A destruição de estátuas é algo comum nos movimentos revolucionários. Foi assim em 1991, quando a União Soviética se desfez e as estátuas de Lênin e seus comparsas, caídas e despedaçadas, viraram símbolos de um futuro que prometia liberdade. A mesma coisa aconteceu quando da queda do ditador iraquiano Saddam Hussein, em 2003. E, recentemente, houve todo um movimento nos Estados Unidos para conseguir, institucional e democraticamente, a derrubada de estátuas e outros monumentos ligados à Confederação – o lado escravagista da Guerra da Secessão.
No fim de semana, Londres foi palco de protestos que usam a morte de George Floyd em Minneapolis para fazer a revolução. Sob as bandeiras dos movimentos Black Lives Matter, Antifa e até Extinction Rebellion, os manifestantes foram fiéis à tradição iconoclasta e destruíram ou vandalizaram estátuas de “homens brancos opressores” em todo o Reino Unido. O problema é que entre Lênin e Churchill há uma enorme diferença que a causa do momento (o racismo, a brutalidade policial, o capitalismo, as mudanças climáticas, etc.) convenientemente ignora.
Não se trata apenas de saciar um desejo assim meio felino de ver as coisas irem ao chão. Por trás da destruição das estátuas há um desejo muito humano, embora não exatamente racional e muito menos virtuoso, de reescrever o passado de modo que ele se encaixe numa narrativa presente que transformará o mundo para melhor. Trata-se de um revisionismo cheio de boas intenções e consciência social, como sempre, mas intelectualmente desonesto, como sempre.
Esse revisionismo, cujas bases são forjadas pela academia, acredita que a única história válida é a história dos oprimidos e que todos os homens e mulheres que nos trouxeram até este mundo onde predominam os valores democráticos só foram imortalizados em praça pública porque, em algum momento de suas vidas, oprimiram alguém. E por isso eles precisam ser esquecidos e substituídos por vultos com biografias supostamente imaculadas.
O revisionismo dos antifas também se alimenta de uma visão de mundo extremamente narcisista, incapaz de admirar os feitos das gerações passadas, e niilista de deixar um Schopenhauer nauseado, incapaz de perceber o quanto o mundo de 2020 é mais rico, mais justo e mais livre do que jamais foi. E que continuará sendo assim. A não ser claro, que as estátuas de Churchill venham a ser substituídas por estátuas de Lênin num futuro próximo.
Escravagista filantropo
Na arruaça mais recente, três estátuas derrubadas ou vandalizadas chamaram a atenção. Em Bristol, num ato cheio da dramaticidade estéril dos revolucionários de hoje, os manifestantes derrubaram a estátua do traficante de escravos Edward Colston. Depois, alguém colocou o joelho sobre o pescoço da estátua para que a imagem viralizasse e não restassem dúvidas de que se trata de um gesto de reparação, ou melhor, vingança histórica. Por fim, a estátua foi jogada num rio.
Falar de Edward Colston é complicado. Porque ele foi um dos homens mais ricos da Inglaterra e sua fortuna se devia principalmente ao tráfico de escravos. Acredita-se que Colston tenha traficado mais de 80 mil pessoas, muitas das quais morreram em condições desumanas nos abomináveis navios negreiros. A estátua, contudo, não foi erguida para celebrar os feitos de Colston como traficante de escravos – que, apesar de ser considerada uma atividade deplorável aos olhos contemporâneos, era no século XVIII uma atividade mercantil que não enfrentava a justa oposição que, mais tarde, cresceria a ponto de torná-la moral e economicamente inviável.
Mas na história, assim como na vida cotidiana, não existem heróis ou vilões absolutos. Tanto é assim que Colston, não se sabe se por arrependimento ou vaidade, deixou toda a sua fortuna para obras de caridade que existem até hoje. Foi em homenagem ao filantropo, não ao traficante de escravos, que a estátua acabou erguida em 1895 – 170 anos depois da morte de Colston e numa época em que se pretendia exaltar a filantropia privada como forma de conter a agitação socialista que, já naquele tempo, pedia mais Estado.
A derrubada da estátua de Edward Colston não apaga a história horrível dos negros que eram tirados à força da África nem dos homens (muitos deles negros) que lucraram muito com isso. Tampouco acaba com as obras de caridade fundadas pelo traficante de pessoas. Mas, de certo modo, acaba com a ideia de que uma pessoa é digna da imortalidade em bronze por ter sido capaz de se arrepender ou de tentar compensar seus erros em vida ou depois da morte.
Policiamento ético
Em Glasgow, na Escócia, os revolucionários vandalizaram a estátua de Robert Peel, ex-primeiro ministro e criador da polícia britânica. Mais uma vez ignorando os grandes feitos de homens falhos e acreditando na possibilidade utópica da existência de seres políticos sem pecados, os vândalos escreveram a sigla ACAB, que significa “todos os policiais são filhos da...”, num dos lados da base da estátua. Noutro, eles picharam o infame símbolo comunista da foice e do martelo.
Peel viveu e exerceu sua atividade política numa época cruel. O século XIX foi o século das grandes invenções. O século em que o mundo ficou menor, graças à invenção do trem, e muitíssimo mais próspero, graças a todos os avanços da Revolução Industrial. Mas era um século que mantinha valores que hoje em dia consideramos pouco civilizados. A escravidão era uma realidade em boa parte do mundo. Crianças eram fisicamente castigadas nas salas de aula. E a ideia de tratar criminosos ou delinquentes com dignidade simplesmente não passava pela cabeça das autoridades.
Pela cabeça de Peel passava. Tanto foi assim que, ao criar o Metropolitan Police Service, Peel elaborou também nove princípios para nortear a conduta ética dos policiais. Os Princípios de Peel chamam a atenção por sua preocupação em evitar o crime e a desordem por meio da repressão a mais humana, civilizada e digna possível. Os princípios se baseiam na colaboração entre as forças policiais e o povo.
Trata-se de uma lista bastante progressista para a época. Entre os princípios, lê-se, por exemplo, que a polícia só deve “usar a força física quando a persuasão, o aconselhamento e os avisos são insuficientes para se conseguir a cooperação do povo a fim de se garantir a lei e a ordem” e que a polícia deve saber que “o teste de eficiência policial é a falta do crime e da desordem, e não os sinais claros da ação policial”.
O mais antifascista dos antifascistas
Na Parliament Square, no centro de Londres, a estátua de um dos mais ferrenhos defensores da liberdade também foi vandalizada. Sob a inscrição “CHURCHILL” em baixo-relevo, alguém escreveu “era racista”.
Winston Churchill tinha defeitos? Tinha. Muitos. Era preconceituoso? Provavelmente. Mas reduzi-lo a uma ideia contemporânea de racismo é esquecer seus grandes feitos liderando os britânicos primeiro na resistência às forças de Hitler, no começo da Segunda Guerra Mundial, e, depois, na destruição das forças nazistas.
A biografia escrita pelo historiador Paul Johnson, admirador de Churchill, deixa claro que o ex-primeiro ministro britânico tinha, entre outros problemas, certo gosto pela guerra – desenvolvido, ao que parece, na Segunda Guerra Boer, travada entre 1899 e 1902. Homem de seu tempo, Churchill não tinha a visão multiculturalista que aprendemos a cultivar e exaltar nas últimas décadas. Logo, é comum encontrar nas palavras de Churchill referências pouco lisonjeiras a etnias não-brancas.
Mas como o racismo de Churchill, que era o racismo de seu tempo, compartilhado inclusive por um Machado de Assis, pode ter relação com a morte de George Floyd em Minneapolis? E mais importante: como é possível achar que o racismo de Churchill e da geração que lutou contra as forças de Hitler se sobrepõe aos feitos do ex-primeiro ministro para defender o chamado “mundo livre”?
Não por acaso, a fotografia da vandalização da estátua de Churchill que rodou o mundo traz, em primeiro plano, um manifestante com um cartaz improvisado no qual se lê “vocês f*** com a geração errada”.
E bota errada nisso.
Em tempo: apesar de a frase “os fascistas do futuro chamarão a si mesmos de antifascistas” combinar com Churchill, ela nunca foi dita ou escrita por ele.
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