A juíza Ana Cecília Argueso Gomes, da 6.ª Vara de Fazenda Pública do Rio de Janeiro, acatou um pedido da Associação Brasileira de Ateus e Agnósticos (Atea) e determinou que o show da cantora gospel Anayle Sullivan, uma das mais populares do país, fosse cancelado. A justificativa da juíza, que estendeu a proibição a “qualquer show de cunho religioso”, se baseia no princípio da laicidade do Estado.
É um caso cheio de absurdos, embora uns tantos provavelmente estejam comemorando – à custa do princípio basilar da liberdade de expressão e religiosa – a derrota do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella. Em casos como este, ganha ainda mais relevância a frase atribuída a Groucho Marx: “Estes são meus princípios. Se você não gosta deles, tenho outros”.
O primeiro despautério do caso é a evocação equivocada do princípio da laicidade para justificar uma decisão evidentemente ideológica. Tanto a magistrada quando a associação que entrou com o pedido ignoram (ou querem nos fazer crer que ignoram) que o Estado pode (e deve) ser laico, mas os indivíduos que o compõem não precisam ser.
Ao promover o show da cantora gospel, o prefeito do Rio, por meio das pessoas encarregadas do tradicional show de fim de ano, apenas reconhece a existência de milhões de pessoas que se sentirão atraídas não só pela festa de fogos de artifício em Copacabana, como também pela música evangélica de Anayle Sullivan.
O complicador, neste caso, é o fato de Crivella ser ex-bispo da Igreja Universal do Reino de Deus, uma das denominações neopentecostais com mais fieis no Brasil, uma figura extremamente controversa na política brasileira e, para piorar, ex-parceiro musical de Michael Sullivan, marido de Anayle e um dos maiores compositores da música popular brasileira, autor de vários sucessos na década de 1980, desde Ilariê, da Xuxa, até Me Dê Motivo, imortalizada no vozeirão de Tim Maia.
Ou será que o princípio da laicidade do Estado, bem como a extensão da decisão para “qualquer outro cantor religioso” se aplica também à Escola de Samba da Mangueira, que em seu repertório conta com sambas-enredos que fazem várias referências às religiões de matriz africana? Ao que parece, ao apelar para o princípio da laicidade do Estado, juíza e Atea tinham como alvo não um estilo musical que de alguma forma lhes causa calafrios, e sim uma cantora e um tema (o cristianismo) específicos.
Isso que na melhor das hipóteses é apenas um equívoco conceitual está claro na decisão da juíza, na qual se lê que “não há dúvida de que a inserção, dentre os demais shows de diferentes gêneros musicais, multiculturais e sem qualquer cunho religioso (...), de shows de música gospel, gênero ligado a religiões de origem cristã, e somente desta concepção religiosa, em detrimento das inúmeras outras existentes, inclusive das posições não religiosas, vai de encontro à laicidade estatal e à garantia da liberdade religiosa”.
A fim de confirmar o viés anticristão da juíza e da Atea, vale um exercício de imaginação. E se o grupo de pop-rock brasileiro Paralamas do Sucesso, que também se apresentará no réveillon carioca, resolver fazer um show baseado em todos os clássicos da música gospel norte-americana que influenciaram o rock? E mais: uma decisão do tipo seria dada se uma entidade cristã reclamasse da invocação do diabo por uma banda como Rolling Stones ou Black Sabbath?
O que os ativistas da Atea e a juíza aparentemente não entendem é que um Estado laico não significa um Estado ateu. Isto é, da mesma forma que a sociedade não pode usar de fundos públicos para promover uma religião específica, ela não pode usar os fundos para promover a falta de fé de um grupo. Do contrário, a justiça necessariamente laica acaba por criar um grupo privilegiado (os que creem na inexistência de Deus) em detrimento daqueles que acreditam em quaisquer divindades.
O que, pensando bem, é até compreensível de uma ação movida por ativistas ateus (mas não por parte da juíza). Afinal, como esperar de militantes do ateísmo a tolerância que só o longo e tortuoso processo civilizatório judaico-cristão, depois de séculos de barbáries, conseguiu instaurar como princípio fundamental para a boa convivência entre as pessoas?
Como cabe recurso, resta esperar que uma instância superior reconheça o apelo popular da cantora gospel e perceba que, neste caso, a laicidade do Estado é apenas um pretexto para atacar politicamente um prefeito com alto grau de rejeição (mas legítimo, uma vez que foi eleito democraticamente) e uma fé específica.
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