede em Washington D.C. A maioria de seus simpatizantes está em sintonia com as com as políticas de Donald Trump. Outros referenciais são os políticos europeus Viktor Orbán, Marion Maréchal, Giorgia Meloni e os norte-americanos Marco Rubio, Josh Hawley, J.D. Vanc Todos participaram como palestrantes nas convenções internacionais que essa plataforma vem organizando desde 2019.

A direita pós-liberal tem suas próprias prioridades, ainda que compartilhe inquietudes e propostas com a outra. De fato, alguns pensadores pós-liberais palestraram nesses encontros. Uma das convicções mais comuns deles é que não querem um Partido Republicano que priorize a gestão da economia em detrimento das disputas sobre valores e estilos de vida: ambas as coisas devem andar de mãos dadas.

J. D. Vance, estrela emergente no republicanismo, resume assim esse pensamento: “Os norte-americanos de classe média não se preocupam só com seus empregos. Preocupam-se também com o que se ensina aos seus filhos. […] A ideia de que a guerra cultural é um afastamento das preocupações do norte-americano médio é absurda.”

As ideias dessas direitas podem ter um efeito mais profundo do que outras tentativas fracassadas de suavizar o liberalismo econômico do Partido Republicano, como o “conservadorismo compassivo” de George W. Bush ou o dos economistas reformistas. Mas os pós-liberais e os conservadores nacionais competem com outras direitas que defendem, sim, com energia, o neoliberalismo: o Tea Party, os partidários do velho consenso fusionista, os libertários, etc.

Repensar o sonho americano

Vance, candidato ao Senado por Ohio nas eleições legislativas de 2022, fez-se famoso com seu livro de memórias "Hillbilly" [Caipira], uma elegia rural que virou filme da Netflix. Publicado em 2016, o livro serviu para compreender a disparada de Trump entre os norte-americanos sem ensino superior (a chamada “classe trabalhadora”).

Segundo explicou o próprio Vance, de 37 anos, esse relato é a crônica do declínio do sonho americano tal como o viveram sua família e vizinhos em um povoado de Ohio, uma comunidade do Cinturão da Ferrugem golpeada pela crise familiar, pela deterioração dos vínculos comunitários, pelo desemprego, pobreza e abuso de opioides.

Quando jovem, o pai dele saiu de casa e sua mãe caiu nas drogas. Mas Vance seguiu adiante, graças ao apoio e à disciplina de sua enérgica avó. Ele entrou para o Corpo de Fuzileiros, graduou-se em ciências políticas e filosofia pela Universidade de Ohio e em direito por Yale. Depois, trabalhou por uns anos como investidor e empresário no setor tecnológico. Vance está casado, é pai de dois filhos e se converteu ao catolicismo em 2019.

Agora, com o apoio de um dos doadores de Trump, Peter Thiel, ele pretende ganhar o assento republicano de Ohio no Senado. Para Vance, Cabe lembrar que os conservadoers não têm o monopólio da representação do bem comum nem dos cidadãos comuns.. A experiência dele e de seus amigos é que a paternidade conecta as pessoas “com suas comunidades, suas famílias e sua fé”. É uma conclusão similar à que chegava um documentário sobre a diferença no nível de felicidade entre as pessoas mais ricas e educadas e os demais.

As condições sociais importam

Aqui é onde sua visão da política se conecta mais com o “conservadorismo do bem comum” dos pós-liberais do que com o republicanismo tradicional. Vance aprecia muito a responsabilidade individual, mas não a idealiza. Dá o exemplo real de um menino viciado em opioides desde os oito anos. Os conservadores clássicos diriam a ele que seus pais devem tomar decisões melhores e que o mocinho, quando chegar à idade adulta, deverá fazer o mesmo. Mas Vance sabe que não é tão fácil escapar da tragédia quando se foi criado num contexto econômica e culturalmente adverso.

Sua tese é que a deterioração das comunidades é uma consequência de decisões políticas, que devem ser revertidas com o mesmo poder público que provocou o fiasco. “Vivemos num entorno e numa cultura que foram moldados por nossas leis e políticas públicas, e não podemos seguir ignorando esse fato.”

Vance disse isto num discurso intitulado “Para além do libertarismo”, em uma convenção do conservadorismo nacional celebrada em 2019. Este tipo de discurso fez com que ele fosse visto como um conservador capaz de alcançar gente de tendências ideológicas e contextos sociais diversos. Mas hoje seus críticos o repreendem por ter se tornado mais divisivo, ao menos no Twitter. Também lhe jogam na cara a reviravolta que ele deu para congraçar-se com o ex-mandatário, que em 2016 era visto como um sintoma e não solução. Até os comentaristas conservadores que o apreciam reconhecem a mudança: Vance passou de explicador Trump a imitador, diz Jonathon von Maren.

Voltará a ser ele mesmo? Há que se ver. Quanto a suas políticas, promete cortar o financiamento público das universidades “que ensinem teoria crítica da raça ou ideologia de gênero”, “obrigar nossas escolas a dar um relato honesto e patriótico da história dos Estados Unidos”, “desmembrar as grandes empresas tecnológicas para reduzir seu poder”, recompensar o matrimônio e a família com uma política fiscal mais favorável, “acabar com o aborto”, reforçar a vigilância na fronteira com o México, combater as drogas e a crise dos opioides, proteger o direito ao porte de armas, impulsionar uma política exterior que ponha em primeiro lugar os Estados Unidos…

O mercado não é panaceia

Outro político republicano que moderou seu entusiasmo pelo liberalismo é o senador Marco Rubio, de 50 anos. Outrora exaltado por um movimento tão antiestatista quanto o Tea Party, hoje ele promove o que chama de “capitalismo do bem comum”, um sistema de livre iniciativa que busca recalibrar as necessidades dos trabalhadores com as dos investidores e empresários, e que chama a atenção para os efeitos perversos da falta de trabalho digno, como a erosão das famílias e das comunidades, o aumento da pobreza infantil ou as mortes por desespero. [Trata-se das mortes precoces causadas por suicídio, alcoolismo ou overdose. A expressão "morte por desespero" vem sendo usada nos Estados Unidos para explicar a queda da expectativa de vida de sua população].

“À direita política – lamentava num discurso de 2019 –, nos convertemos nos defensores do direito de as empresas obterem benefícios, de os acionistas receberem um retorno do investimento e da obrigação que as pessoas têm de trabalhar. Mas ignoramos os direitos de os trabalhadores participarem dos benefícios que criam para seu empregador e a obrigação de as empresas agirem segundo o melhor interesse dos trabalhadores e do país que tornaram possível o seu êxito.”

Rubio rechaça abertamente o socialismo. Mas sai das diretrizes republicanas quando propõe abandonar o tratamento fiscal favorável à recompra de ações para dá-lo “às empresas que reinvistam seus ganhos de uma maneira que crie empregos novos e salários mais altos”. Ou quando recomenda impulsionar os investimentos públicos em indústrias chaves para o interesse nacional. Ou quando promove medidas de política familiar como o alívio fiscal por filho ou a licença paternidade remunerada.

Os pós-liberais apreciam a visão de Rubio, mas vão mais longe e pedem medidas de ajuda às famílias como as de Orbán.

Mão de ferro com as “Big Tech”

O senador por Missouri Josh Hawley, de 42 anos, também insiste que o Partido Republicano deve deixar de priorizar os interesses das grandes empresas em detrimento dos cidadãos comuns. Assim como Rubio ou J. D. Vance, ele tende a associar a falta de oportunidades econômicas ao declínio cultural.

Depois de se formar em história por Stanford e em direito por Yale, ele fez estágios primeiro como assistente em um tribunal federal e, depois, do presidente da Suprema Corte John Roberts. Antes de dar o salto para a política, trabalhou por uns anos para o escritório de advocacia The Becket Fund for Religious Liberty, onde participou da equipe que ganhou o caso Burwell vs. Hobby Lobby. [Como desfecho, a Suprema Corte decidiu que empresas privadas podem se eximir de regras que contrariam as crenças religiosas dos seus donos].

Este pedigree elitista, observa a jornalista Emma Green, não o impediu de recorrer a um discurso muito duro contra as elites. Hawley costuma abordar problemas que caem bem com a esquerda – como a desigualdade, os baixos salários, a desregulação ou o valor cívico dos sindicatos –, mas também tem uma mensagem que agrada aos conservadores.

Por exemplo, na última convenção do conservadorismo nacional, celebrada no fim do último outubro, Hawley denunciou a crise da masculinidade, que ele atribui ao aumento, entre os homens, do desemprego, da instabilidade familiar, da ansiedade e da depressão, do consumo de drogas, da pornografia, da ociosidade, etc. E em seu livro "The Tyranny of Big Tech" [A tirania das Big Tech], ele defende a regulação mais estrita dos gigantes tecnológicos, nos quais vê a ameaça mais séria para a liberdade dos norte-americanos em décadas.

Hawley, junto com o senador pelo Texas Ted Cruz – outro político afeito ao conservadorismo nacional, mas mais liberal no plano econômico–, foi um dos republicanos que manteve a suspeita sobre a integridade das eleições presidenciais após o ataque ao Capitólio.

Estatistas… ou não

Será que a nova tendência estatista dos conservadores irá se conectar com as prioridades atuais da classe trabalhadora? Se a virada for na linha de ampliar o Estado de bem-estar social, é provável que se produza mesmo essa conexão. E também caso ela se concretize em um Estado administrativo que faça frente à ideologia woke e à teoria crítica da raça.

Mas o que se está vendo tanto nos protestos dos caminhoneiros do Canadá quanto nos dos coletes amarelos da França, observa Joel Koktin, é que hoje a classe trabalhadora não é amiga das “ordens dadas de cima”.

De todo modo, no âmbito das ideias esses políticos – e, sobretudo, os intelectuais pós-liberais – fazem vários aportes valiosos: reintroduzem a noção do bem comum na política; reequilibram a ênfase na responsabilidade individual com a importância das condições sociais; expõem como o Estado pode facilitar ou dificultar o progresso econômico e a vida boa dos cidadãos; e ligam a preocupação com as consequências do modelo econômico às do declínio cultural.

Aos conservadores, por sua parte, caberá lembra-lhes de que não têm nem o monopólio da representação do bem comum, nem dos cidadãos comuns.

*Juan Meseguer é ensaísta, poeta, doutor em sociologia e redator chefe do site espanhol Aceprensa.

©2022 Aceprensa. Publicado com permissão. Original em espanhol.

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