Não falha. Abro minhas redes sociais logo cedo e me deparo com os resquícios do ódio semeado durante a madrugada. Xingamentos, comentários que se pretendem a mordazes e engraçados, mas que são apenas perversos, e análises sempre apocalípticas. Tudo girando em torno de um assunto: o Estado.
Quando e por que o Estado e seus representantes assumiram em nosso cotidiano o papel de Deus e seus anjos e santos? Quando e por que passamos a orientar nossa vida, nossas relações, nossas expectativas e medos com base no que esse ou aquele político disse ou prometeu fazer?
Os mais novos talvez não saibam, mas nem sempre foi assim. Há apenas vinte anos, por exemplo, eu cursava Comunicação Social da Universidade Federal do Paraná. A despeito das intermináveis greves e de um ou outro professor radicalizado (do qual ríamos pelas costas, evidentemente), não me lembro de uma só discussão política entre meus amigos no Centro Acadêmico.
A vida era maior. A vida era mais interessante. A vida era mais importante.
Ainda na década de 1990, as eleições eram tão-somente um incômodo bianual para os adultos e uma curiosidade para as crianças. Eu, que sempre fui papelófilo, me lembro de ficar maravilhado com as imagens das apurações dos votos, não porque me interessasse pelo resultado, e sim por causa daquela montanha de cédulas sobre as mesas – um sonho.
Hoje meu filho me liga e me pergunta quem matou Marielle Franco, se o presidente é racista, se Lula é mesmo ladrão, se os professores dele são petistas. “Papai, é verdade que existe uma lei que…?” Meu Deus, quando foi que crianças de dez anos começaram a se importar com os éditos do Estado, quando deveriam é estar olhando para o céu noturno e imaginando longas e tediosas viagens intergalácticas?
Que o Estado tenha assumido o papel da religião não resta dúvida. Mais fácil do que comungar no amor cristão (para quem é cristão, evidentemente) é comungar na indignação das redes sociais. Mais fácil do que a confissão e a penitência é urrar diante das imagens de um ex-governador depondo diante de um juiz e celebrar a sentença de prisão de um ex-alcaide. Mais fácil do que praticar a caridade livre e pessoal é dar ao miserável um cartão do Bolsa Família.
Quando e por que deixamos de ocupar nosso tempo livre refletindo sobre nossa origem e nosso destino depois da morte? Quando e por que deixamos de nos maravilhar diante de um simples truque de mágica? Quando e por que abdicamos da nossa pequenez física e temporal e passamos a acreditar que somos enormes e importantíssimos e que nossa história terrena é eterna?
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O curioso é que o alcance no Estado no íntimo de cada um é meramente simbólico e não representa, a não ser em casos extremos, danação. Isto é, ninguém está fadado a ser um vencedor ou perdedor por causa do Estado. Há milênios, essa noção de vida bem ou mal-sucedida continua sendo algo que pertence ao reino do etéreo e do imponderável. Algo que Constituição nenhuma do mundo garante e estatística nenhuma do IBGE é capaz de mensurar.
Por que, então, insistimos em creditar a esse ou aquele político nossa esperança de redenção terrena quando, no íntimo, sabemos que não há lugar no mundo capaz de expedir um alvará permitindo a reconstrução do Éden?
O que consola é saber que este estado de coisas não é para sempre. Ciclos antropo e teocêntricos se alternam na história da Humanidade. Haverá, pois, um momento em que o homem vai se cansar de procurar o Messias entre os seus, voltando a procurá-lo entre as estrelas ou na própria alma. Mas, para que isso aconteça, ele precisará recuperar antes a alma.
Que, no momento, está perdida entre o Twitter e o Facebook, xingando ou adulando políticos, celebrando ou condenando diretrizes, redigindo estatutos como se eles fossem garantias de ordem, de paz, de felicidade e de salvação.