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Entrada do complexo de Auschwitz, na Polônia, o campo de concentração que se tornou o maior símbolo do Holocausto.
Entrada do complexo de Auschwitz, na Polônia, o campo de concentração que se tornou o maior símbolo do Holocausto.| Foto: Wikimedia Commons/Pzk Net

O romeno Elie Wiesel (1928-2016) dedicou sua carreira de escritor e jornalista ao registro da memória sobre o Holocausto. Um trabalho reconhecido com o prêmio Nobel da Paz, concedido a ele em 1986.

Nascido em uma família judia modesta, Wiesel tinha somente 15 anos quando foi enviado para o campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, na Polônia – onde sua mãe e sua irmã mais nova foram assassinadas.

Seu pai morreu no campo de Buchenwald, na Alemanha, para o qual os dois foram transferidos em seguida.

O trecho a seguir, em que Wiesel narra sua chegada em Auschwitz, faz parte de ‘A Noite’ (1956), o primeiro livro de sua obra de mais de 40 títulos, reeditado no Brasil pela Sextante.

Nunca esquecerei aquela noite, a primeira noite no campo, que converteu minha vida numa noite longa e trancada a sete chaves.

Nunca esquecerei aquela fumaça.

Nunca esquecerei os rostinhos das crianças cujos corpos vi se transformarem em espirais sob um firmamento calado.

Nunca esquecerei aquelas chamas que consumiram minha fé para todo o sempre.

Nunca esquecerei o silêncio noturno que me tirou por toda a eternidade o desejo de viver.

Nunca esquecerei aqueles momentos que assassinaram meu Deus e minha alma, em que meus sonhos assumiram a face do deserto.

Nunca esquecerei, ainda que fosse condenado a viver por tanto tempo quanto o próprio Deus. Nunca.

O barracão onde nos fizeram entrar era muito comprido. No telhado, umas claraboias azuladas. Deve ser esse o aspecto da antecâmara do inferno. Tantos homens apavorados, tantos gritos, tanta brutalidade bestial.

Dezenas de detentos nos receberam, de porrete na mão, batendo a esmo, em qualquer parte, em qualquer um, sem motivo algum. Ordens: “Tirem toda a roupa! Depressa! Raus! Fiquem somente com o cinto e os sapatos na mão”.

Era para jogarmos nossas roupas nos fundos do barracão, onde já havia algumas amontoadas. Ternos novos, velhos, casacos rasgados, farrapos. Todos iguais: nus. Tiritando de frio.

Alguns oficiais da SS circulavam pela sala, buscando homens de físico robusto. Se o vigor era tão apreciado, será que não deveríamos tentar nos fazer de fortes? Meu pai achava o contrário. Era melhor não se colocar em evidência. Teríamos o mesmo destino dos outros.

Mais tarde viríamos a saber que tínhamos razão. Os escolhidos daquele dia foram incorporados ao Sonderkommando, o grupo que trabalhava nos crematórios.

Bela Katz, filho de um grande comerciante da minha cidade, fora levado a Birkenau no primeiro transporte, uma semana antes de nós. Quando soube da nossa chegada, nos mandou um bilhete contando que, escolhido por ser forte, ele mesmo colocara o corpo
do pai no crematório.

As bordoadas continuavam a chover:

– Para o barbeiro!

Cinto e sapatos na mão, me deixei arrastar até os barbeiros. Suas máquinas arrancavam os cabelos, raspavam todos os pelos do corpo. Em minha cabeça ressoava sempre o mesmo pensamento: não me afastar de meu pai.

Liberados dos barbeiros, ficamos vagueando em meio à massa de gente, encontrando amigos, conhecidos. Esses encontros nos enchiam de alegria – sim, de alegria: “Deus seja louvado! Você ainda está vivo!”.

Outros, porém, choravam. Aproveitavam o que lhes restava de forças para chorar. Por que tinham deixado que os levassem para lá? Por que não tinham morrido em suas camas? Os soluços entrecortavam suas frases.

De repente, alguém se jogou nos meus braços e me deu um beijo: Yechiel, irmão do Rabino de Sighet. Chorava amargamente. Pensei que chorasse de alegria por ainda estar vivo.

– Não chore, Yechiel – falei. – É uma pena que os outros…

– Não chorar? Estamos à beira da morte. Daqui a pouco seremos nós lá dentro... Entende? Dentro. Como posso não chorar?

Pelas claraboias azuladas do telhado eu via a noite se dissipando aos poucos. Tinha deixado de sentir medo. E um cansaço inumano me assolava.

Os ausentes já nem nos vinham à memória. Ainda falávamos neles – “O que lhes terá acontecido?” –, mas pouco nos preocupávamos com sua sorte. Não conseguíamos pensar em coisa alguma.

Os sentidos estavam obstruídos, tudo se dissolvia numa névoa. Já não nos prendíamos a nada. O instinto de preservação, de autodefesa, o amor-próprio – tudo isso sumira.

Num derradeiro rasgo de lucidez, tive a impressão de sermos almas malditas vagando no nada, almas condenadas a vagar pelos espaços até o fim dos tempos, em busca de redenção, à procura do esquecimento – sem esperança de encontrá-lo.

Lá pelas cinco da manhã, nos expulsaram do barracão. Os “kapos” nos batiam de novo, mas eu deixara de sentir a dor das pancadas. Uma brisa gelada nos envolvia. Estávamos
nus, cinto e sapatos na mão.

Uma ordem: “Correr!” E corremos. Ao fim de alguns minutos de corrida, outro barracão.
Um barril de querosene na porta. Desinfecção. Mergulham um por um lá dentro.

Em seguida, ducha quente. Às pressas. Saindo da água, somos enxotados para fora. Correr mais uma vez. Outro barracão: o depósito.

Mesas muito compridas. Montes de uniformes de prisioneiros. Corremos. Ao passar, nos jogam calça, blusão, camisa e meias.

Em poucos segundos tínhamos deixado de ser homens. Se a situação não fosse trágica, poderíamos ter caído na gargalhada. Que trajes!

Meir Katz, um gigante, ganhou calça de menino, e Stern, um homenzinho magro, uma camisa em que se perdia. Logo tratamos de fazer as trocas necessárias.

Dei uma olhada no meu pai. Como estava mudado! Seus olhos tinham escurecido. Queria lhe dizer alguma coisa, mas não sabia o quê.

A noite se fora de vez. A estrela da manhã brilhava no céu. Eu também tinha me tornado outro homem. O estudante do Talmude, o menino que eu era tinha se consumido nas
chamas.

Só restara uma forma, parecida comigo. Uma chama negra tinha penetrado em minha alma e a devorado.

Tantas coisas haviam acontecido em poucas horas que eu perdera totalmente a noção do tempo. Quando tínhamos deixado nossas casas?

E o gueto? E o trem? Só uma semana? Uma noite – uma única noite?

Há quanto tempo estávamos ali parados no vento gelado? Uma hora? Uma simples hora? Sessenta minutos?

Só podia ser um sonho.

Conteúdo editado por:Omar Godoy
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