Atila Iamarino, o biólogo apocalíptico do “1 milhão de mortos pela Covid-19em 2020” (cientificamente comprovados, é claro), veio a público clamar por um autoritarismo “do bem”. Calma, é um autoritarismo em nome da certeza científica, do bem de todos, pela vida dos camaradas.
Historicamente dizendo, esses argumentos do “autoritarismo justificado pela ciência” ou “pelo bem social” são tão batidos e conhecidos, e já foram usados tantas vezes como pretextos de genocidas que, sem nenhum exagero retórico ou histórico, poderíamos colocá-los na boca de Hitler, Stalin, Pol Pot, Fidel Castro, Mussolini, Lênin ― ou em quaisquer outros déspotas que lavaram o solo do século XX com sangue e tripas humanas ― sem que fosse necessário maiores contextualizações.
Isaiah Berlin, imagino que com certa raiva após ver tantos tolos rumando conscientemente ao caos ditatorial depois de um século de morticínios políticos, disse em "Uma mensagem para o século XXI": “Somente os bárbaros não têm curiosidade em saber de onde vieram, como chegaram a ser o que são, aonde parecem estar indo, se desejam rumar nessa direção e, se querem, por quê, e, se não, por que não”.
Atila pensa com o fígado, e sua memória política parece direcionada a encontrar fascismos imaginários, e não em conhecer a genética política das ditaduras modernas, isto é: as ideologias. Contra ideias, críticas e suspeitas de que ele não gosta, propõe o que lhe parece ser mais fácil e prático: o autoritarismo. Talvez isso funcione em análises de dados no Excel, quem sabe até em suas fazendinhas de formigas, mas na sociedade real isso é meio caminho para o inferno.
O novo porta-voz da ciência no Brasil julga que os especialistas chegaram a tantas certezas incontestes, números determinantes, dados e conclusões infalíveis, que simplesmente não cabem mais sequer suspeitas. Qualquer um que desconfie desses dados oferecidos pelos deuses de jaleco de pronto deveria ser calado, expulso das redes sociais e, quiçá, algo mais. Por que não? É pelo bem geral.
Pois é, um erro tão velho e ingênuo que somente um cientista profundamente ignorante em relação à história política do século XX poderia cometê-lo. Chega a me dar preguiça ter que explicar a um dito “intelectual” como o tecnocentrismo, mancomunado a disposições políticas autoritárias, construíram ― e ainda constroem ― ditaduras dantescas mundo afora. Todos eles justificaram suas sanhas ideológicas com um: “autoritarismo necessário”.
Certeza científica
Se o nosso aclamado biólogo largasse um pouco os tubos de ensaio e se apegasse aos livros de história (livros bons, e não os de propaganda ideológica que ele cita em seu artigo), ele veria que o mundo humano não é um algoritmo, um resultado na tela do seu notebook, ou aquela mesma fazendinha de formigas citada acima, cujos movimentos e alterações são completamente previsíveis.
No mundo sadio que os homens alcançaram a duras penas, os indivíduos são livres. Isso significa que eles têm vontades próprias, anseios e autonomia para alcançar seus objetivos por meio de suas capacidades e criatividades, e que podem recusar ideias, caminhos e sabores de comida, tudo isso sem que sejam penalizados por suas ousadias de serem livres. E mais, meu caro Atila, em uma sociedade sadia (acredite se quiser), as pessoas são livres até para expressarem as suas impressões sobre o mundo e tudo aquilo que concerne a esse mesmo mundo. Cê acredita? Pois é, parece que a realidade, aquela minimamente sadia que cito acima, é mais do que conexões genéticas e elos darwinianos. E nada disso é programável ou previsível.
No referido artigo stalinesco, Atila afirma que a certeza científica justifica os avanços autoritários do Estado sobre aqueles que levantam suspeitas contra as verdades dos especialistas. E aqui está o erro grotesco do nobre biólogo: achar que a política, as vontades humanas são feitas como a ciência laboratorial.
Calar os conspiracionistas é o que Atila pede, pois é o mais prático e eficaz, é o que um cientista com sanhas de ser um tirano faria. Mas por que também não marcá-los com uma estrela no peito para que todos saibam onde estão os conspiradores anticiência? Eficaz, pragmático, objetivo. Por que não prendê-los por fake news ou por se negarem a acreditar nas diretrizes dos especialistas, submetendo-os a julgamentos públicos? Talvez isso afastaria a sanha ilógica dessa turba obscurantista.
Mas, se as teorias por eles defendidas continuassem a se disseminar clandestinamente, por que não torturá-los a fim de encontrar essa rede subterrânea de conspiracionistas? Afinal, é necessário acabar com as notícias falsas e com o negacionismo a todo custo ― todo mesmo. É questão sanitária e a sanidade social está acima das liberdades dos indivíduos, não é mesmo?
Mas calma, se todo esse lamaçal obscurantista continuar, que tal matar alguns publicamente, a fim de que os remanescentes da seita anticientífica se dissolvam em medo e tremor diante da certeza científica de sua futura e igual morte pública? Desta forma, a ciência prosperará.
Demasiado apocalíptico?
Do furor pró-autoritarismo de Atila (ascendendo a um nível social mais robusto e populista), à câmara de gás, gulags e repressões mais severas, estamos apenas a uma ideologia revolucionária e vários especialistas autoritários de distância. Os últimos nós com certeza já temos. As universidades são lotadas deles e a ideologia também. Há muito tempo a liturgia autoritária é rezada pelos especialistas por aqui.
Exagerado? Demasiado apocalíptico? Conspiração de um gordinho tetudo e neoconservador? Perguntemos ao século XX.
Esta pseudoargumentação pró-ciência adotada por Atila e muitos outros em nossa mídia não é de uma apologia da ciência que serve ao homem, mas sim àquela ciência ao qual o homem deve ser escravo. Como dizia Paul Hazard em "A crise da consciência europeia: 1680-1715" sobre o afeito pensamento cientificista: “Agora a ciência se torna um ídolo, um mito. Já se confunde ciência com felicidade, progresso material com progresso moral. Crê-se que a ciência substituirá a filosofia, a religião, e atenderá a todas as exigências do espírito humano”.
Muitas coisas abjetas foram feitas com essa “argumentação pró-ciência”. Julius Hallervorden, neurocientista alemão, defendia a eugenia de doentes mentais para extração de seus cérebros. August Hirt, outro médico alemão, pedia cabeças de judeus para estudos anatômicos e, vendo a facilidade dessa empreitada naquele regime, chegou a encomendar previamente os corpos de 115 prisioneiros de Auschwitz, pedido que foi atendido prontamente com a morte de 115 judeus daquele campo. Sigmund Rascher, médico nazista, gabava-se de conhecer perfeitamente a anatomia humana, pois “os experimentos realizados no campo de concentração de Dachau eram com humanos, e não com ratos”. Sem falar de Joseph Mengele, que fez experimentos com mais de 400 mil prisioneiros (grande parte deles eram padres poloneses que não se dobraram ao nazismo). Desde injetar tinta de caneta nos olhos de crianças e dissecar cérebros de pessoas vivas até amputação de membros de anões, toda sorte de maldades macabras foram realizadas.
Guardadas as devidas proporções do que foi dito pelo biólogo brasileiro, fato é que esse pacote escabroso poderia ser doentiamente justificado como “sacrifícios em prol da ciência”. Se fechar os olhos, como num pesadelo, posso até ver e ouvir Mengele dizendo, em um bom português, que se tratava de um “autoritarismo necessário”. Mas graças a Deus a ciência não está acima da ética mais básica. Ainda bem que os fins autoritários não justificam os meios hostis e assassinos. Não é mesmo, Atila?
"O comunismo é científico"
Tudo poderia ser justificado por meio de um abstrato e bondoso “necessário autoritarismo”. Afinal, avançar é necessário, e alguns sacrifícios morais sempre são indispensáveis quando o progresso bate à porta ― dizem os progressistas.
Também foi o que pensaram os soviéticos. Aquela retórica gostosa, sempre apaziguadora de consciências e emudecedora de “negacionistas”, e segundo a qual a ciência justifica imposições e despotismos, foi a exata justificativa dos líderes da URSS. A “ciência” de Marx era uma propaganda perfeita: “o comunismo é científico, a sua posição política, um ópio”. A ilusão igualitarista costurada em ideias, sedutora e paradisíaca; os princípios moralistas que faziam os intelectuais se sentirem altruístas, jurando que a felicidade humana dependia apenas de ajustes sociais; os cálculos econométricos e imposições políticas revolucionárias. Raymond Aron, um dos maiores cientistas políticos que a França já produziu, afirmou em "O ópio dos intelectuais":
“Aceitar que o marxismo, tal como divulgam os comunistas, traz uma explicação científica para a miséria operária é como confundir a física de Aristóteles com a de Einstein, ou A origem das espécies, de Darwin, com a biologia moderna. [...] Essa pretensa ciência não passa de ideologia”.
Sim, o “socialismo é científico” ― diziam os especialistas. Esse foi o estandarte que estava em cada livro de humanidades, palestras e revistas de política na primeira metade do século XX. E ainda hoje aqui no Brasil, acreditem, ele confere aquele ar doutoral, uma autoridade inconteste. Tudo que se desviava disso era mitológico, antirracional, obscurantista e anticientífico. A crença de que a sociedade era uma espécie de máquina de interações programadas, com ajustes mecânicos bem definidos e previsíveis, era a ideia preferida dos intelectuais e especialistas.
Foi com essa certeza analítica que Marx fez previsões sobre o colapso final do capitalismo (ainda estamos no aguardo), que os especialistas soviéticos criavam cálculos infinitos para justificar ao partido os fracassos alimentícios (conhecem Holodomor?) e a necessidade de prisões de traidores, até para mostrar quais regiões precisariam ou não de sistemas de calefação e arroz. Tudo era ciência, um ajuste racional, só era preciso encontrar os especialistas e cálculos corretos ― e, é claro, matar os especialistas que erravam em justificar as falhas do sistema. Desde a depressão de Aleksiêi Kiríllov, até o número exato de insumos necessários para a fábrica de coturnos de Laningrado, tudo era parte de um grande sistema interligado, veias e fios nevrálgicos que findavam no grande cérebro estatal-científico, o Partido.
Fato é que Marx, em dado momento, afirma que o capitalismo demoraria a ruir, e que assim o sistema burguês de opressão continuaria a fazer os seus servos. Então ele propõe a Ditadura do Proletariado, a tomada revolucionária do Estado por meio de vias militarizadas, uma espécie de “autoritarismo necessário” de Karl Marx, sabe, Atila? Ora, pensavam os especialistas da época, “já se tem as vias revolucionárias e científicas para o socialismo/comunismo, agora é tudo questão de seguir as etapas para que no fim a vacina contra o sistema burguês funcione, para que o igualitarismo próspero, o final da história, o reino dos proletários, enfim aconteça”.
Os marxistas já haviam traçado uma linha do começo ao fim da história. Eles sabiam como as sociedades começavam e sabiam cientificamente para onde iriam. Já estava tudo determinado, era só apertar o botão. O mundo seria socialista, pois o socialismo é ciência e as certezas científicas não se discutem. Debater isso era tolice, perda de tempo ― logo, essa ideia justificaria a censura contra aqueles que discordavam, depois as prisões, as mortes, e por aí seguiu o século XX. E aqui não é previsão ou conspiração. É história, são lembranças...
“No que deu a União Soviética, então?"
Mas a pergunta é: “no que deu a União Soviética, então?" Segundo o historiador francês, Stéphane Courtois, em "O livro negro do comunismo", acabou em 100 milhões de mortos. E a conta não para de crescer, afinal, ainda há quem acredite no autoritarismo necessário por aí.
Atila talvez não saiba que ideias têm consequências, que o “autoritarismo necessário” que ele deseja, ainda que repleto de boas intenções, é a mesma via que carregou a humanidade para uma das valas históricas mais obscuras de sua grande caminhada. Ao desejar um autoritarismo científico, o biólogo deveria ser instruído por seus amigos mais sensatos a puxar essa corda para ver ao que ela está atrelada. Sempre é bom ir além do “bom mocismo” marqueteiro da internet e olhar a história política crua de nossa sociedade.
A COVID-19 é seríssima, e seus efeitos já são perversos agora, mas, pelo que me lembro, uma asquerosidade sanitária não anula uma monstruosidade política. Ideias e conspirações tolas se combatem com argumentos melhores. Usar o Estado para reprimir pensamentos alheios é o mesmo que dar um atestado de fracasso para as próprias convicções, usar um coringa para compensar a inaptidão de seus princípios.
A imperícia com a filosofia política e com a história fez com que o biólogo passasse essa vergonha despótica em plena "Folha de São Paulo", o jornal com maior circulação do país. O progressismo é assim, capaz de defender tiranias com hashtags fofinhas, levantar campanhas em prol de absurdidades com justificativas angelicais, abraçar árvores enquanto clama a morte de bebês intrauterinos. O autoritarismo do bem, o fascismo que pode.
Moraes eleva confusão de papéis ao ápice em investigação sobre suposto golpe
Indiciamento de Bolsonaro é novo teste para a democracia
Países da Europa estão se preparando para lidar com eventual avanço de Putin sobre o continente
Em rota contra Musk, Lula amplia laços com a China e fecha acordo com concorrente da Starlink