Publicado no Brasil pela editora Amarilys, ‘O Novo Czar: Ascensão e Reinado de Vladimir Putin’ é uma verdadeira obra de fôlego do jornalista americano Steven Lee Myers, ex-diretor do escritório do New York Times em Moscou.
Ao longo de mais de 600 páginas, Myers – que viveu sete anos na Rússia e entrevistou Putin – percorre toda a trajetória pessoal e politica do ditador até 2014, ano de sua publicação.
A seguir, selecionamos um recorte da biografia que mostra Vladimir Putin já no cargo de presidente interino, preparando-se para disputar sua primeira eleição, em 2000.
Vladimir Putin, que nunca tinha sido eleito para um cargo político, mal fez campanha antes da eleição, que, devido à renúncia de Yeltsin, foi adiantada para 26 de março de 2000.
Como primeiro-ministro, ele pintou sua visão para a Rússia com as pinceladas mais vagas. Sua única plataforma ou agenda real de campanha apareceu em um manifesto no site do governo em 28 de dezembro, a véspera da nomeação surpresa de Yeltsin.
O documento foi preparado pelo Centro para o Desenvolvimento Estratégico, um laboratório de ideias fundado por German Gref, um economista que era outro dos colegas de Putin na administração de Anatoly Sobchak.
Nesse manifesto de cinco mil palavras, chamado “Rússia e a Virada do Milênio”, Putin reconheceu com franqueza o reduzido status social e econômico de seu país no mundo.
O produto interno bruto da Rússia tinha caído pela metade na década de 1990, e era agora um décimo do PIB dos Estados Unidos e um quinto do da China. Levaria 15 anos de crescimento econômico substancial apenas para alcançar o nível de Portugal ou Espanha.
“A Rússia está no meio de um dos períodos mais difíceis de sua história”, dizia o documento.
“Pela primeira vez nos últimos 200 anos, encaramos a ameaça real de cair para o segundo e, possivelmente, até o terceiro escalão entre os países do mundo. Estamos ficando sem tempo para evitar isso.”
A prescrição era restaurar a união nacional, o patriotismo e um governo central forte – não “a restauração de uma ideologia oficial de estado na Rússia, sob qualquer forma”, mas um pacto social voluntário que colocasse a autoridade do Estado acima das aspirações desordenadas e desagregadoras de seus cidadãos.
O tom parecia quase religioso, como se Putin estivesse partilhando uma “revelação pessoal” do caminho do meio que a Rússia tomaria entre sua história autoritária e seu futuro democrático.
“A Rússia precisa de um forte poder estatal e deve recebê-lo. Não estou pleiteando o totalitarismo. A história comprova que todas as ditaduras, todas as formas autoritárias de governo, são transitórias. Apenas os sistemas democráticos são duradouros.”
Com os deveres da presidência já em suas mãos, Putin se absteve de eventos exageradamente políticos durante a curta campanha. Ele não fez nenhum comício, não proferiu discursos e se recusou a participar de debates com os adversários.
Refletindo seu caráter azedo e seu desdém por políticas no varejo, ele estava redefinindo a campanha moderna na Rússia à sua própria imagem e de maneiras que sufocariam o futuro democrático ao qual a União Soviética parecia dar as boas-vindas.
Nos primeiros dias após se tornar o presidente em exercício na véspera de Ano-Novo, Putin havia cooptado seus principais rivais, inclinando a balança acentuadamente em seu favor.
No final de janeiro de 2000, o bloco União na Duma havia orquestrado uma aliança não com os democratas ou os liberais que tinham pegado carona com o presidente em exercício, e sim com os comunistas.
O União e o Partido Comunista dividiram presidências de comitês entre seus membros, enquanto excluíam Yevgeny Primakov, assim como Sergei Kiriyenko, que conquistara uma vaga após sua demissão como primeiro-ministro, e Grigory Yavlinsky, o líder liberal na política russa.
Os apoiadores do bloco prontamente boicotaram a Duma e, como resultado, uma maioria leal ao Kremlin se formou, desconsiderando diferenças ideológicas. O país estava aprendendo que a ideologia importava menos a Putin do que uma maioria legisladora ordenada e flexível.
Uma semana depois, Yuri Luzhkov, que havia sido reeleito prefeito de Moscou em dezembro, declarou que não competiria com Putin.
Primakov, que anunciou sua candidatura à presidência na véspera das eleições parlamentares, também desistiu, retirando-se da disputa presidencial duas semanas depois com amarga resignação.
“Eu sinto o quanto nossa sociedade está distante de ser uma sociedade civil e uma verdadeira democracia”, disse.
No início de fevereiro, os rivais mais sérios de Putin – aqueles que tinham aterrorizado Yeltsin nos dias moribundos de sua presidência – haviam simplesmente derretido antes que a campanha presidencial oficial sequer começasse.
Um por um, os governadores regionais declararam seu apoio a Putin. A eleição, que consumira os meses finais de Boris Yeltsin no cargo, acabou não tendo quase nenhum drama.
Não foi tanto uma competição democrática entre candidatos e mais um referendo sobre o homem que já ocupava o posto.
Apenas um governador, Vasily Starodubtsev, o comunista de Tula, declarou apoio a um dos oponentes de Putin, seu camarada comunista Gennady Zyuganov. “Se não existirem rivais, então não existe democracia, e se não houver democracia, então qual foi o sentido de demolir o país?”, perguntou.
Putin havia dito a Yeltsin que não gostava de campanhas eleitorais e não sentia ser particularmente bom nisso.
Ele considerava promessas de campanha apenas mentiras inalcançáveis ditas por políticos e propagandas depreciadas na televisão como uma manipulação indecorosa de consumidores ingênuos.
Visitando a cidade têxtil de Ivanovo, ele anunciou que recusaria o tempo oficial de televisão atribuído a todos os candidatos para apresentar sua biografia e plataforma.
“Esses vídeos são propaganda”, disse ele, ocultando sua compreensão da importância da TV, especialmente para moldar sua imagem pública. “Não vou tentar descobrir durante minha eleição o que é mais importante, Tampax ou Snickers.”
Nos bastidores, os assessores de Putin, entretanto, recrutaram uma equipe de campanha, liderada pelo jovem assessor que ele trouxera de São Petersburgo, Dmitri Medvedev.
Eles conduziram uma operação sofisticada para moldar a imagem pessoal e política de Putin, tudo com as técnicas testadas pela política moderna, mas com pouca paixão pela democracia de fato.
O resultado foi a imagem não de um político, mas de um homem acima da política; os estrategistas de Putin alcançaram um sucesso que ultrapassou seus sonhos.
A televisão estatal conduziu uma longa entrevista biográfica com ele – o que, na visão de Putin, pode não ter sido o equivalente a um comercial, embora fosse exatamente disso que se tratava – e sua campanha soltou uma série de entrevistas realizadas ao longo de seis dias por três jornalistas.
Em forma de livro, as entrevistas foram chamadas de Ot Pervovo Litsa, literalmente “Da Primeira Pessoa”, uma frase que em russo também sugere a alternativa “O Primeiro”, ou seja, o líder ou o chefe.
Boris Berezovsky [político e magnata morto em 2013], que ainda controlava o primeiro canal estatal de televisão, pagou pela impressão do livro, ansioso para se insinuar no círculo de Putin após sua influência dentro do Kremlin ter caído drasticamente.
Quando a Comissão Eleitoral baniu a venda comercial do livro como uma violação das leis de campanha, o quartel-general de Putin simplesmente adquiriu a primeira tiragem no atacado e distribuiu as cópias para os eleitores sem nenhum custo.
Putin, junto com Lyudmila [sua ex-mulher] e outros que o conheciam há anos, recontou sua biografia de um modo simples e ocasionalmente franco que moldou sua imagem como a de um homem comum, mas também o governante incontestável, virtualmente indiscutível de uma nação vasta e anteriormente grandiosa, emergindo de seu mais recente “tempo de dificuldades”.
Putin conseguiu ao mesmo tempo expressar orgulho de sua criação soviética e sua carreira na KGB, enquanto se distanciava dos fracassos da União Soviética.
Ele oferecia a todos algo a que se apegar, uma mensagem criptografada comprometida simultaneamente com o passado e com a nova democracia, um patriota e um crente religioso.
E ninguém sabia com certeza o que ele defendia. Em seus curtos meses de proeminência, a questão “quem é Putin?” se tornou o refrão de jornalistas, acadêmicos, investidores, governos estrangeiros e suas agências de inteligência.
Inclusive a CIA, que colocou seus analistas apressadamente para trabalhar na redação de um perfil, entrevistando todos que haviam tido a chance de se encontrar com Putin durante seus anos como subalterno obscuro.
A estratégia da equipe de campanha de Medvedev era simplesmente permitir que Putin prosseguisse com seus deveres oficiais de primeiro-ministro e presidente em exercício. Não foi coincidência alguma, claro, que esses deveres o levassem a atravessar o país para encontros (televisionados) que atraíam toda a sociedade russa.
Ele visitou o centro espacial da Rússia nos arredores de Moscou em um dia, uma plataforma petrolífera em Surgut no dia seguinte. Ele presidiu reuniões com seus conselheiros de segurança e recebeu uma visita oficial do primeiro-ministro da Grã-Bretanha, Tony Blair.
Ele prometeu pagar todos os salários retidos até o final da primavera. Aumentou as pensões primeiro em 12%, depois novamente em 20%, ações que contribuíram para sua crescente taxa de aprovação tanto quanto a guerra na Chechênia.
Putin não ousava debater com seus adversários, mas seus comentários sobre o trabalho do governo recebiam muito mais tempo na TV do que qualquer coisa que eles dissessem. Ele não estava prometendo nada; ele estava fazendo.
Assim que o mês de campanha teve início oficialmente, ele publicou nos três principais jornais uma carta aos eleitores que equivalia a um rompimento público com a Rússia de Yeltsin.
“A máquina estatal está se despedaçando”, escreveu ele. “Seu motor, o braço executivo, engasga e tosse assim que se tenta dar a partida.”
Ele prometia combater o crime e declarava que a guerra na Chechênia era uma luta contra “o mundo criminal”, não contra um movimento independente com reivindicações históricas à autodeterminação.
Em uma referência mal disfarçada à ameaça de Primakov de limpar as cadeias para abrir espaço para os acusados de “crimes econômicos”, Putin deixou claro que não pretendia reverter as privatizações desordenadas e injustas da década anterior, e sim reforçar o controle estatal do mercado de forma a terminar com o “círculo vicioso” de empresários corruptos pagando propinas para funcionários do governo e extraindo recursos do orçamento necessários para retirar os mais miseráveis da pobreza.
“Milhões de pessoas no país mal conseguem pagar suas contas; elas estão economizando em tudo, até em comida”, escreveu ele.
“Os idosos, que venceram a Grande Guerra Patriótica e fizeram da Rússia uma gloriosa potência mundial, estão batalhando por uma existência parca ou, pior, mendigando pelas ruas.”
Putin criou um slogan para sua visão de uma nova Rússia, obediente às leis, segura e próspera. Ele incorporava as contradições internas de sua ideologia política, de seu histórico como advogado e agente da inteligência e de seu temperamento.
Ele sentia isso tão profundamente que usou o slogan duas vezes em sua carta. A Rússia, declarava ele, seria “uma ditadura da lei”.