Durante a pandemia de Covid-19 foi estabelecido o auxílio emergencial como compensação pelas restrições à atividade produtiva impostas por prefeituras e estados na tentativa de conter a disseminação da doença. A lei 13.982/20 estabeleceu que mães solteiras receberiam R$ 1,2 mil: valor duplicado em relação aos demais cidadãos.
Ao longo da pandemia o valor foi reduzido à medida que as atividades econômicas se normalizavam, mas a regra de que mães solteiras recebessem uma cota maior permaneceu. A medida provisória 1.039/21 definia que pessoas solteiras sem filhos ganhariam R$ 150 por mês, casais com ou sem filhos receberiam R$ 250, enquanto as famílias formadas por mães solteiras e seus filhos receberiam R$ 375. Estes foram os valores das últimas parcelas pagas pelo Governo Federal.
Atualmente tramita na Câmara dos Deputados o projeto de lei 2099/20, de autoria do falecido deputado piauiense Assis de Carvalho. Pela proposta original, mulheres solteiras que tenham pelo menos um filho menor de 18 anos de idade devem receber uma renda mensal permanente de R$ 1,2 mil. O projeto exclui as trabalhadoras celetistas e as servidoras públicas (inclusive as temporárias e ocupantes de cargos comissionados), mas inclui mulheres que atuem como microempreendedoras individuais ou que tenham atividade remunerada informal.
A beneficiada deverá ter renda declarada de até meio salário mínimo por pessoa da família e não receber outros benefícios federais. Uma emenda apresentada pela deputada Erika Kokay determina a atualização anual do valor, corrigido pelo IPCA.
O salário mínimo nacional está fixado atualmente em R$ 1,1 mil. Segundo a agência de empregos Catho, profissionais como caixas de supermercado, balconistas, recepcionistas hospitalares, auxiliares de serviços gerais entre outros costumam receber aproximadamente um salário mínimo de remuneração. Entretanto, sobre os salários ainda incidem descontos previdenciários. Segundo levantamento realizado pela consultoria IDados, com base na Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (Pnad), 34,4% dos trabalhadores brasileiros recebem até R$ 1,1 mil por mês.
Deste modo o projeto de lei pode garantir que uma mãe solteira desempregada receba uma remuneração mensal maior que a de uma mãe solteira empregada com carteira assinada e também maior que a remuneração mensal de pelo menos 34,4% dos trabalhadores brasileiros.
O projeto divide as opiniões dos internautas que participaram da enquete aberta pelo site da Câmara dos Deputados. Dentre as 3.811 pessoas que haviam participado da votação até 06 de dezembro, uma maioria de 55% (2.072) discordava totalmente da proposta ao passo que 43% (1.623) dos participantes concordavam totalmente com o projeto. Apenas 13 participantes da enquete se declararam indecisos, enquanto 103 disseram concordar ou discordar parcialmente.
Famílias carentes não compostas por mães solteiras estariam excluídas
Em 2010, segundo dados do Censo Demográfico, o Brasil tinha 8 milhões e 88 mil famílias monoparentais femininas. Havia também 1 milhão e 165 mil famílias monoparentais masculinas lideradas por pais viúvos, pais de crianças que foram rejeitadas pelas mães, pais de filhos que tiveram a guarda materna afastada pela Justiça após comprovação de abusos por parte da genitora.
Um exemplo é o gaúcho Leonidas Thönke, que detém a guarda legal de sua filha desde o início de 2021. Ele está desempregado desde novembro de 2019. Trabalha como motorista autônomo e ganha uma renda líquida de aproximadamente 1 salário mínimo, descontados os gastos com combustível e com parcelas do próprio instrumento de trabalho. Thönke conta que as dificuldades financeiras que enfrenta nos últimos meses têm feito com que o financiamento do carro com o qual busca o sustento de sua família esteja em atraso. Além do valor que obtém dirigindo, o pai recebe pensão alimentícia de cerca de 20% de um salário mínimo, paga pela mãe da criança.
Ele diz que recebeu o auxílio emergencial e que esta renda foi de grande importância, mas que desde então não recebe nenhum outro suporte governamental: “Nem tenho informação sobre o que posso receber, já procurei, mas nunca consegui nenhum esclarecimento do que eu preciso fazer para ganhar esses auxílios que vejo que várias mães recebem”.
A história que Thönke vive já foi enfrentada por um programador e desenvolvedor de sites, morador de São Paulo, que pediu para não ser identificado neste texto. Ele contou que a sua ex-companheira o abandonou há 23 anos com o filho ainda bebê e foi morar com um amante. Na maior parte destes 23 anos a guarda esteve exclusivamente com o pai, que enfrentou dificuldades para encontrar qualquer forma de auxílio.
“Hoje eu estou muito bem, mas quando ele era bebê passei muito sufoco”, conta. “Se eu te contar o tanto de coisas que eram para mãe solteira e nunca para pai solteiro, desde filas de banco até trocador de shopping, é tenso”. Em termos de acesso a benefícios estatais, o homem relatou que não conseguiu inscrever seu filho em creches públicas, ainda na primeira infância do menino: “Tive ajuda de familiares que ficavam com o garoto para eu ir trabalhar, porque a creche exigia o nome da mãe e nunca do pai. Eu não conseguia nem fazer o cadastro”.
Outro perfil familiar que seria excluído do novo benefício é composto por casais desempregados com filhos. Segundo o Censo 2010, 1 milhão e 500 mil famílias eram formadas por casais com filhos menores de dez anos ou não economicamente ativos em que nenhum dos pais possuía rendimento (exceto benefícios).
É este o caso do casal Edna e Alain Prata. Eles vivem na cidade de Lagarto, no Sergipe, e ambos estão desempregados. Vivem com quatro filhos, o menor com dez meses de idade e o maior com 12 anos. A esposa do casal conta que o marido está sem emprego desde 2012 e que ela própria não trabalha desde 2009. No momento recebem apenas o Auxílio Brasil e a última parcela paga foi de R$ 327 por mês. Edna conta que houve uma pequena redução em relação ao mês anterior.
Informada sobre as regras distintas estabelecidas pelo novo PL 2099/20 para mulheres casadas e solteiras, Edna respondeu que “acredita que deveria ser sim para todas, porque está todo mundo no mesmo barco”.
"Problemas orçamentários graves"
O projeto de lei tramita em caráter conclusivo. Isto significa que ele não deve ser votado por todos os deputados, mas apenas pelos membros de algumas comissões parlamentares. A proposta já foi aprovada pela Comissão dos Direitos da Mulher (CMULHER) e ainda deverá passar pelas comissões de Seguridade Social e Família (CSSF), de Finanças e Tributação (CFT) e de Constituição, Justiça e de Cidadania (CCJ). Depois o projeto precisa passar pelos crivos do Senado Federal e da Presidência da República.
A reportagem da Gazeta do Povo entrou em contato com deputados que atuam em alguma destas comissões e enviou questões sobre o impacto orçamentário da proposta, sobre a possibilidade de o projeto servir como estímulo para que mulheres abandonem seus empregos (visto que poderiam receber uma remuneração maior se estivessem desempregadas) e sobre a exclusão de pais solteiros e casais com filhos.
Os deputados Erika Kokay (PT-DF), Chris Tonietto (PSL-RJ) e Luiz Antonio Teixeira Jr. (PP-RJ) não responderam aos contatos. As assessorias de imprensa de Sâmia Bomfim (PSOL-SP), Alexis Fonteyne (NOVO-SP) e Adriana Ventura (NOVO-SP) informaram que os deputados não iriam responder.
Já os deputados Delegado Antonio Furtado (PSL-RJ) e Gilson Marques (NOVO-SC) aceitaram responder aos questionamentos e se posicionaram de maneira oposta.
Para Gilson, que atua na CCJ, “O projeto é péssimo por gerar incentivos que favorecem a informalidade e o desemprego, além de outros como a não-notificação de cônjuge para preservação do benefício, a estagnação financeira da própria privilegiada e o aumento dos gastos públicos, gerando mais impostos. É uma bola de neve prejudicial a todos”.
Ele afirma que a proposta tem problemas orçamentários graves e não considerados na justificativa apresentada pelo autor do projeto: “Se 8 milhões de mães solteiras recebessem o benefício, estaríamos falando de um rombo fiscal de quase 10 bilhões de reais. O foco do Brasil deveria ser a redução de gastos e de impostos para propiciar a retomada econômica, não o contrário”, argumentou.
O deputado também criticou o viés identitário: “Um recorte é feito e deixa-se de lado outros grupos igualmente necessitados. Por que somente famílias criadas por mães solteiras? Por que não famílias criadas por avós solteiras ou viúvas? Ou avôs? Ou ainda por pais solteiros? Precisamos mais coerência neste debate.”
“Acreditamos que este projeto é problemático no sentido ético, orçamentário, econômico e social. Dificilmente qualquer ajuste em seu texto o tornará positivo para o Brasil”, resumiu.
Auxílio Brasil tem critérios mais rígidos
Sobre se a determinação de uma renda mensal maior que um salário mínimo poderia estimular a fuga por parte de mulheres pobres do mercado de trabalho formal, Antonio Furtado respondeu que “Dar condições emergenciais para as mulheres sustentarem seus filhos foi o primeiro propósito”. Acrescentou que “A intenção não é fornecer uma pensão vitalícia e nem um impedimento aos casamentos, apenas atuar como uma ajuda necessária e temporária.”
Sobre os critérios de inclusão e exclusão da proposta, Furtado argumentou que as pessoas excluídas do auxílio permanente para mães solteiras têm a opção de “outros benefícios do governo que podem ajudar a suprir as necessidades das famílias em situações adversas, como o Auxílio Brasil, por exemplo.”
Os benefícios oferecidos pelo Auxílio Brasil são menores e os critérios para inclusão são mais rígidos do que aqueles previstos no PL 2099/20.
O auxílio permanente para mães solteiras garantiria uma renda de R$ 1,2 mil mensais para as mulheres solteiras com filhos. Já o Auxílio Brasil, que pode ser pago a pais solteiros e casais desempregados, oferece um valor médio de R$ 217,18. Enquanto a renda máxima para ter direito a receber o auxílio permanente para mãe solteira seria hoje de R$ 550 per capita, no caso do Auxílio Brasil a renda de corte cai para R$ 200 per capita.
Furtado alegou prevalências estatísticas para justificar as regras diferenciadas baseadas em sexo e em status matrimonial: “Muitas são as pessoas que necessitam de auxílios para assegurar a criação dos filhos. Entendemos esse problema, mas, neste momento, a proposta apresentada foi para beneficiar a maioria das pessoas que criam os filhos sozinhas: mulheres de família monoparental.”
Possibilidade de benefícios duplicados
Com a substituição do Bolsa Família pelo Auxílio Brasil, é incerto se a mulher beneficiada pelo auxílio permanente para mães solteiras poderá receber também o valor correspondente ao Auxílio Brasil.
O texto original do projeto definia que a mulher beneficiada não poderia “ser titular de benefício previdenciário ou assistencial ou beneficiária do seguro-desemprego ou de programa de transferência de renda federal”, mas estabelecia uma ressalva para o Bolsa Família.
Durante a pandemia, os beneficiários do Bolsa Família contemplados com o auxílio emergencial receberam ambos os benefícios. Uma vez que o Bolsa Família foi substituído pelo Auxílio Brasil, não há definição no texto atual sobre a possibilidade de percepção conjunta de ambas as fontes, caso o auxílio permanente para mães solteiras seja aprovado.