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Um projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados prevê o pagamento de um auxílio permanente de R$ 1.200 mensais para mães solteiras no Brasil. Dados divulgados em dezembro pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que, em 2021, 68% dos moradores de domicílios chefiados por mulheres sem cônjuge e com filhos menores de 14 anos estavam abaixo da linha da pobreza no país. O cenário nacional, portanto, atesta a urgência da busca de soluções para o problema da vulnerabilidade dessa população. Por outro lado, experiências internacionais e especialistas alertam que programas de transferência de renda que naturalizem e incentivem, mesmo que indiretamente, a monoparentalidade podem ter um resultado maléfico no médio e longo prazo, gerando ainda mais pobreza e vulnerabilidade.
O ex-diretor na Secretaria Nacional da Família, sociólogo e professor universitário Marcelo Couto Dias, acentua que o desafio das mulheres chefes de família é real e não deve ser desconsiderado, recordando que os mais vulneráveis a essa situação são as crianças. Ainda de acordo com o IBGE, quase metade (46,2%) das crianças menores de 14 anos viviam abaixo da linha da pobreza no Brasil em 2021. “Um dos problemas mais graves do Brasil talvez seja esse, que pode comprometer todo o futuro da pessoa, o desenvolvimento cognitivo e a aquisição de capital humano.”
Para ele, portanto, as políticas deveriam centrar foco nesse público vulnerável e não no primordial cuidador, que mais frequentemente no cenário atual é a mulher sem cônjuge. “Não precisa de muita ciência para saber que uma criança está mais protegida e tende a se desenvolver melhor na presença de dois adultos e não de um só. Quando você incentiva uma condição que não é a mais adequada para a criança, pode criar um estímulo. As relações conjugais são marcadas por crises, isso é fato desde sempre. A chance dessas crises terem como desfecho a ruptura do vínculo é maior quando tem incentivo público para a condição de monoparentalidade”, afirma Dias.
Levando em conta que o vínculo familiar é positivo para o desenvolvimento da criança e respeitando as liberdades individuais, o sociólogo defende a criação de incentivos para a manutenção de relações conjugais saudáveis. “Há países que investem em terapia de casal, por exemplo, para prevenir a ruptura dos vínculos. Não basta que exista renda, é importante incentivar uma parentalidade positiva, que está diretamente relacionada a desfechos positivos para a criança e o adolescente. Estudos mostram que a parentalidade adequada é fator de prevenção para a exposição a álcool e drogas, iniciação sexual precoce, evasão escolar e vários desfechos negativos. Mas são trabalhos de longo prazo”, ressalta.
Preceito constitucional em risco
O PL 2099/20 foi aprovado pela Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher, em 2021, e ainda precisa tramitar pelas comissões de Seguridade Social e Família; Finanças e Tributação; e Constituição e Justiça e de Cidadania. Caso aprovada, a matéria segue para a votação em plenário na Câmara e no Senado e, se for o caso, para a sanção presidencial. Como o benefício precisa ser previsto no Orçamento da União, são grandes as chances de a ideia não chegar a sair do papel.
A proposta é que mulheres provedoras de famílias monoparentais (aquelas chefiadas por apenas uma pessoa, sem cônjuge ou companheiro, e que tenha pelo menos um indivíduo menor de 18 anos na composição) recebam mensalmente o benefício. Os requisitos são ter mais de 18 anos, não ser titular de outro benefício previdenciário ou assistencial, não ter emprego formal ativo, e contar com renda familiar mensal per capita de até meio salário mínimo ou renda mensal total que não ultrapasse três salários mínimos.
Marcelo Couto Dias acentua que um dos riscos de propostas assim é naturalizar uma condição inadequada de não participação dos homens na criação dos filhos, “o que viola um preceito constitucional de direitos e deveres exercidos igualmente por homens e mulheres”. A Constituição Federal dispõe no artigo 226 que “os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher” e no 229 que “os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores”.
Ele explica que um programa de transferência de renda com foco na mãe solteira “acaba naturalizando uma condição que estatisticamente é a mais frequente, mas não é bom que seja assim”. Além da sobrecarga da mãe, a solução pode levar a um incentivo à informalidade e até a uma quebra das conquistas da mulher no mercado de trabalho.
Maior envolvimento masculino
Diretor executivo da Family Talks - Ong que busca impactar as famílias através do apoio público ao cuidado - e especialista em gestão de políticas públicas, Rodolfo Canônico concorda que “é peculiar” o enfoque do projeto de lei na situação da mulher e não na vulnerabilidade da criança. “Me parece que valeria discutir medidas mais universais que restritivas. Trata-se de uma preocupação legítima, mas o foco poderia ser a renda domiciliar, independentemente do arranjo familiar. Isso beneficiaria a mãe solteira também. Poderia haver um escalonamento desse benefício (quem tem rendimento maior recebe menos), além de alguma regra mais específica para um domicílio liderado por uma mulher, como uma melhoria, em função da necessidade”, opina.
Canônico completa que, embora não tenha evidências concretas para afirmar quais seriam os efeitos colaterais da legislação em debate (se incentivaria rupturas familiares ou não, por exemplo), há alguns dados já aceitos globalmente que podem lançar luzes sobre o tema. Um deles é a necessidade de maior envolvimento masculino no cuidado, fator que impacta diretamente na desigualdade, e que carece de um olhar mais profundo nas políticas públicas. “Existe uma necessidade de corresponsabilidade masculina e cabe ao estado promover ações nesse sentido. Hoje, no cenário global, o tempo que os homens dedicam ao cuidado é metade do dedicado pelas mulheres. É importante que isso seja algo compartilhado. Ou seja, pode haver medidas que levem ao contraditório, que reforcem um papel exclusivamente feminino”, ressalta.
Um documento da ONU Mulheres reforça a crítica, dizendo que as condições impostas pelo poder público para manter esse tipo de transferência de renda ativa pode “ter um impacto negativo nas perspectivas do mercado de trabalho feminino”. “Com a multiplicação de estudos qualitativos aprofundados, crescem as evidências de que a imposição de condições pode ser incômoda e punitiva para as mulheres”, afirma o relatório. Entre essas condicionalidades, que pressupõem uma “disponibilidade sem limites” da mãe, estariam frequência escolar e em consultas de saúde, além da utilização de serviços pré-natais pelas gestantes, exigidas por muitos países para a manutenção de benefícios.
Colapso da família nos EUA
No ano de 1965, o secretário adjunto do Trabalho dos EUA, Daniel Patrick Moynihan, apresentou um documento conhecido como Relatório Moynihan, com foco nas disparidades entre negros e brancos americanos. A descoberta foi que o pior desempenho econômico e social dos negros estava ligado ao colapso da estrutura familiar. As famílias, escreveu ele, “moldam o caráter e a habilidade de seus filhos. Em geral, a conduta adulta na sociedade é aprendida quando criança”.
O economista Thomas Sowell, cuja tese é que os programas assistenciais desenhados para beneficiar os mais pobres, especialmente os negros, geralmente têm o efeito inverso, recorda que, em 1960, antes da expansão do estado de bem-estar social, 22% das crianças negras dos EUA eram criadas com apenas um dos pais. Em 1985, esse número subiu para 67%. “Um estado de bem-estar amplamente expandido na década de 1960 destruiu a família negra, que sobreviveu a séculos de escravidão e a gerações de opressão racial”, defende.
Se o fenômeno da família monoparental disparou em meados da década de 1980, primeiramente entre os negros, posteriormente atingiu os brancos. O diretor do Programa de Política e Governança Educacional da Universidade de Harvard, Paul Peterson, explica que “alguns programas desencorajavam ativamente o casamento”, porque “a assistência social ia para as mães, desde que não houvesse nenhum homem morando na casa. O casamento com um homem empregado, mesmo que ganhasse o salário mínimo, colocava em risco o bem-estar econômico da mãe”.
Peterson estima que, em 1975, um chefe de família americano precisaria ganhar 20 mil dólares por ano (hoje o equivalente a 90 mil dólares) para superar os recursos que poderiam ser obtidos em programas sociais. Isso talvez ajude a explicar por que em 1964 somente 7% das crianças americanas nasciam fora do casamento, em comparação com os 40% atuais.
Para Peterson, entre as soluções para o problema estaria o governo recompensar “o casamento, especialmente para aqueles em risco de baixa renda”, redesenhando programas de transferência de renda “para que seus incentivos tenham efeitos positivos para casais casados, não apenas para pais solteiros”. “De modo mais geral, as políticas sociais da Europa voltadas para a criança, que reduzem o estresse sobre famílias de dupla renda com filhos, devem ser estudadas de perto por suas qualidades de melhoria do casamento”, sugere.
Um relatório da Heritage Foundation sobre os prejuízos dos programas de bem-estar às crianças aponta uma série de problemas oriundos da criação em um lar monoparental: “triplica o nível de problemas comportamentais e emocionais entre as crianças; quase triplica o nível de atividade sexual adolescente; duplica a probabilidade de uma jovem ter filhos fora do casamento; dobra a probabilidade de um menino se tornar uma ameaça para a sociedade, se envolver em atividades criminosas e acabar na prisão”. Além disso, a ausência de um dos pais na criação atrasa o desenvolvimento na primeira infância e impacta em menor desempenho educacional e em menor realização de trabalho.
Benefício como complemento ao trabalho
Um relatório da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), publicado em fevereiro de 2022, aponta que famílias monoparentais estão entre os domicílios mais vulneráveis, com uma taxa média de pobreza três vezes maior do que as famílias com dois ou mais adultos em casa. Com os pais solteiros enfrentando vulnerabilidades combinadas (como dificuldade de acesso ao mercado de trabalho, ausência de renda adequada, múltiplas responsabilidades e falta de apoio emocional e prático de um parceiro), as políticas públicas de apoio a famílias monoparentais buscam o equilíbrio trabalho-família e a garantia do bem-estar econômico dos membros. Isso é feito, geralmente, por meio de assistência social, benefícios econômicos universais ou direcionados, além de políticas de acesso ao mercado de trabalho.
Nesse ponto, as experiências internacionais apontam que a exigência de não ter trabalho formal para receber o benefício seria um aspecto falho da proposta brasileira. Segundo a OCDE, “a participação de pais solteiros na força de trabalho oferece a melhor proteção contra a pobreza para as crianças”. Ainda assim, mesmo que o pai ou mãe responsável pelos filhos trabalhe e receba pensão alimentícia, “transferências e benefícios muitas vezes são indispensáveis para pais solteiros”. “As prestações familiares destinadas a famílias monoparentais complementam os rendimentos do trabalho e, por conseguinte, colocam-nas acima do limiar da pobreza, embora este não seja necessariamente o caso das famílias monoparentais”, completa o documento.
Em dez países da OCDE (Dinamarca, Finlândia, França, Lituânia, Holanda, Nova Zelândia, Polônia, Eslováquia, Eslovênia e Suécia), as transferências de renda ultrapassam 30% da renda líquida de famílias monoparentais de baixa renda. Dezessete países oferecem auxílio para moradia alugada e em 11 há benefícios trabalhistas. “A maior parte do apoio financeiro é testada em termos de recursos e o apoio é reduzido com salários mais altos”, explica o relatório.
Na prática, nem sempre há nos países um benefício exclusivo para famílias monoparentais, mas um complemento aos benefícios universais, de acordo com as necessidades específicas. Na Itália e em Portugal, famílias conduzidas por apenas um dos pais não se beneficiam de alguma prestação especial, mas recebem montantes maiores de abono do que as famílias biparentais.
Além de transferência de renda, políticas que facilitem o acesso ao trabalho e à sua conciliação com o cuidado familiar (com acesso a atividades extracurriculares e cuidado após a escola, além de licenças especiais, jornadas de trabalho flexíveis ou em tempo parcial para pais solteiros) são outras experiências relatadas por países da UE para apoiar as famílias monoparentais.
Na Eslováquia, há um período prolongado de licença maternidade para mães solteiras, e na Grécia esse benefício atinge o dobro do tempo da licença parental comum. Na República Tcheca, também são oferecidos períodos mais longos para a assistência de longo prazo para crianças com menos de 10 anos, criadas em famílias monoparentais.