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Sessão plenária do STF em 2022
Sessão plenária do STF em 2022| Foto: Nelson Jr./SCO/STF

O ministro do STF Luís Roberto Barroso gerou repercussão ao dizer, no último dia 5, que o Judiciário tinha deixado de ser um “departamento técnico especializado” para se tornar “um poder político na vida brasileira”.

Apesar da repercussão, a fala não constituiu novidade. A ideia já foi muito repetida a ponto de se tornar senso comum, não só no meio jurídico, mas também entre cientistas políticos e outros analistas.

Diga-se que as razões para o fenômeno também não seriam puramente jurídicas, ou decorrentes de filosofias jurídicas. Por exemplo, um estudo empírico já chegou a postular que o empoderamento do Judiciário seria consequência da disfuncionalidade da arena política tradicional – o Legislativo –, em razão da excessiva fragmentação em partidos políticos, dificultando o consenso e a governabilidade. (Vale notar que o Congresso brasileiro teve tendência de se tornar cada vez mais fragmentado a cada eleição na Nova República, chegando ao auge de 30 partidos com representação na Câmara dos Deputados após a eleição de 2018 – número muito acima da média das democracias do mundo.)

Neste sentido, os cientistas políticos muitas vezes descrevem a judicialização da política como, longe de ser um problema, uma solução para o país. Eles o fazem abrindo mão de juízos de valor (o que afirmam ser adequado à ciência), assim como, muitas vezes, fizeram até mesmo com esquemas de corrupção, a exemplo do Mensalão. Em bom português: se é difícil construir consenso no Congresso para votações, compre-se o consenso; ou que, alternativamente, se o substitua por um consenso mais fácil de atingir, entre os ministros do STF, que são apenas onze, em vez dos 594 congressistas. O importante é que as engrenagens da República se movam.

Apesar de seus defensores, assim como no caso da corrupção, a defesa do Judiciário como um “poder político” (isto é, responsável não apenas por aplicar normas, mas também por criar normas, tomando as decisões políticas fundamentais da sociedade) tem muitas implicações e suscita mais perguntas do que responde. Até hoje, os que descrevem ou até defendem o fenômeno não forneceram respostas para as perguntas que aqui se levantam.

1. Detentor de poder político tem direito à honra? 

Tome-se uma fala célebre do ministro do STF Alexandre de Moraes no julgamento da ADI 4451, em 2018: “Quem não quer ser criticado, quem não quer ser satirizado, fique em casa, não seja candidato, não se ofereça ao público, não se ofereça para exercer cargos políticos [grifo nosso]. Essa é uma regra que existe desde que o mundo é mundo”.

A fala do ministro veiculou uma noção jurídica que de fato é consolidada: a de que o direito à honra, ou à privacidade, é proporcional ao quão pública a pessoa é. E ninguém é mais público do que quem exerce cargo político; não só pela ampla exposição, mas porque, em democracias (do grego dêmos + krátos, poder do povo), a participação popular não se dá somente através do voto: também se dá, legitimamente, pela capacidade de o povo atacar os ocupantes de cargo político, para influenciar sua popularidade e consequente desempenho na próxima eleição, ou mesmo para exercer pressão direta nas decisões políticas que tomam.

Se os ministros do STF forem verdadeiros titulares de cargo político, como pretende o ministro Barroso, enquadram-se automaticamente na formulação do ministro Alexandre: os cidadãos deveriam ser tão livres para atacá-los quanto o são para um presidente da República ou um deputado. Tentativas em contrário devem receber a mesma justa indignação democrática de quando cidadãos são detidos em qualquer parte por criticar o seu governo.

No entanto, não é a concepção que tem sido aplicada na prática. Em vez disso, no âmbito de inquéritos que tramitam no STF, tem-se operado a criminalização de cidadãos por atos que já incluíram até mesmo (conforme descrito nos trechos dos autos que vieram a público) a postagem de hashtags contra o STF ou membros seus, como #impeachmentgilmarmendes. Em diversas ocasiões, foi tornada explícita, nos autos, a noção de que a crítica organizada, por grupos políticos, de ministros do STF, no intuito de influenciar a sua conduta pública, seja, em si mesma, ilícita, por configurar atentado à “independência do Poder Judiciário”.

Caso o alvo da exposição organizada na internet fosse um discreto servidor público de um obscuro “departamento técnico especializado”, na dicção do ministro Barroso, seria possível cogitar que semelhante exposição pública na internet configurasse um dano anormal e indenizável. Diferente é o caso de quem ocupa cargo político, como explicou o ministro Alexandre.

2. O poder político deve ser vitalício? 

No caso do servidor público hipotético, um motivo a mais intervém para justificar uma maior restrição da liberdade de seus críticos: seu cargo ser de natureza “técnica” (em oposição a “política”) implica, por definição, que ele não teria, em tese, margem para livre decisão baseada em juízo de conveniência ou em seus valores, mas aplica o que as normas jurídicas ou a técnica profissional impuserem – as quais não são igualmente subjetivas; portanto, não estão submetidas ao crivo da população. Assim, a própria tentativa de pressão popular poderia nem mesmo ser considerada legítima de um ponto de vista moral ou prático.

Do mesmo modo, uma tentativa de pressão da parte dos superiores hierárquicos do servidor – inclusive os detentores de cargo político – poderia ser, em muitos casos, considerada ilegítima. Aliás, esta é a principal, senão a única, justificativa para regras que garantem a estabilidade ou a vitaliciedade no cargo público: é uma forma de blindar o servidor contra interferências externas, sobretudo a política.

Mas, se os ministros do STF exercerem, eles próprios, verdadeiro poder político, torna-se duvidoso que remanesça a justificativa para a vitaliciedade do cargo – tanto mais se for um poder superior em hierarquia aos demais, como já afirmou explicitamente o ex-ministro Carlos Ayres Britto (e, implicitamente, os ministros Alexandre e Dias Toffoli, ao qualificarem-no de “Poder Moderador” da República, em referência à função exercida pelo imperador Dom Pedro II). A ser verdade a afirmação, diminui ainda mais a preocupação com a possibilidade de interferência de outro poder. Ao contrário: por questão lógica, sé é que haveria algum risco, seria o inverso.

3. O poder político deve ser eleito? 

É incontroverso que o STF é um órgão não-eleito. Assim, os analistas que, em nome da governabilidade, saúdam a transferência das decisões políticas de um parlamento de 594 para um plenário de 11 não estão apenas mudando o número de legisladores, mas também algo a mais.

Ser um órgão de 11 membros e ser um órgão eleito não são características mutuamente excludentes. Assim, se é mesmo conveniente o exercício de poder político pelo STF, nada impede que o povo brasileiro saia às ruas para pedir eleições diretas para o órgão, como fez em 1983 para outro poder da República.

Defender que o poder político em determinado país seja eleito não é, obviamente, conclusão necessária. A democracia (que é como se chama esse sistema) nunca foi unanimidade. A peculiaridade da época moderna é apenas que os seus detratores também chamem a sua alternativa, antagônica, pelo mesmo nome.

Seja como for, a eleição direta não tem valor apenas simbólico: a capacidade do povo de pressionar os seus representantes com o risco de perda do cargo foi fundamental, por exemplo, para a derrota do PL da Censura, sob forte pressão popular. O mesmo risco não onerava, por exemplo, o ministro Alexandre de Moraes (que tem previsão de permanecer no cargo até 2043) quando registrou em decisão, horas antes da votação, que deveria haver definição legislativa “ou judicial” sobre a questão política que estava para ser decidida.

Hugo Freitas Reis é mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais.

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