O governo chinês tem usado a pandemia desde o começo para comparar o próprio modelo com as democracias abertas ocidentais, alegando que é mais eficiente e superior. É um dos motivos pelos quais não colabora com investigações da hipótese de que o vírus SARS-CoV-2 poderia ter escapado de um de seus laboratórios na mesma cidade do primeiro surto, Wuhan. Pelo mesmo motivo, o Partido Comunista Chinês esconde informações a respeito do real impacto da Covid-19 em seu território.
Ao menos no mercado financeiro, a maquiagem da “resposta eficaz” do partido comunista à pandemia não tem convencido. Escrevendo em fevereiro para a revista Forbes, o especialista em métodos quantitativos de finanças George Calhoun mostra que enquanto o índice S&P para os Estados Unidos cresceu no segundo semestre de 2021, dois índices chineses em comparação caíram 34% (Hong Kong) e 18% (Xangai). Calhoun crê que isso é um sinal de fracasso da política “Covid zero” em comparação à comparativamente mais aberta abordagem dos EUA.
“Há perguntas a respeito da eficácia do modelo chinês”, diz o autor. “Em particular, perguntas a respeito de se os resultados médicos e em saúde pública — por exemplo, as taxas de infecção e mortalidade — relatados pela China são precisos”. As autoridades chinesas alegam que em toda a pandemia houve apenas 140 mil infectados e 4638 mortos em seu país. A taxa de mortalidade é 1/800 da relatada nos Estados Unidos, um número bastante implausível.
Mortes subestimadas
Em março de 2020, replicando informações do site Caixin, a revista Time noticiou que havia muito mais urnas funerárias sendo entregues aos crematórios de Wuhan do que o número oficial de mortos por Covid na metrópole. Em 2021, no documentário 'In The Same Breath' (“No Mesmo Fôlego”, em tradução livre; HBO Max), a diretora sino-americana Nanfu Wang mostra um relato a respeito de um coveiro que por descuido deixou escapulir que houve um excesso de 20 a 30 mil covas só no cemitério em que ele trabalhava.
Calhoun comenta que grande parte da imprensa ocidental aceitou os números chineses como válidos para fazer comparações, por exemplo para alegar inadequação nas soluções aplicadas nas democracias. Contas de embaixadas chinesas ao redor do mundo aplaudiram os crédulos quanto a seus números e quem repetisse a propaganda da eficiência da ditadura. O próprio New York Times declarou que “O método chines é o único que se mostrou bem-sucedido”.
Novas análises estatísticas lançam mais luz a respeito da grande discrepância entre os números relatados pela China e os reais. Uma técnica é considerar o excesso de mortalidade como um todo antes e durante a pandemia, como fez um novo estudo que concluiu que houve um excesso mundial de quase 20 milhões de mortes na pandemia. Na verdade, duas análises independentes, da revista Lancet e da Economist, convergiram para este número. Outras análises similares estão sendo conduzidas pela Universidade Johns Hopkins nos Estados Unidos, Universidade de Cambridge no Reino Unido, Instituto Max Planck na Alemanha e outras publicações não-acadêmicas além da Economist.
Um consenso que está se formando nas análises de excesso de mortalidade é que o número de mortes por Covid foi subestimado em todo lugar. O tamanho dessa subestimativa varia de país para país. A Economist pensa que os Estados Unidos subestimam o número de mortos em 7%, por exemplo. Em reanálise, aumentaram a discrepância do número real para o relatado pelo governo americano para 30%. A China é muito pior.
O tamanho da mentira: até 17000%
Segundo a análise independente de excesso de mortos chineses na pandemia pela revista britânica, a China está subestimando o número de mortos em até 17 mil porcento. Isso significa que o real número de mortos no país de Xi Jinping pode chegar a 1,7 milhão — o dobro do número de americanos mortos na pandemia.
A China também dificulta e atrasa a liberação de dados de mortalidade geral. O governo alega que o vírus ficou em Wuhan, onde inicialmente matou quatro vezes mais que em outros lugares (miragem criada pela supressão do número total de infectados), e de repente parou — ironicamente — no dia 1º de abril de 2020. Essa alegação não é consistente com os padrões de viagem logo antes do lockdown em Wuhan. O banimento das viagens veio só dois dias antes do festival de primavera do ano novo lunar, maior evento do planeta em que passagens são compradas a uma taxa de mil por segundo.
Foi com base nesses fatos e nos dados fornecidos em um artigo de pesquisadores do Centro de Controle e Prevenção de Doenças chinês que a Economist fez escolhas metodológicas para tapar o buraco nos dados e produziu uma estimativa mais realista. Corroborando outras análises, a agência Reuters mostra que a China é completamente atípica nos números da Covid-19 do leste asiático.
O custo das mentiras
A gigantesca discrepância chinesa dificilmente pode ser atribuída a meros erros, ineficiências e falta de testes, como provavelmente é o caso no Brasil. Ela se encaixa melhor no padrão geral conhecido de regimes comunistas de supressão proposital da verdade por parte de uma autocracia de partido único que teme que ela possa enfraquecer a legitimidade de seu poder.
Na minissérie Chernobyl (HBO, 2019), o personagem cientista Valery Legasov, interpretado por Jared Harris, diz que “a verdade não se importa com as nossas necessidades ou desejos, não se importa com os nossos governos, nossas ideologias, nossas religiões. Ela se senta e espera para todo o sempre. E este é, no fim, o presente de Chernobyl. Onde eu uma vez temia o custo da verdade, agora só pergunto: qual é o custo das mentiras?”
Neste caso, o custo das mentiras do regime que oprime o próprio povo chinês e as várias etnias tratadas como de segunda classe, e daqueles que com elas colaboram, é representar falsamente a democracia como menos eficiente que a ditadura para lidar com crises.