A artista argentina Dolores Cáceres, certamente cheia de boas intenções, foi autorizada a plantar dez mil sementes de soja em frente ao Museu Oscar Niemeyer, estatal. O plantio é, para todos os efeitos, uma obra de arte que pretende criticar o agronegócio e o plantio de soja nos países da América do Sul. Brasil e Argentina, aliás, são os dois maiores produtores de soja do continente e o segundo e o terceiro produtores mundiais, respectivamente. Juntos, colhem cerca de 40% mais soja do que os Estados Unidos, primeiro produtor mundial.
Convém fazer à artista argentina, bem como à curadoria do museu, algumas perguntas sobre a provocativa obra. E aqui nem vale a pena entrar na questão estética da coisa, embora eu pudesse discorrer longamente sobre a diferença entre manifestação artística e o panfleto político-partidário-ecochato. Mas deixemos isso para outra hora.
A primeira pergunta que eu faria à senhora Cáceres é bem simples, embora abrangentíssima. Será que essa senhora é capaz de viver um só dia sem consumir soja? Ela certamente acredita ser possível, mas não é. Ao contrário do que muitos acreditam, a soja não está apenas no óleo das deliciosas frituras ou no tofu e no shoyo. Nem tampouco (na hipótese de a artista ser também vegetariana) na ração daquela suculenta picanha bovina ou suína.
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A soja está presente, por exemplo, em várias tintas de materiais impressos. Não duvido que o próprio material da Bienal Internacional de Arte Contemporânea do MON, mostra da qual a plantação/panfleto faz parte, seja impresso com tinta à base de soja. Que, por sinal, é melhor para a reciclagem.
A senhora Cáceres, bem como todos os que aplaudem esse tipo de manifestação artística (muitas aspas, senhor editor), também consomem soja na forma de cosméticos, remédios e até na composição da espuma do colchão que possibilita aquela soneca tão necessária depois de plantar dez mil sementes de soja.
Velas levam soja em sua composição. O giz-de-cera que os artistas mirins que enchem o vão do MON aos sábados usam contém soja – e, por isso, são mais seguros para as crianças, além de economizarem petróleo.
E por aí vai. Será que a senhora Cáceres sabe disso, não sabe ou finge não saber porque esse tipo de conhecimento é prejudicial para sua carreira?
A segunda pergunta a ser feita diz respeito, sim, à alimentação, já que a maior parte da soja produzida no mundo é transformada em ração para animais – ou aquilo que os nutricionistas adoram chamar de “proteína”. Mesmo supondo que a artista (e os leitores) seja vegetariana ou tenha pena das vaquinhas e dos porquinhos (quem não tem?), vale indagar e se indignar: sem a soja e a revolução alimentar que ela representou nas últimas décadas, como a senhora Cáceres acha possível alimentar sete bilhões de pessoas? À base de produtos orgânicos ou de vento?
Ou será que a senhora Cáceres é daquelas que consideram imoral tanto a existência quanto a sobrevivência dessa gente toda no nosso querido planeta Terra? Sem a soja e seus derivados, carne seria um produto caríssimo, condenando sobretudo os mais pobres à desnutrição. Mas quem se importa com os pobres se, para artistas contemporâneos de talento duvidoso, tão mais bonito (e rentável) é brigar contra a realidade?
A terceira pergunta que eu faria à senhora Cáceres é um pouco mais difícil. Acho que ela precisará consultar alguns livros para me responder: o que a senhora faria com todas as pessoas que hoje em dia vivem, direta ou indiretamente, da renda da soja?
Só no Brasil, a soja movimenta R$ 200 bilhões. E olhe que estou usando dados desatualizados. Sete milhões de pessoas trabalham direta ou indiretamente com o produto por aqui. Sendo a Argentina o terceiro produtor mundial do grão, atrás apenas dos Estados Unidos e do Brasil, mas com uma área bem menor, não é difícil perceber o imenso valor social da soja por lá também. Para se ter uma ideia, em 2017, o complexo soja, composto por soja em grãos, farelo e óleo e carro-chefe das exportações da Argentina, representou 16% de todas as vendas externas do país, com faturamento de mais de US$ 9 bilhões.
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À curadoria do MON também tenho perguntas. Primeiro, as mais óbvias: quem paga pela obra da artista e quem autorizou o plantio da soja num espaço público? Depois, a mais capciosa: sendo o museu estatal, isto é, de propriedade de todos os paranaenses, o segundo maior produtor de soja, a quem interessa esse tipo de panfleto antiagronegócio?
Entendo que artistas hoje em dia não estejam interessados no belo, muito menos na Verdade. Entendo que o discurso rebelde ainda atraia as massas ignaras, incapazes de fazer uma pesquisa simples na Wikipedia. Entendo que a senhora Cáceres sinta prazer com o aplauso fácil de quem nunca viu um “pé de soja” e de quem acredita que a agricultura orgânica é viável. E, por fim, entendo que ela precise da renda de suas oh tão subversivas manifestações artísticas para comprar produtos à base de soja necessários para a sobrevivência.
O que não entendo é a chancela estatal a este tipo de discurso esteticamente questionável, infantil e sobretudo imoral.