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Ganho de função?

Projeto Veritas acusa Pfizer de criar mutações no vírus da Covid-19 para vender vacinas. Entenda

Pfizer
Prédio da Pfizer na Grécia, inaugurado em 2021. A empresa, que teve suposto funcionário pego com câmera escondida, nega que faça experimentos de "ganho de função" e "evolução direcionada" no vírus da Covid. (Foto: Bigstock/vverve)

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Uma organização sem fins lucrativos de jornalismo investigativo chamada Projeto Veritas armou um falso encontro romântico para, com uma câmera escondida, tirar informações de um possível funcionário da farmacêutica Pfizer, fabricante do mais vendido imunizante baseado em nanopartículas de mRNA contra Covid-19. Jordon Trishton Walker, que o projeto descreveu como diretor de operações estratégicas em pesquisa e desenvolvimento da Pfizer, que também seria responsável pelo planejamento científico da tecnologia de mRNA, disse, sem saber que estava sendo gravado, que a farmacêutica faz experimentos de alteração do material genético do coronavírus para produzir vacinas. Vídeos das câmeras escondidas, com edições, foram publicados na quarta e quinta da semana passada (25 e 26). Há elementos incertos na história.

“Sabe quando o vírus fica passando por mutação?”, disse Jordon ao portador da câmera escondida. “Uma das coisas que estamos explorando é (...) causar as mutações por nós mesmos, de modo que possamos nos concentrar em criar, desenvolver de forma preventiva novas vacinas”. Quando o entrevistador perguntou diretamente se a Pfizer pretende causar mutações no vírus da Covid, Jordon respondeu “Isso não é o que dizemos ao público, não. Foi um pensamento que ocorreu em uma reunião e nós dissemos ‘por que não?’”

Ele também falou que a Covid é uma mina de ouro “para nós” e que as mutações seriam para uma “evolução direcionada” do vírus, o que foi interpretado como sinônimo de pesquisa de “ganho de função” por comentaristas, inclusive o âncora da Fox News, Tucker Carlson. Jordon também diz, no vídeo, que os experimentos seriam feitos com macacos, e que suspeita que pesquisa similar foi “o modo como o vírus começou em Wuhan”, uma referência à hipótese da origem laboratorial.

Quando a câmera escondida foi revelada para Jordon Walker pelo diretor executivo do Veritas, James O’Keefe, que chegou após a saída do repórter anônimo que atuou como isca em uma pizzaria do Brooklyn (Nova York), o suposto funcionário da Pfizer reagiu de modo histérico, tomando um tablet das mãos do repórter e tentando destrui-lo. “Sou literalmente um mentiroso. Estava tentando impressionar uma pessoa num encontro mentindo”, declarou Jordon. Houve empurrões, mas James, ao contrário do entrevistado, manteve a compostura.

Quem é o “funcionário da Pfizer”?

A primeira dificuldade no caso é a confirmação da identidade do entrevistado. Não há resultado para seu nome no site da Pfizer. As redes sociais se polarizaram entre pessoas como o colunista da Forbes Bruce Y. Lee, duvidando das credenciais de Jordon, e apoiadores do Projeto Veritas que apontam para páginas da internet arquivadas e dizem que houve uma queima de arquivo.

James O’Keefe publicou no Twitter fotos e capturas de tela de computador do que ele chamou de “documentos da Pfizer” mencionando a hierarquia de Jordon (ele estaria três posições abaixo do diretor executivo da farmacêutica, Albert Bourla). De acordo com as imagens exibidas por O’Keefe, Jordon teria se graduado em biologia em Yale no ano de 2013, e teria estudado medicina na Universidade do Texas. Sua posição na Pfizer, segundo as imagens, está descrita como no vídeo do Veritas. Um site de arquivo mostra uma busca do navegador Brave do perfil de Jordon no LinkedIn. O perfil não existe mais. O perfil, ao ter sido arquivado, já não existia, mas o arquivo anterior, da busca, traz na pré-visualização a mesma descrição do Veritas e a afiliação à Pfizer.

Em resposta à repercussão do vídeo, a Pfizer publicou uma nota pública no dia 27. A empresa nega que tenha feito pesquisa de ganho de função ou evolução direcionada, explica que tipo de trabalho faz com a Covid-19, mas não menciona diretamente o caso, e não confirma nem nega se Jordon Walker é um funcionário. A agência de checagem Snopes fez perguntas específicas sobre o caso, mas a farmacêutica não respondeu.

Internautas acharam uma pessoa que parece ser Jordon em uma foto de formatura de 2018 da mesma faculdade de medicina do Texas mencionada nas capturas de tela de O’Keefe. Uma página do mesmo ano da faculdade menciona um “Jordan Trishton Lee Walker”, com grafia diferente no primeiro nome. Adicionalmente, o Projeto Veritas mostrou seis artigos científicos que teriam a coautoria de Jordon Walker. Na terça (31), para fazer pressão, o projeto levou à porta da sede da Pfizer em Manhattan um caminhão com telões eletrônicos mostrando cenas dos vídeos e o rosto do entrevistado.

Em suma, conteúdo que facilite a identificação foi apagado da internet desde a publicação dos vídeos, mas há indícios que Jordon é uma pessoa real, que estudou medicina e que pode ter ligação com a Pfizer, apesar da falta de confirmação da empresa. Há ao menos um texto de blog de maio de 2020, no site da empresa Boston Consulting Group, com coautoria do médico e uma foto, e uma página arquivada de um site de recrutamento que parece preservar os detalhes do perfil deletado no LinkedIn. Porém, mesmo que a identidade de Jordon Walker seja confirmada, é prematuro considerar que as declarações captadas em vídeo pelo Projeto Veritas sejam integralmente ou mesmo parcialmente verdadeiras.

A Pfizer faz ganho de função? O que é isso?

Nas sabatinas feitas por congressistas americanos do cientista octagenário Anthony Fauci, que chefiou a resposta à pandemia tanto sob o governo Trump quanto sob Biden e se aposentou em dezembro, houve uma disputa sobre o significado do termo “ganho de função” nas pesquisas de coronavírus. Há indícios que Fauci tenha sido uma das autoridades que liberaram verbas para pesquisas feitas na China que alteraram a infecciosidade de vírus da família do que causa a Covid. Uma razão para isso é que, em norma editada no governo Obama que estabelecia uma moratória no financiamento desse tipo de pesquisa, uma brecha é que autoridades na posição de Fauci poderiam driblar a pausa.

Função biológica é aquilo que uma estrutura viva faz de relevante para o organismo. A função dos rins, por exemplo, é filtrar o sangue. Ao pé da letra, então, fazer uma pesquisa que dá ganho de função a um vírus ou bactéria é alterar, geralmente pela manipulação do material genético, a sua capacidade de infectar e se multiplicar. Sabe-se que em Wuhan havia pesquisa que testava a capacidade de coronavírus de infectar os pulmões de ratos geneticamente modificados para serem mais similares aos humanos.

Já “evolução direcionada” é aplicar diferentes condições ambientais para que algumas variantes prosperem e outras pereçam. Há 35 anos, o laboratório de Richard Lenski na Universidade Estadual de Michigan faz evolução direcionada na bactéria Escherichia coli, presente no intestino humano e geralmente benigna. No entanto, a pesquisa nada tem a ver com doença em humanos: foi para observar grandes mudanças na bactéria ao longo do tempo, que se adaptou a diferentes condições do meio de cultura, como fontes diferentes de nutrientes.

Ganho de função e evolução direcionada, portanto, são diferentes, mas relacionados: é possível direcionar evolutivamente um vírus a adquirir uma nova função como infectar humanos.

Os representantes da Pfizer no Brasil responderam às perguntas da Gazeta do Povo sobre ganho de função, evolução direcionada e o caso Jordon apontando para a mesma nota do escritório internacional, também sem entrar nos detalhes específicos. Na nota, a farmacêutica diz que “vírus podem passar por engenharia para permitir a avaliação de atividade antiviral nas células” e que “experimentos de seleção de resistência in vitro [em tubo de ensaio] são conduzidos em células incubadas” com o coronavírus da Covid e uma droga antiviral presente no medicamento Paxlovid “no nosso laboratório com nível de biossegurança 3”. Essa descrição, que veio depois de uma negação da empresa sobre conduzir ganho de função e evolução direcionada, atraiu mais disputas semânticas sobre esses termos.

Sobre o uso de macacos, uma notícia inusitada de janeiro de 2022, veiculada no New York Times e na NPR, relatou que um caminhão carregando 100 macacos colidiu com um caminhão de lixo no estado da Pensilvânia. Os animais fugiram, mas foram recapturados. O NYT publicou que esse tipo de macaco “está com demanda alta para a pesquisa em vacina do coronavírus”. Os Centros de Controle e Prevenção de Doenças (CDC) participaram da recaptura e avisaram a população para não entrar em contato com os animais, pois poderiam transmitir doenças. Michelle Fallon, uma cidadã que parou para ajudar o motorista do caminhão, entrou em contato com a respiração de um dos macacos e depois teve conjuntivite e tosse. Os animais tinham origem nas Ilhas Maurício e estavam sendo levados para um centro aprovado pelos CDC. A cobertura não ligou o caso à Pfizer, mas o acidente aconteceu a duas horas de viagem de um centro de pesquisa da farmacêutica.

O que é o Projeto Veritas

A organização foi fundada por James O’Keefe em 2011 e se especializou em extrair, com agentes disfarçados portando câmeras e microfones escondidos, informações delicadas que não seriam facilmente obtidas de outra forma. O projeto acumulou críticos em seus 11 anos de existência. Em setembro de 2022, um júri americano concedeu US$ 120 mil (R$ 607 mil) em indenização para empresas de consultoria ligadas ao Partido Democrata que foram alvo das operações do Veritas. Uma das repórteres, Allison Maass, fez gravações em 2016 após obter uma posição de estagiária sob um nome e um histórico falsos. Ela revelou planos de pessoas das firmas de incitar violência em manifestações a favor do então candidato à presidência Donald Trump. Uma das pessoas acusadas pela reportagem, Robert Creamer, nega. O’Keefe prometeu apelar da decisão.

O New York Times, em agosto do ano passado, entrou em contato com ex-funcionários do Projeto Veritas que abriram dois processos contra a empresa. O documentos dos processos alegam que o projeto é um ambiente de “bebida, sexo e festas”, revelam os nomes de mais de dez funcionários e agentes das operações secretas. Um dos ex-funcionários é Antonietta Zappier, que ficou descontente com os termos do encerramento de sua relação com o Veritas. O’Keefe diz que a ex-funcionária inventou “uma gama de falsidades” e respondeu com um contraprocesso acusando-a de violar os termos de um contrato e a seu marido de intimidar seus funcionários — também está processando o New York Times. O próprio advogado à frente dos processos contra O’Keefe, Arthur Z. Schwartz, já trabalhou para um grupo que se dissolveu após ser constrangido por uma operação do projeto.

Procuradores federais acusam a organização de ter participado do furto de um diário pertencente à Ashley Biden, filha do presidente Joe Biden — a acusada responde que não sabia do furto. Os processos mencionam que O’Keefe busca moças atraentes, mas não está claro que isso seja algo mais que escolha profissional: o próprio Jordon Walker foi atraído para um encontro com um de seus agentes — a atratividade é uma das armas usadas pelo Projeto Veritas.

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