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Um novo estudo do Instituto Norueguês de Saúde Pública sugere que banir os celulares das escolas de ensino fundamental melhora o estado de saúde mental das meninas e diminui o bullying para ambos os sexos. Além disso, o banimento da telinha aumenta a performance acadêmica das meninas e as chances de aprofundarem seus estudos no ensino médio. Os resultados valem especialmente para meninas de origem mais pobre.
A autora é a economista norueguesa Sara Abrahamsson. O trabalho, ainda em pré-publicação, foi disponibilizado há dois meses no banco de artigos preliminares SSRN, pertencente à editora acadêmica Elsevier.
As escolas norueguesas são livres para decidir sua política de smartphones, não há políticas ou diretrizes nacionais. Isso permite uma comparação das que baniram os aparelhos com as que os permitem. Foram amostrados por Abrahamsson alunos por volta dos 16 anos que completaram o ensino fundamental local no período entre 2010 e 2018. A economista colheu respostas de 529 escolas a respeito de sua política quanto aos celulares, sendo usadas para a análise 431 a 477 para as quais ela conseguiu cruzar dados com suas fontes (o mínimo de escolas analisadas foi de mais de um terço delas para todo o país).
O Registro Norueguês de dados permitiu que ela obtivesse acesso a informações detalhadas sobre os estudantes e seus pais, como gênero, data e local de nascimento, residência, histórico escolar, renda e status de imigração. O serviço estatal Estatísticas da Noruega foi a fonte do desempenho escolar com uma nota agregada dos estudantes em exames nacionais e nas avaliações de seus professores locais.
A pesquisadora cruzou esses dados com duas fontes diferentes de dados de visitas dos estudantes a seu médico ou à enfermeira escolar, ambos parte do serviço público de saúde. Ela deu especial atenção às reclamações relacionadas à saúde mental dos jovens.
Resultados do estudo
Os banimentos dos celulares cresceram gradualmente nas escolas norueguesas: a política era rara em 2010, mas foi implementada por 119 escolas até 2016. Há duas modalidades principais de banimento: os estudantes são proibidos de trazer os aparelhos para escola, ou, nas que deixam trazer, os dispositivos são postos num “hotel de celulares” durante o período das aulas. Esses banimentos mais estritos representam 45% das escolas que implementam alguma restrição.
A análise completa de estudantes que receberam algum tratamento para saúde mental não indica diferença causada pelos banimentos. Contudo, a análise mais detalhista achou efeito entre grupos específicos na procura por tratamento. Após os banimentos, “as garotas experimentaram uma redução significativa no número de visitas por causa de sintomas e doenças psicológicas”, relata Abrahamsson. A redução das visitas aos terapeutas foi de 60% nos três anos após o banimento dos celulares. A pesquisadora mostra que as restrições parciais não adiantam, somente o banimento completo por todo o período escolar apresenta o efeito.
Quanto ao bullying, Abrahamsson analisou o resultado agregado por escola. Após dois anos de banimento dos celulares, houve “um declínio significativo nos incidentes de bullying”. O declínio vale tanto para meninas quanto para meninos. Nas meninas, três anos de banimento reduziram em 46% os incidentes de bullying, segundo o relato das próprias a respeito de sua interação com colegas nos meses anteriores à pesquisa. Nos meninos, a redução foi de 43% após quatro anos da política.
Houve ganhos modestos no desempenho escolar após banimentos. Meninas que estudam em escolas com banimento de celular tiveram um ganho de até 1,35% em suas notas gerais agregadas dos exames nacionais e notas dos professores. Esse efeito também desaparece se a escola permitir acesso aos celulares, mesmo que limitado. Pode parecer pouco, mas Abrahamsson informa que é um efeito mais forte que a redução do tamanho das turmas.
Para afastar o efeito da subjetividade dos professores ao dar notas, a economista isolou as notas em testes “cegos” padronizados. As notas das meninas ficaram 3,3% mais altas em matemática após quatro anos de banimento dos celulares. A pesquisadora explica esse resultado especulando que, sem acesso aos celulares, as meninas não “fogem” das tarefas de matemática. “Quando o uso de celular é proibido, elas precisam se focar no assunto”. Os banimentos também aumentam em 4 a 7% a probabilidade de elas escolherem estudos mais “acadêmicos” (ou seja, de nível de graduação) no ensino médio norueguês.
Para desvendar os efeitos socioeconômicos, Abrahamsson separou as meninas pelo nível educacional dos pais, que é um sinal do nível socioeconômico geral de suas famílias. As filhas de pais com baixo nível educacional mostraram uma diminuição de até 6% nos atendimentos psicológicos, enquanto as filhas de pais com alto nível educacional mostraram uma diminuição de 3% (após três anos de banimento dos celulares). O declínio no bullying para as meninas mais pobres foi de até 15%. As diferenças de resultados de acordo com nível socioeconômico não foram observadas entre os meninos.
Especialistas brasileiras comentam os resultados
Para Ilona Becskeházy, doutora em educação pela Universidade de São Paulo, “tem cada vez mais aparecido esse tipo de evidência” a respeito dos efeitos nocivos dos celulares na educação. Ela cita França, Reino Unido, Suécia e Portugal como países que têm introduzido restrições, e indica estudos que corroboram um efeito já conhecido: estudar com lápis e papel é um auxílio à memorização que não é reproduzido com tecnologias mais avançadas. No letramento, também, a digitação não substitui a caligrafia tradicional.
A Unesco, agência de educação, ciência e cultura da Organização das Nações Unidas, recomendou em meados de 2023 o banimento dos celulares nas escolas. Segundo a entidade, o uso excessivo da telinha foi ligado ao desempenho escolar inferior e a efeitos negativos na estabilidade emocional das crianças. “Nem toda mudança vem para o progresso. Só porque algo pode ser feito, não significa que deve ser feito”, disse a Unesco a respeito da adoção de novas tecnologias.
Bruna Garrossino, educadora especialista em dependências tecnológicas, disse à Gazeta do Povo que o uso das telinhas traz “vários danos ao desenvolvimento”. O uso está relacionado à obesidade, problemas de postura e de desenvolvimento da fala e da linguagem, além de problemas de visão e emocionais. “A criança fica dessensibilizada aos conteúdos que ela acessa, perde a capacidade de viver no momento presente, afetando sua capacidade de atenção plena e de vivenciar o tédio e o ócio”, detalha a estudiosa. “São inúmeros impactos da exposição precoce e crítica”.
Garrossino opina que “no mundo ideal, seria interessante que as crianças pudessem ficar até os seis anos de idade sem utilização de telas recreativas”. Isso é para não comprometer as habilidades sociais básicas delas. Para ela, a permissão para uso de telas depende da maturidade de cada criança e da presença dos pais para acompanhar esse uso. “Menos é mais, quanto mais tarde for possível postergar essa entrega, melhor”, aconselha. “Preferencialmente, na adolescência, por volta dos 13 ou 14 anos para ter o dispositivo próprio”.
“Crianças e adolescentes precisarem utilizar dispositivos tecnológicos móveis” não é um motivo válido, explica a especialista. “O cérebro é analógico”, ela diz, em concordância com Becskeházy. “As escolas deveriam repensar o uso dessas tecnologias de forma indiscriminada, para ser feita com mais intencionalidade”, aconselha Garrossino, que acompanha múltiplas famílias com problemas por causa da dependência do uso das telas.
Ela conclui que as crianças espelham a referência dos adultos. Quando adultos exageram no uso, este é o exemplo que está sendo passado. “Precisamos aprender como sociedade a encontrar o equilíbrio, extraindo o benefício de uma forma mais minimalista e estratégica, para não nos tornarmos pessoas distraíveis o tempo todo. Temos uma epidemia de saúde mental, especialmente em meninas que utilizam redes sociais. Toda rede social tem idade mínima recomendada de 13 anos”. “Há um adoecimento coletivo da sociedade, que cada vez se desconecta do viver e sentir e busca telas e redes sociais como fuga da realidade e dos desconfortos”, reflete Garrossino.
Como funciona o sistema educacional da Noruega
A educação obrigatória do país escandinavo dura uma década e começa aos seis anos. Antes do ano em que completam 13 anos de idade, as crianças não recebem notas por seus trabalhos. Depois, elas recebem notas padronizadas e há três provas nacionais semelhantes ao Enem. Somente 4% dos alunos noruegueses frequentam escolas privadas ou independentes do Estado. O “ensino médio” no país é mesclado à graduação, não faz parte da educação obrigatória, e compreende a faixa etária entre 16 e 23 anos.
As escolas norueguesas são bem integradas com o sistema público de saúde, e os alunos têm acesso a profissionais de saúde no período de funcionamento das instituições de ensino. Através da enfermeira da escola, os estudantes podem ter acesso a tratamentos dentários, fisioterapêuticos, psicológicos e outros. Em um estudo de 2019, 39% dos alunos relataram fazer uso do serviço de saúde escolar.
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