A democracia é um fenômeno complexo, que começou sua jornada há milhares de anos na Grécia e chegou aos dias atuais sem conseguir depurar todos seus defeitos. Entender suas figurações e implicações no mundo contemporâneo não é uma tarefa fácil. Larry Diamond, sociólogo político e docente da Universidade de Stanford, nos EUA, é uma das figuras centrais dessa discussão no mundo hoje.
Suas pesquisas abordam conceitos como Accountability (responsabilidade ética da prestação de contas), estado de direito, recessão democrática, regimes híbridos e efeitos da tecnologia na sociedade democrática. Em passagem por Curitiba para o lançamento da 2ª edição da Coletânea da Democracia, nesta terça-feira (09), que inclui sua obra "Para entender a democracia", promovida pelo Instituto Atuação, Larry Diamond dá uma entrevista para a Gazeta do Povo sobre estado da democracia no Brasil e no mundo.
Pode parecer uma pergunta simples, mas central para entender suas ideias. O que é democracia?
No nível mais básico, a democracia é um sistema de governo em que as pessoas podem escolher e substituir seus líderes em eleições livres e justas. Parece um padrão trivial, mas não é.
Para se ter eleições verdadeiramente livres e justas não basta ter vários partidos políticos ou que a oposição tenha visibilidade no congresso, é necessário ter um campo de jogo minimamente igualitário com uma administração eleitoral neutra e acesso razoável ao público. Isso significa que, mesmo na América Latina, é possível encontrar um número de sistemas políticos que podem ser competitivos mas não são democráticos, que chamamos de regimes autoritários competitivos.
Ter uma democracia eleitoral significa ter condições verdadeiramente abertas, livres, justas. Mas eu não acredito que uma democracia eleitoral é suficiente. Acredito que cidadãos ao redor do mundo estão indicando que, e o Brasil é uma demonstração disso, querem Accountability, transparência, querem que se sigam as leis, restringindo o comportamento dos líderes. Isso significa o controle da corrupção. E uma lei que se aplique a todas as pessoas, o que quer dizer que ninguém vai ser assassinado nas favelas porque a polícia não é confiável ou que existam áreas de poder paralelo onde a polícia não pode entrar. As pessoas querem um bom governo, com transparência, liberdade de associação e expressão. Não se pode apenas perguntar o que é democracia, porque a democracia tem muitas dimensões e pode variar muito em termos de qualidade. A lição do nosso tempo é que as pessoas querem uma democracia profunda e de qualidade, o que eu chamo de democracia liberal. E já sabemos, e posso demonstrar empiricamente, que o quanto mais alta for a qualidade da democracia, menos aceitável será reverter isso. Toda democracia do mundo que está falhando era uma democracia não liberal. É o caso da Hungria, em que uma uma democracia liberal está falhando, porque vem de um longo período de declínio em que cessa de ser liberal.
E o Brasil pode estar nesse momento de declínio?
Provavelmente não, porque já está com muitos problemas há muito tempo. Eu não diria que é um período de declínio. Acho que o Brasil é um lugar em que se pode aplicar um símbolo chinês famoso para crise, Wei-Ji, formado por dois caracteres: perigo e oportunidade. Eu acredito que Brasil está passando por um momento perigoso com uma hostilidade popular muito grande com seus líderes e descontentamento com a corrupção, causando uma perturbação do sistema político. Sabemos que essas são condições que podem dar espaço ao populismo, incluindo o populismo autoritário. Mas existem também oportunidades aqui para aprofundar a democracia. Então depende do que a sociedade e líderes políticos vão fazer da crise.
Se as pessoas buscarem uma vantagem de curto período e tudo for visto de uma maneira partidária, então a oportunidade dada pela crise será dilapidada. Mas se as pessoas olharem e dizerem "nós temos esses problemas com a política; a crise com o impeachment a o atual escândalo de corrupção revelaram esses pontos vulneráveis e desgostosos da nossa democracia" e apontarem o foco para essas áreas onde a reforma é necessária, então esse momento pode se tornar um período criativo.
Nós temos um exemplo disso nos EUA, quando vivemos a The Gilded Age [A Era Dourada] no fim do século XIX. Era um período de alto capitalismo, com empresas grandes subornando todo mundo, passando por cima do direito dos trabalhadores e princípios básicos do capitalismo responsável. A desigualdade social estava se tornando extrema. São muitas coisas que brasileiros podem reconhecer. Isso acabou levando a um momento do século XX chamado Progressive Era, que criou uma legislação para conter o alcance do capitalismo, com leis trabalhistas relacionadas também com o trabalho infantil, salários mínimos e regulamentações dos bancos. Isso criou um estado mais limpo e com mais qualidade, com uma democracia melhor e mais aberta. É possível pegar esses momentos e fazer coisas progressistas e criativas com eles. Ou podem se tornar cínicos e deixar passar essa oportunidade.
Estamos vivendo um momento de grande polarização de opiniões no Brasil, demonstrada principalmente em redes sociais, com uma discussão agressiva em vez de construtiva. O quão importante é a discussão para uma democracia e como ela pode ser feita?
Democracia é sobre diferença e escolhas. Se a democracia envolve apenas a oportunidade das pessoas concordarem umas com as outras, não seria muito interessante e provavelmente não seria muito democrático: provavelmente só estaria mascarando e suprimindo diferenças reais de interesse e opinião.
Então o objetivo de uma democracia liberal saudável não deve ser reprimir desacordos e diferenças. Mas deveria ser de promover e estruturar um diálogo e um debate civilizado. Civilizado significa respeitável, tolerante, decente, não sem desacordos. Significa ouvir o outro lado e até reconhecer sua legitimidade e autenticidade.
Isso pode ser exemplificado pelo atitude de Emmanuel Macron em seu discurso de vitória na França. Primeiro ele disse que gostaria de falar com as pessoas que votaram em sua oponente na eleição. E seus eleitores começaram a vaiar por pensar que alguém poderia ter votado da Marine Le Pen. E ele pediu que parassem de vaiar. E eles pararam. E agora vou parafrasear Macron: "quero dizer que respeito o direito de vocês de terem à visão que têm. Eu ouvi sua raiva e frustração e espero governar de uma maneira que daqui a cinco anos vocês possam ter outra ocasião de votar de outra maneira". Essa é a personificação da civilidade. É respeitar que outras pessoas possam ter outros pontos de vista. Quero dizer, se houver racismo, sexismo ou intolerância violenta abertos eu não acho que isso deva ser aceito com tolerância, mas quando as pessoas têm opiniões diferentes quando a cultura, economia, política, é importante cultivar tolerância e respeito mútuo. A internet é um lugar não governado, nem por leis e regulamentações nem por princípios morais.
Eu acho que não queremos ter o governo decidindo o que pode ser postado na internet ou o que constitui um conteúdo intolerante. Queremos liberdade da rede para dizermos que há liberdade de expressão, mas devem existir algumas regras e convenções sociais, com tolerância e respeito mútuos. E então algo que tenho dito é que é preciso desenvolver já nas escolas, muito cedo, uma compreensão da natureza e impacto da expressão no ciberespaço e as consequências de comentários maldosos, preconceitos ou sem respeito.
É preciso encorajar o autodomínio, ouvir o outro, cultivar pontos de vista diferentes, é o mais difícil e importante de se fazer na era do Facebook. Existe um papel fundamental das escolas e outras organizações públicas. Não é uma tarefa impossível. Inclusive, há muito que as próprias empresas da internet podem fazer para ao menos sinalizar maus comportamentos na internet e alertar sobre eles ao mesmo tempo que recompensam um comportamento adequado. Quando alguém se envolve com um comportamento vulgar e rude na internet, é como se fosse uma criança mimada gritando por atenção. Querem likes, sucesso, atenção. E parte do que precisamos fazer é desenvolver estratégias que neguem essa satisfação e estigmatizem essa instabilidade.
Pode-se falar sobre democracias saudáveis e não saudáveis? E como podemos caracterizá-las?
A revista The Economist tenta fazer isso todos os anos, fazendo um ranking com os países do mundo, considerando a qualidade e extensão da democracia. Alguém pode querer argumentar com os critérios ou metodologia que usam. Mas não acho que haja uma medida perfeita, todas têm vantagens e desvantagens. Mas quando as coloca juntas é possível ter indicadores de qualidade, saúde e vitalidade das democracias. É possível olhar as diferentes dimensões. Por exemplo, qual é a extensão da competição ou se existem barreiras da competição política. Existem possibilidades reais, não apenas legais, de partidos competirem? A competição real é essencial para uma democracia. Nos EUA temos um problema com isso. Temos dois partidos fortes e competitivos, mas somos fechados ao surgimento de outros partidos ou de candidatos independentes, isso diminui a qualidade da democracia. Outra medida é a extensão da participação popular. Existem barreiras para isso? Existem várias maneiras de se medir a participação e a inclusão das pessoas no processo político.
Outro ponto é a qualidade das eleições e a existência de uma administração eleitoral neutra, não fraudulenta. Hoje precisamos pensar também na segurança digital desse processo, já que existem chances de isso ser hackeado. Essa se tornará uma questão central da qualidade das democracias nos próximos anos. É necessário também avaliar a qualidade da liberdade e em que medida existem ações na sociedade que protejam os direitos das minorias, que garantam a liberdade de expressão e em ambientes digitais, se é dada para a população uma dignidade humana mínima e se se fornece educação e recursos financeiros mínimos.
Existe também uma dimensão da democracia relacionada com o ambiente jurídico, que deve ser justo e neutro, não partidário e corrompido por um líder político ou empresas. O governo deve ser aberto e transparente nas contratações e transações financeiras e a transparência de informações deve ser sincero e organizado, e não apenas um grande depósito de informações, para que o cidadão tenha real acesso às contas públicas e faça sentido do que o governo está fazendo. É muito. E muito pode ser medido e está sendo medido de jeitos muito criativos.
Como que as pessoas podem promover a democracia no seu dia a dia?
Acredito que existem muitas coisas que cidadãos possam fazer. A primeira responsabilidade é viver uma vida democrática e ter um comportamento democrático na sua própria vida, com seus filhos, colegas, amigos e assim por diante. Pode soar ridículo e um indivíduo pode se perguntar — é só isso? — e não, não é só isso. O que um indivíduo só pode fazer parece trivial. Mas traz mais consequências que o voto — que é, claro, essencial. A questão é que o voto é secreto, então não se molda nada com isso. Mas moldar o comportamento democrático com seu tom e seus interesses, convicções, princípios e práticas democráticas é público, as pessoas vão ver isso. E, acreditem ou não, e eu realmente acredito nisso, isso pode ter um efeito de difusão. Quando muitas pessoas começam a fazer isso, realmente pode se mudar uma cultura. Agora, inevitavelmente, voltamos para as redes sociais e a democracia, e acho que parte do que se pode fazer é rejeitar e estigmatizar mau comportamento, como o bullying e a intolerância.
Além disso, alguém que quer ver alguma mudança deve começar a se mobilizar. Citando Gandhi, as pessoas devem ser a mudança que querem ver. Então é importante começar a mobilizar as pessoas para uma mudança, que não precisa estar relacionada a partidos políticos.
Muitas pessoas no Brasil estão cansadas e enojadas com a corrupção no país, assim como com a institucionalização da corrupção como uma maneira de fazer política. Não é uma questão de partido, de direita ou esquerda. Os partidos estão fazendo isso. Então se você for interagir apenas com seus amigos do Facebook, que compartilham do seu ponto de vista, se perde a chance de cooperar além das linhas partidárias para conseguir mudanças estruturais maiores que podem criar uma democracia melhor. Essa é a maior urgência no Brasil de hoje na minha opinião.
Já falamos sobre a situação no Brasil, mas como se pode avaliar a situação da democracia no mundo?
Existe uma recessão da democracia no mundo há cerca de uma década. É um período de tempo em que a expansão da democracia parou e houve uma pequena recessão de liberdade e democracia. Não é uma catástrofe. Mas é um período maior de tempo em que muitos países pioraram mais a liberdade do que melhoraram, em que direitos políticos e civis no mundo estão diminuindo e que os fracassos democráticos estão chamando atenção, já que estão acontecendo em estados grandes e estratégicos, como a Venezuela ou Turquia.
O mais assustador não é ver isso acontecendo nas democracias emergentes, mas nas democracias industriais mais avançadas, com o crescimento de partidos mais extremos caminhando para uma polarização maior não só na internet mas no diálogo político, assim como o crescimento de segmentos anti-imigratórios e machistas e apoio a ações intolerantes.
Nesse sentido, os grandes choques para o mundo foram o Brexit e a eleição de Donald Trump. Mas mesmo assim, é importante ter em mente que o Brexit foi uma vitória muito apertada (52% a 48%) e existem evidências que sugerem que parte disso foi um voto de protesto e que muitos eleitores votaram nisso querendo mandar uma mensagem sem esperar que o Brexit fosse ganhar ou que se ganhasse se tornaria uma realidade. No caso dos EUA, sabemos que Trump ganhou sem ter a maioria dos votos populares e já é o presidente mais impopular desde que começaram a serem feitas pesquisas de popularidade presencial. Na França vemos que Marine Le Pen, que personifica esse pensamento extremo e intolerante, sofreu uma derrota considerável na última eleição. Existe uma ansiedade passando pelas democracias e acho que o desafio vai permanecer por um tempo, até que conseguimos resolver questões de imigração, globalização e economia, aumento da desigualdade e mudanças no mercado de trabalho, mas acho que veremos que as forças de abertura e de pluralismo têm a capacidade de promover respostas para essas ansiedades que não vão se render para as soluções de direita.
O quanto a globalização, as ondas migratórias e a internet influenciam a democracia?
O que estamos aprendendo na era digital é que as pessoas precisam se acostumar a uma era de mudanças e perturbação. Antes, trabalhadores conseguiam um trabalho e permaneciam na mesma empresa pelo resto das suas carreiras. Agora estamos percebendo que as pessoas vão precisar fazer outras coisas, muitas atividades serão substituídas por robôs, e as pessoas vão ter que aprender novas habilidades para permanecerem empregadas. É uma perturbação social e econômica e as pessoas vão ter que aprender a viver com isso. Temos que treinar as pessoas para se preparar para isso. Se não, as implicâncias vão ser devastadoras não só para a democracia, mas para a estabilidade social em geral. É uma das maiores mudanças que vão confrontar as sociedades a partir de agora. E boa parte dos pensadores atuais está mais preocupada com esse aspecto - a automação e mudança tecnológica, incluindo os aspectos biológicos disso - do que com a globalização. A transição de bens e pessoas não será fácil de ser administrada, mas será mais fácil do que o movimento das tecnologias pela sociedade e economias. As democracias vão precisar se adaptar e entender essas tecnologias para preservar sua estabilidade. Será necessário também lidar com as consequências disso.
É provável que as tecnologias descartem muitos trabalhadores, aumentando a necessidade de um retorno ao conhecimento. Isso só pode acontecer até um certo momento até que a desigualdade social e econômica fiquem tão extremas que fique insustentável pensar em uma sociedade. É necessário pensar em maneiras de amenizar essa situação. Não sei como fazer isso sem uma variedade de meios criativos de redistribuição de renda.
Democracias também vão precisar aprender a lidar com as tecnologias de comunicação e monitoração. Nunca tivemos tantas informações sobre as pessoas, mesmo quebrando a privacidade delas. Para George Orwell, é como se estivéssemos dando os meios para que nossas vidas fossem monitoradas de uma maneira muito mais intensa do que ele previu no romance 1984. E então vamos ter que balancear o poder que emana da acumulação dessa informação, para criar saídas econômicas criativas respeitando os direitos humanos de privacidade que estão sendo violados. Precisamos ter uma conversa ética como sociedade e economia de mercado sobre quais são os limites éticos em termos de liberdade e privacidade humana. E claro que, não importa o quão ruim as coisas estejam em democracias agora, pense na China, na Rússia e outros regimes autoritários que não reconhecem os limites de privacidade e estão guardando estas vastas quantidades de informação com o propósito de repressão política.
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