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Preta e católica, Simone não era do PSOL. Por isso sua morte não sensibilizou os militantes

Simone Barreto Silva: sua morte não sensibilizou os militantes (Foto: Reprodução)

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A luta contra a civilização judaico-cristã ocidental fez mais uma vítima: Simone Barreto Silva, natural de Salvador, 44 anos, residente há 26 na França. Lá, era responsável por disseminar um nicho da cultura brasileira, que é a Festa de Yemanjá. À imprensa, a família falou que era muito católica. O fato de pedir e agradecer a Deus todo santo dia, numa bonita basílica francesa do século XIX, foi sua sentença de morte. Um terrorista islamista a esfaqueou aos berros de Allahu Akbar. Agonizando, mandou dizer aos filhos que os ama muito, e morreu.

Do meu canto das redes sociais, vi gente apontando a óbvia cristofobia, e gente dando por garantido que ela não fosse católica, porque era adepta de uma religião de matriz africana. À primeira questão, vale um paralelo com a homofobia: certa feita pai e filho, ao andarem abraçados, foram atacados por um homem que os confundiu com um casal gay. O fato de não serem um casal gay não torna menos homofóbico o ataque, já que o perpetrador foi motivado pela crença de que eram.

Quanto à religiosidade, o brasileiro do Sul e do Sudeste tende a associar os orixás à umbanda, uma religião que está mais para sincretismo espírita do que para católico. O candomblé, muito mais enraizado na Bahia do que a umbanda, tem longo histórico de sincretismo e convivência com o catolicismo. Qualquer brasileiro sabe da existência da Lavagem do Senhor do Bonfim. Este é uma imagem barroca de Jesus, que é sincretizado com Oxalá. Do lado de fora do templo católico, uma procissão identifica aquela imagem do século XVIII com Jesus e com Oxalá. Ritos purificadores do candomblé são feitos na procissão católica e nas escadarias da igreja, que são lavadas segundo esses ritos. Passada a soleira do templo, acontece um rito católico perfeitamente normal. Sincretismo da porta pra fora, catolicismo da porta pra dentro. O leitor que queira ver uma experiência sincrética dessas poderá ir, na manhã de qualquer segunda-feira, à Igreja de São Lázaro, em Salvador, testemunhar um banho de pipoca feito na escadaria da Igreja, dentro da qual as coisas acontecem de maneira normal.

Então, com toda probabilidade, Simone exercia a sua religiosidade católica baiana tradicional.

Ataque a cristãos, pagãos e ao Ocidente 

Que seja cristofobia, provavelmente está fora de questão. Só havendo uma forte evidência em contrário para abandonarmos essa hipótese tão natural, e com tamanha conformidade com os eventos precedentes.

Um ex-primeiro ministro da Malásia disse que os muçulmanos têm direito a matar franceses, numa espécie de “dívida histórica”. No entanto, se fosse assim, deveríamos inferir que pagãos e cristãos têm o direito de escravizar muçulmanos, dado que essa religião tocou o terror na África negra e nas regiões da Europa banhadas pelo Mediterrâneo ou povoadas por eslavos.

A xaria seguida então permitia a escravização de todo humano que não se convertesse ao islã. A figura temível do corsário Barba Roxa é dessa realidade, e Gógol retratou em Tarás Bulba (Ed. 34, 2011) o terror do escravagismo otomano sobre as atuais Ucrânia e Polônia. No século XVII, segundo afirma o historiador Martin Meredith em O destino da África (Zahar, 2017), o fluxo de escravos europeus entrando na África era tão grande quanto o de escravos africanos rumando à América.

Tal como os cristãos, os pagãos que cultuavam Yemanjá, Oxóssi, Ogum etc. estavam sujeitos à escravização muçulmana. O ocidental progressista fantasia, hoje, que o homem branco capturava negros livres e os reduzia à condição escrava. Quem fazia isso, porém, eram os muçulmanos e outros africanos. O europeu e, depois, o baiano, iam à África comprar aqueles que foram reduzidos à condição de mercadoria. É claro que isso não isenta o criador da intensa demanda por escravos na costa ocidental da África; só é bom frisar que quem metia a mão na parte mais suja do trabalho eram os muçulmanos da África, ao contrário do que se propaga hoje com finalidades sentimentaloides.

Aqui, no Brasil, os escravos eram batizados, e na Bahia em particular acabaram por desenvolver uma religiosidade sincrética com a religião dos senhores (o catolicismo), coisa impossível na África e até na América do Norte. Muito do que é África na cultura brasileira é, em particular, da região da atual Nigéria. Isso se deve ao fato de os baianos terem desenvolvido tratados comerciais independentes de Portugal com tiranos africanos livres. Até hoje a família do baiano Félix de Souza é influente no atual Benin, o antigo do Daomé.

Se pudéssemos planejar o passado, é claro que condenaríamos a escravidão. Como não podemos, olhemos para a cultura que nos foi legada e apreciemos a capacidade que os pagãos negros e os seus descendentes tiveram de florescer e criar beleza em nossas terras.

Essa beleza, essa capacidade de sincretismo e de convivência pacífica de credos, essa capacidade humanística de se integrar numa cultura e recriá-la ao seu modo, são legados da civilização judaico-cristã ocidental que o fundamentalista islâmico quer destruir. E é algo que temos aqui, no Brasil. Temos que dar valor a isso, que alguns querem nos tirar.

Simone não era do PSOL 

É claro que, noutras circunstâncias, a morte brutal de uma negra devota de Yemanjá na Europa causaria alvoroço naqueles que precisam saber o sexo e a raça de um indivíduo humano antes de qualquer outra coisa, como se gente fosse cachorro pra ter valor conforme a raça. Nem a religião seria apreciada em função de algo superior; essa gente acha que cada raça tem sua religião, e Yemanjá é coisa de preto, do mesmo jeito que o latido agudo é coisa de poodle.

Se Simone fosse uma psolista, teria agora uma porção de camisas e canecos e broches e filtros de perfil com sua cara. Uma legião de descerebrados gritaria “Simone vive” e daria o nome de Simone aos seus coletivos estudantis. Graças a Deus e a Yemanjá, a sua família e a sua imagem não passarão por isso.

E nós teremos a possibilidade de olhar para o silêncio do fã clube de Marielle e dizer: sabíamos que nunca estiveram preocupados com a vida de mulheres negras. Podem morrer milhões de mulheres negras: se o assassino for um companheiro na luta contra a civilização judaico-cristã ocidental, ele será protegido.

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