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Por meio de um decreto, um presidente poderia reclamar para si o dever constitucional de proteger a vida desde a concepção.
Por meio de um decreto, um presidente poderia reclamar para si o dever constitucional de proteger a vida desde a concepção.| Foto: Pixabay

Desde 1973, mais de 60 milhões de crianças norte-americanas foram mortas pela violência do aborto. O horror de aproximadamente 2 mil assassinatos diários ocorre por conta dos erros constitucionais da Suprema Corte no caso Roe vs. Wade. O tribunal cometeu dois erros fundamentais no caso. Primeiro, ao se recusar a ler as garantias de proteção igual e do devido processo legal da Décima Quarta Emenda como características que se aplicam aos fetos. Depois, ao concluir equivocadamente que “o direito à privacidade se aplica ao aborto”.

Felizmente, como têm observado estudiosos como o professor Robert P. George e o professor Mark Tushnet, o Judiciário não é o único intérprete da Constituição. Ao contrário, o Legislativo e Executivo também têm responsabilidade quanto a isso. Desde o caso Planned Parenthood vs. Casey, os poderes Judiciário e Legislativo, assim como os estados, estão envolvidos numa guerra de trincheiras quanto à lógica e abrangência do erro secundário do caso Roe. A Proposta Lincoln ousa ao sugerir uma forma de consertar a ordem constitucional americana chamando a atenção do Executivo para a tarefa de corrigir o primeiro e mais básico erro do caso Roe.

A Constituição dá ao presidente o “poder executivo” de agir decisivamente dentro dos domínios do Poder Executivo, incluindo seus ministérios e agências. O Artigo II, Seção 1 da Constituição dos Estados Unidos exige que o presidente jure “preservar, proteger e defender a Constituição”. Além disso, o Artigo II, Seção 3 urge o presidente a “cuidar para que as Leis sejam devidamente executadas”. Essa determinação impõe um dever duplo: primeiro, a responsabilidade independente de interpretar a Constituição e as leis dos Estados Unidos, e depois executá-las”. O papel interpretativo do presidente está implícito e antecede o poder de execução.

Baseando-se no juramento constitucional e na autoridade interpretativa, o presidente deveria cumprir seu dever de executar fielmente as garantias da Décima Quarta Emenda da Constituição assinando um decreto reconhecendo fetos como “pessoas” constitucionais com direito ao devido processo e proteção igual das leis. Tal decreto criaria um precedente que todos os presidentes pró-vida futuros seguiriam e no qual se baseariam.

O reconhecimento do feto como pessoa pela 14ª emenda

A Décima Quarta Emenda foi ratificada para garantir que nenhum ser humano tivesse negados seus direitos fundamentais garantidos pela Constituição. A Seção 1 usa dois termos — “cidadãos” e “pessoas” — que pressupõem direitos distintos. A emenda começa garantindo que “todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãs dos Estados Unidos e do estado onde reside”. Somente pessoas nascidas ou naturalizadas dentro da jurisdição dos Estados Unidos têm “privilégios e imunidades dadas aos cidadãos dos Estados Unidos”. Nas a emenda continua e protege outras “pessoas” — independentemente da cidadania —, sem restringir essas proteções às “pessoas natas”. Ela determina que nenhum estado possa “privar qualquer pessoa da vida, liberdade e propriedade sem o devido processo legal” ou negar a qualquer pessoa “as proteções iguais das leis”.

A ciência diz claramente que os fetos pertencem à espécie humana assim que são concebidos, ou assim que ocorre o que a dra. Maureen Condic, do Conselho Científico Nacional dos EUA, descreve precisamente como “a fusão entre óvulo e espermatozoide”. Na época da adoção da Décima Quarta Emenda, o termo “pessoa” era aplicado a todos os membros da família humana, incluindo os fetos. Os dicionários de uso comum e jurídico da época tratavam a palavra “pessoa” como algo indissociável de “ser humano”. A edição de 1864 do Dicionário Noah Webster define o termo “pessoa” como “relacionada sobretudo a um ser humano vivo; homem, mulher ou criança”. O New Law Dictionary and Glossary definia “pessoa” como “ser humano sujeito a direitos e diferente de uma coisa”. Da mesma forma, para William Blackstone não havia diferença entre o ser humano biológico e a pessoa enquanto ente legal.

O aborto dentro da tradição anglo-americana da lei comum foi proibido assim que a vida pré-natal podia ser identificada. Quando a Décima Quarta Emenda foi ratificada, em 1868, os estados reconheciam os fetos como “pessoas”. Vinte e três estados e seis territórios se referiam aos fetos humanos como “crianças” em seus estatutos antiaborto. Vinte e oito citavam o aborto como “crimes contra a pessoa” ou como uma classificação funcionalmente semelhante. Para dar um exemplo impressionante, a mesma legislatura de Ohio que ratificou a Décima Quarta Emenda em janeiro de 1867 aprovou uma lei criminalizando o aborto em todos os estágios da gestação, dizendo que aborto “em qualquer estágio da existência” é “infanticídio”.

“A criança no útero”, observava o professor Charles Rice em seu amicus curiae de 1971 no caso Roe, “é uma pessoa que se enquadra na definição da Cláusula de Proteção da Décima Quarta Emenda”. Apesar de o tribunal naquela época ter ignorado a realidade básica, desde então ele tem aceitado a lógica e o precedente da proteção igual para várias classes de pessoas. Mesmo quando os parâmetros da proteção igual e do devido processo precisam ser adaptados, como no caso dos direitos mais circunscritos conferidos a crianças e imigrantes, a essência dessas garantias é reconhecida de alguma forma por todos os membros da família humana dentro das fronteiras dos Estados Unidos — exceto para seus membros mais jovens.

Um decreto reconhecendo os direitos constitucionais dos fetos, portanto, teria base legal.

O dever de independência do presidente

No caso Roe, a Suprema Corte descobriu um “direito” constitucional ao aborto que não existe no texto e concluiu que “a palavra ‘pessoa’, como usada na Décima Quarta Emenda, não inclui fetos”. Ao fazer isso, o tribunal revogou leis protegendo a vida humana em todos os cinquenta estados e anulou a vontade da maioria democrática que reconhecia as crianças não-nascidas como dignas de proteção legal.

Como o presidente poderia assinar um decreto contrário à interpretação da Suprema Corte? Na verdade, essa medida teria precedentes sólidos. Vários dos grandes presidentes norte-americanos – incluindo Thomas Jefferson, Andrew Jackson e Abraham Lincoln — fizeram uso do juramento presidencial para evocar o dever de independência do Executivo de interpretar e executar a Constituição, mesmo diante de decisões judiciais contrárias.

Apesar de várias decisões judiciais sustentando as Leis de Sedição e Estrangeiros, o presidente Jefferson exerceu sua interpretação constitucional para “afirmar que a sedição não pode ser lei, porque é contrária à Constituição; e devo tratá-la como uma nulidade sempre que ela atrapalhar minhas funções”. Jefferson escreveu que tratar os “juízes como árbitros finais de todas as questões constitucionais” era “uma doutrina perigosa que pode nos sujeitar ao despotismo de uma oligarquia”. Em vez disso, Jefferson acreditava que “cada um dos três poderes tem o mesmo direito de decidir por si qual seu dever sob a Constituição, sem se importar com o que outros talvez tenham decididos sozinhos sob questão semelhante”.

O presidente Jackson adotou a mesma postura ao vetar a criação do Second National Bank em 1832. Ele argumentou que a Suprema Corte “não deveria controlar as autoridades do governo”. Em vez disso, o “Congresso, o Executivo e o Judiciário devem, cada um por si, ser orientados por sua própria opinião da Constituição. Toda autoridade pública que jura seguir a Constituição jura também que a seguira de acordo com seu entendimento, não de acordo com o entendimento dos outros”. Em vez de aceitar cegamente qualquer decisão do Congresso ou da Suprema Corte, Jackson achava que o Executivo, munido de suas responsabilidades constitucionais, deveria “ceder apenas à influência da sua razão”.

Talvez o exemplo mais conhecido disso tudo seja a reação de Lincoln no caso Dred Scott vs. Sandford. Como candidato ao Senado, Lincoln reconhecia que a decisão da Suprema Corte tinha de ser aceita entre as partes, mas negava que a opinião tivesse o mesmo efeito. Uma vez eleito presidente, Lincoln reafirmou seu compromisso de resistir a Dred Scott em seu primeiro pronunciamento, alertando que:

“Se as políticas de governo quanto a questões essenciais que afetarão todas as pessoas serão chanceladas pela Suprema Corte (...) o povo deixará de mandar em si mesmo, praticamente colocando as funções de governo nas mãos daquele eminente tribunal”.

Em outro contexto, o procurador-geral de Lincoln escreveu um longo parecer dizendo que “o presidente e o Judiciário são departamentos coordenados do governo, e um não se subordina ao outro”. Assim, o Executivo deve poder “agir de acordo com os poderes que tem, sem que haja um poder maior para revisar ou reverter suas ações”. A administração Lincoln pôs essa teoria em prática, ignorando o argumento central de Dred Scott contra a cidadania dos negros e emitindo passaportes e patentes para os norte-americanos negros — atos dentro de suas atribuições como chefe do Executivo. Lincoln também exerceu sua autoridade sobre os territórios federais e o Distrito de Columbia sancionando leis que aboliam a escravidão nessas jurisdições, apesar de Dred Scott dizer que os territórios tinham de constitucionalmente permitir a escravidão. A Proclamação de Emancipação de Lincoln, assinada em 1º de janeiro de 1863, em meio à Guerra Civil, declarava “que todas as pessoas presas como escravas” nos conflagrados estados sulistas “devem, daqui por diante, ser libertadas”.

Esses grandes presidentes norte-americanos são um exemplo para os próximos presidentes, independentemente da posição da Suprema Corte no caso Roe. O presidente pode exercer sua autoridade constitucional independente para interpretar as garantias da Décima Quarta Emenda quanto ao devido processo e à proteção igual, estendendo-as a todos os seres humanos – fetos ou nascidos.

Um decreto da vida humana

A base para que os exemplos de Jefferson, Jackson e Lincoln sejam copiados já está assentada. O presidente Ronald Reagan reconhecia a responsabilidade dos poderes coordenados de proteger as pessoas não-nascidas, encorajando o Congresso a aprovar uma legislação “para proteger a vida de todas as pessoas antes do nascimento”, apesar da determinação da Suprema Corte quanto ao caso Roe. Reagan, portanto, se pôs a “proclamar e declarar o caráter inegavelmente humano de todo norte-americano, desde a concepção até a morte natural”. Evocando seu dever constitucional solene, o presidente Reagan prometeu “cuidar para que a Constituição e as leis norte-americanas sejam fielmente executadas para a proteção das crianças norte-americanas não-nascidas”.

Um decreto presidencial poderia fazer com que a proclamação anunciada pelo presidente Reagan há três décadas tivesse efeito jurídico. Tal decreto constituiria uma interpretação convincente da Constituição dentro do poder Executivo, incluindo seus ministérios e agências. O presidente poderia mandar que os ministérios e agências investigassem seus códigos e programas para garantir que eles estivessem alinhados ao decreto presidencial e que eles dessem início a ações legislativas para que seus códigos e programas estivessem de acordo com a interpretação presidencial, se necessário.

Eis aqui alguns exemplos concretos de como um decreto poderia ser implementado. O presidente poderia ordenar:

  • Que o Departamento de Justiça se opusesse a medidas judiciais que pretendem restringir ou interferir na capacidade dos legisladores federais e estaduais de criar medidas de proteção da vida humana;
  • Que o Departamento de Justiça e sua divisão de Direitos Civis investigassem leis estaduais ou municipais que privam as pessoas não-nascidas do devido processo legal ou das proteções iguais garantidas por lei;
  • Que o Departamento do Comércio e o Census Bureau quantificassem as crianças nascidas e ainda por nascer no censo, o que está de acordo com a Seção 2 da Décima Quarta Emenda, que determina que o censo “conte todas as pessoas em cada estado”;
  • Que o Departamento de Defesa criasse espaços nacionais de proteção em todas as bases militares e de recrutamento para gestantes que enfrentam violência e coerção, e para dar ajuda emergencial àquelas que buscam alternativas ao aborto, sobretudo em jurisdições hostis à proteção da vida humana;
  • Que o Departamento de Estado garantisse que as crianças não-nascidas não tivessem negadas proteções iguais em instrumentos multilaterais nas Nações Unidas e outros órgãos internacionais, seja por meio de políticas públicas ou por subsídios pagos pelos contribuintes norte-americanos;
  • Que o Departamento de Saúde condicionasse o financiamento de serviços de saúde ao fim do financiamento estadual a empresas dedicadas ao aborto, redirecionando esses fundos para centros gestacionais de reafirmação da vida e alternativas de ajuda direta;
  • Que a Food and Drug Administration suspendesse a aprovação de remédios abortivos como o RU-486 (Mifeprex) e drogas genéricas, e tomasse medidas afirmativas para negar a importação de abortivos de fora das fronteiras dos Estados Unidos;
  • Que o Departamento de Educação retirasse financiamento federal de escolas que apoiam o aborto ou o uso de abortivos, e promovesse programas educativos que ensinassem o fato biológico de que a vida humana começa com a fusão entre o óvulo e o espermatozoide.

Mas este é só o começo: um decreto assim serve de guia para que o governo federal proteja crianças não-nascidas em todos os estados. Os norte-americanos não podem aceitar a indiferença atual quanto aos direitos das crianças, seja por receio da elite política ou pela presunção dos magistrados. Um decreto poderia ser o ápice de ações presidenciais anteriores que garantissem as proteções constitucionais a todos os seres humanos, repetindo o que fez o presidente Lincoln diante de Dred Scott.

Sem dúvida um decreto assim será a maior realização do movimento pró-vida em décadas, apresentando a lógica da abolição para o corpo político norte-americano. E, na verdade, tal decreto reforçaria o direito mais precioso e inalienável contido na Declaração de Independência: o direito à vida.

Catherine Glenn Foster é presidente e CEO da organização pró-vida Americans United for Life

Dr. Chad Pecknold é professor de teologia e membro do Institute of Human Ecology da Catholic University of America em Washington, D.C.

Josh Craddock é advogado e ex-editor-chefe do Harvard Journal of Law & Public Policy.

© 2020 Public Discourse. Publicado com permissão. Original em inglês
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