Antes de mais nada, preciso me apresentar. Meu nome é Rodrigo da Silva e eu sou fundador de uma publicação com uma linha editorial liberal que dialoga todos os meses com 4 milhões de pessoas.
Não sou parte de qualquer movimento político organizado. Não milito, não colaboro e não sou membro de qualquer organização política, instituto ou think tank.
Mas ao publicar conteúdo político e econômico nos últimos anos conectado a uma visão de mundo pró-mercado, não pude deixar de perceber e acompanhar determinados passos de um incipiente movimento liberal brasileiro.
E essas foram as quatro coisas fundamentais que aprendi sobre ele.
1. É um grupo que acredita ter as melhores ideias. Como qualquer grupo político, aliás
Parece difícil acreditar nisso, mas salve uma minoria de autoritários capazes de manipular a opinião pública, inventar factoides e criar um exército militante lobotomizado, a vasta maioria das pessoas com opiniões políticas acredita piamente estar defendendo o lado certo da história. Mais do que isso: toma suas posições a partir de pressupostos morais que julga ser os melhores possíveis.
E nada disso é diferente com os liberais.
Como em qualquer grupo, é verdade, há entre seus militantes os que contribuem ao debate de ideias e há os replicadores de bordões. Há os que encaram com ceticismo o próprio discurso — e são perfeitamente capazes de sair da zona de conforto ideológica a qualquer momento — e há os que preferem morrer abraçados com as suas próprias idiossincrasias, sem qualquer independência intelectual.
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Todos eles, no entanto, acreditam estar do lado certo do debate, defendendo ideias que, a grosso modo, melhoram a qualidade de vida da imensa maioria da população.
Liberais, de fato, identificam muitos dos problemas sociais historicamente apontados pela esquerda. E se importam com eles. O que os difere são as soluções encontradas — em geral radicalmente opostas.
Enquanto parte massiva da esquerda apoia políticas públicas que invariavelmente incentivam uma centralização do poder do Estado, liberais entendem que, pelo contrário, cabe ao Estado — quando muito — o papel limitado de apenas permitir as condições institucionais ao desenvolvimento econômico.
Enquanto parte considerável da esquerda enxerga a necessidade de regular ou até mesmo excluir a liberdade econômica, liberais entendem que o livre mercado é a maior máquina de inclusão já inventada pela humanidade e o principal responsável por multiplicar por nove a renda média per capita da população mundial nos últimos dois séculos.
2. Isso não impede que o movimento seja segmentado em diversos nichos, com ideias distintas e por vezes antagônicas
Mas não vá pensando que há qualquer unanimidade. Há inúmeros grupos dentro do movimento liberal, com posições políticas e econômicas contrastantes e por vezes incapazes do menor convívio pacífico no debate de ideias.
Há anarquistas à direita e à esquerda. Há agoristas, anarcocapitalistas, liberais clássicos. Do bleeding heart libertarianism ao brutalismo, não há coesão nem entre as diferentes escolas de pensamento econômico que influenciam suas divisões ideológicas.
Entre os liberais, há os que se aproximam da Escola Austríaca (de Mises e Hayek) e os que se identificam com a Escola de Chicago (de George Stigler e Milton Friedman). E elas não são as únicas. Há mesmo figuras, como este que vos fala, mais identificados com a Nova Economia Institucional (de Ronald Coase e Douglass North) e com a Escola de Virgínia (de James M. Buchanan e Gordon Tullock). E ainda outros, completamente desapegados com qualquer diretriz de pensamento.
E economia não é o único divisor de águas. Entre os liberais, há mesmo seguidores de grupos completamente distintos, como os objetivistas (de Ayn Rand) e os mutualistas (do Center for a Stateless Society e de Kevin Carson).
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Entre os grupos, não por acaso, os arranca-rabos são constantes. Como conta Milton Friedman, a respeito da formação da Sociedade Mont Pèlerin, uma organização nascida em torno da promoção do liberalismo ao redor do mundo, com membros com distintas identidades liberais (e oito prêmios Nobel de economia):
“Nossas sessões foram marcadas por vigorosas controvérsias acerca de assuntos como o papel da religião e dos valores morais em possibilitar e preservar uma sociedade livre; o papel dos sindicatos e a ação apropriada do governo para afetar a distribuição de renda. Eu particularmente me lembro de uma discussão sobre o assunto, no meio da qual Ludwig von Mises levantou-se, virou-se para os participantes e proclamou "Vocês são todos um bando de socialistas", e saiu pisando duro da sala. Tal reunião não continha uma única pessoa que poderia, mesmo pelos mais baixos padrões, ser considerada socialista.”
Mesmo grupos constantemente associados em propagandas antiliberais, possuem raízes distintas. É o caso, por exemplo, de Ayn Rand e os anarcocapitalistas. Em 1971, Rand foi categórica:
“Para o registro, repito o que disse muitas vezes antes: não ingresso ou endosso qualquer grupo ou movimento político. Mais especificamente, desaprovo, discordo e não tenho conexão com a última aberração de alguns conservadores, os chamados "hippies de direita", que tentam atrapalhar os mais novos ou mais descuidados dos meus leitores, reivindicando para serem simultaneamente seguidores da minha filosofia e defensores do anarquismo. Qualquer pessoa que ofereça essa combinação confessa sua incapacidade de entender ou um ou outro.”
Rand considerou até sua morte os anarcocapitalistas um grupo de inimigos e jamais aprovou o uso de seu nome ou trabalho para promover suas ideias.
3. Toda vez que você espirra, nasce um instituto novo
Talvez motivado por toda essa divisão, há um fenômeno bem particular dentro do movimento liberal: a constante criação de institutos para a propagação de ideias.
Cá entre nós, você já deve ter se deparado com pelo menos uma dezena deles, não? Instituto Mises Brasil, Instituto Liberal, Instituto Liberal de São Paulo, Instituto Liberal do Centro-Oeste, Instituto Liberal do Nordeste, Estudantes Pela Liberdade, etc, etc, etc.
Reza a lenda que a cada vez que um liberal espirra, nasce um novo instituto.
E em geral com as piores desculpas possíveis: à exceção dos maiores grupos - IEE, IFL, IMB, Imil - quase todos se resumem a páginas em redes sociais frequentadas pelos mesmos seguidores de outros institutos, criados quase que exclusivamente para agregar o nome de “diretor” ou “presidente” ao cartão de visitas de uma liderança liberal aleatória, pregando as mesmas ideias, com as mesmas fórmulas.
Acompanhando o fenômeno, há também os eventos. Inúmeros deles. Não raramente com os mesmos palestrantes, falando sobre os mesmos temas, dialogando para a mesma plateia, recebendo os mesmos tapinhas nas costas — e ao custo de pequenas fortunas, financiadas pelos mesmos empresários liberais, constantemente paparicados pelas mesmas lideranças.
Seria injusto, é verdade, deixar de citar as figuras talentosa que trabalham no meio. Há inquestionavelmente algumas prestando um serviço excepcional ao debate de ideias no Brasil.
O complexo de instituto, no entanto, é uma característica peculiar a maior parte dos grupos identitários liberais e, salve as exceções, em pouco contribui para o esclarecimento.
4. Há dinheiro vindo de fora do país. E você não deveria se preocupar com ele
Por fim, há o dinheiro.
Você já deve ter visto esse comentário em algum lugar por aí: o movimento liberal brasileiro recebe grana dos Estados Unidos.
E sabe o pior? Isso acontece de verdade.
Mas, calma. Não vá pensando que tem gente rica com os irmãos Koch por aqui. Nem supor que isso é qualquer novidade.
Gringos financiam ideias políticas no Brasil há muito tempo. E mesmo os veículos que denunciam os liberais de abraçarem moeda estrangeira, assumem ser bancados pelo mesmo modelo.
O The Intercept Brasil, por exemplo, que há pouco tempo denunciou magnatas estrangeiros de financiarem formadores de opinião política na América Latina, é financiado pelo magnata francês Pierre Omidyar, fundador do Ebay, para formar opinião, entre outros lugares, na América Latina (e não pense que foi uma mera doação despretensiosa — nós estamos falando de um investimento de U$ 250 milhões para formar uma “mídia alternativa”).
A Agência Pública, outra a denunciar a prática, é financiada pela Fundação Ford e pela Open Society Foundations, do bilionário George Soros. E nem esconde isso.
A americana Fundação Ford, aliás, já financiou por aqui diversas organizações progressistas, como CUT, Intervozes, Cunhã - Coletivo Feminista, Viva Rio, Sou da Paz, BAOBA – Juntos pela Equidade Racial, Centro de Cultura Negra do Maranhão, Escola de Ativismo, Greenpeace, Nami Rede Feminista de Arte Urbana, Repórter Brasil.
Como escreve Pedro Menezes, do Instituto Mercado Popular, a uma dessas denúncias.
“Os irmãos Koch de fato doaram algum dinheiro ao Instituto CATO (um think tank norte americano), mas desde 1998 foram “apenas” U$ 3.3 milhões – e digo apenas, caro leitor desconfiado, porque o Instituto CATO tem uma receita anual de U$ 50 milhões de dólares; ou seja, no espaço de 16 anos, os tais irmãos doaram pouco mais de 5% do que o Instituto recebe todo ano. Pode-se dizer com precisão que o Instituto recebeu doações dos irmãos Koch, mas daí a dizer que foi financiado por eles, seria um grande exagero. E há mais: qualquer pesquisa no Google descobre o conflito entre a administração atual do Instituto e os irmãos, conflito este que envolveu troca pública de farpas na imprensa americana.”
Uma parte minúscula do dinheiro gringo que roda o mundo para difundir ideias liberais atravessa o Brasil, através da Atlas ou do Instituto Friedrich Naumann (ligado ao Partido Liberal Democrata) para apoiar projetos de engajamento liberal — em geral, grana para bancar viagens para palestras ministradas fora do país para alguns poucos coordenadores de institutos locais. O dinheiro é mais curto do que a verba estatal mensal da publicação com a menor audiência da blogosfera progressista no auge do governo Dilma — e muito menor do que a maioria esmagadora dessas organizações progressistas recebem dos mesmos gringos que elas denunciam.
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Em 2015, fundador da maior publicação abertamente liberal da América Latina, ingenuamente decidi entrar em contato com a Atlas para buscar entender como eles poderiam ajudar a tirar do papel um projeto que encarávamos ter imenso potencial para agregar valor ao debate político do país. O email que recebi foi taxativo. Não havia o mínimo interesse em sequer ouvir do que se tratava.
“Nós avaliamos a partnership application do Spotiniks (sic) e, embora a gente reconheça que o trabalho que vocês estão fazendo é muito importante, no momento nós não podemos aprovar a sua organização como parceira da Atlas Network.”
Como prêmio de consolação, recebi um convite para entrar numa fila de espera para um treinamento de formação de think tanks no Brasil (o que mais poderia ser, afinal?) com vagas encerradas.
“As incrições estão encerradas, mas caso haja interesse de alguém do Spotniks participar, talvez eu consiga uma vaga adicional.”
Nem respondi o email.
Duas semanas depois, sem qualquer explicação, fui convidado a participar de outro treinamento, para a própria Atlas — mas dessa vez, sem filas de espera: eu mesmo seria encarregado de ministrá-lo, bancado para isso pela organização.
Rejeitei o convite. Com gosto.
Foi o mais perto que estive de receber qualquer dinheiro gringo na minha vida.
*Rodrigo da Silva é um dos fundadores do Spotniks